Volume 7 | Número 70 | Abr. 2020
Por Luiz Felipe Brandão Osório
Os homens fazem sua própria história; contudo não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhe foram transmitidas assim como se encontram. (MARX, 2011, p. 25).
Nada melhor (ou pior) do que estrear esta coluna em meio a uma pandemia mundial. O horizonte que se descortina é de uma crise sanitária, econômica e social sem precedentes na história. O momento do capitalismo em que vivemos corrobora e intensifica os efeitos do elemento, em princípio (ainda não há nenhuma hipótese comprovada), aleatório, que escancara a fragilidade do modo de produção. A aparente fortaleza da característica totalizante das relações de produção, que impactam em todos os aspectos de nossas vidas, desfaz-se tão facilmente quanto um castelo de areia em meio à tempestade. A revolução, palavra tão estigmatizada e distante do cotidiano, uma utopia para muitos, começa a dirimir as brumas que a cercam e a ganhar dimensão concreta, com a emergência de diversas possibilidades de transformação.
Olha-se para o mundo agora e enxerga-se quase que de um dia para o outro, literalmente, um cenário exatamente oposto. As ruas vazias e a produção parcialmente paralisada desde o centro até a periferia do sistema internacional impostas pela quarentena. A saída menos custosa impõe o isolamento social a um terço da população mundial, ilustrando como o capitalismo não resiste a um espirro. As burguesias, ainda atordoadas, divergem sobre as estratégias. A maioria não hesita e, imediatamente, tira a fantasia liberal do Estado (e sua decorrente austeridade) para desnudar o seu real caráter: o Estado enquanto forma política do capitalismo
[1]. Isso significa dizer, em grosso modo, que o aparato estatal opera para garantir o capital ao capitalista, seja pela concentração do monopólio da força e da repressão, seja pela intervenção na economia. Tanto sob o controle de liberais ou de desenvolvimentistas, como muito se costuma qualificar, o Estado intervém na economia, afinal, ele é um dos sustentáculos do modo de produção (não existe Estado mínimo ou não interventor).
O que acontece em crises como a atual é que há um limite para a exploração e pauperização da classe trabalhadora, próximo de sua sobrevivência, e o ente estatal, como garantidor maior da produção e circulação de mercadorias, não pode deixar que o modo de produção seja tragado pelo redemoinho da história. Não há capitalismo sem a força de trabalho, pois é justamente ela a responsável pela geração de valor na produção (como se pode comprovar pela atual paralisação e pelo desespero daqueles que se consideram grandes empresários na defesa pelo retorno aos postos de trabalho). O fim da dualidade, do conflito, da disputa de classes, levaria o modo de produção ao seu perecimento. Logo, sem nenhum pudor, as vestes liberais são retiradas para a colocação das roupas keynesianas
[2], ou seja, a economia volta-se para garantir um mínimo de sobrevivência aos trabalhadores e, ao mesmo tempo, estimular a demanda pelos produtos, o consumo das famílias. Por isso, uma injeção brutal de dinheiro é necessária, e o discurso da austeridade amarga o seu retorno ao plano da abstração, do mundo ideal, seu lugar de origem
[3]. A receita que permitiu ao mundo capitalista a recuperação após a crise de 1929, a Segunda Guerra Mundial e que conseguiu conter o avanço dos movimentos socialistas revolucionários na Europa Ocidental, volta ao cardápio como prato principal.
O que eles não conseguem controlar, todavia, é que o coronavírus abriu a caixa de pandora
[4]. O isolamento social mostra como o mundo da mercadoria é volúvel. O que mais gera incômodo no COVID-19 é que ele expõe a fragilidade visceral do capitalismo: com uma doença sem cura (inicialmente) o poder da mercadoria (poder material) não consegue impedir a morte das classes abastadas, colocando todas as classes sociais na vala comum das mazelas da sociedade capitalista. O desespero que povoa a todos se deve não apenas ao elevado quantitativo de mortes que a doença já gera e ainda poderá gerar, mas à incapacidade de não poder comprar a cura. De gozar do privilégio da desigualdade, livrando da morte quem pode comprar remédio e relegando o destino da miséria a quem não tem a opção da saída pelo poder material
[5].
Ao lado da impotência da mercadoria em meio ao isolamento e ao perigo de morte (de nada adianta elevados superávits primários, pagar dívidas, comprar coisas e colocar corruptos na cadeia, se não tivermos vida amanhã), emerge um vácuo inédito nas possibilidades de luta das esquerdas. Não obstante o período vigente ser marcado por refluxos e retrocessos (desde a queda do bloco socialista no Leste Europeu), o capitalismo nunca pareceu tão fugaz, trazendo um choque de realidade àqueles que vivem imersas no fetiche da mercadoria. O que contribui para alargar ainda mais a gama de alternativas é a eficiente resposta dos países socialistas, como China, Vietnã e Cuba, no tocante à saúde pública. Frequentemente encoberta pelas demandas de privatização nos países ocidentais, ela é um assunto que necessariamente precisa de um tratamento social e solidário, pois não pode ser atomizada no indivíduo, como o capitalismo involuntariamente impõe a todas suas mercadorias. A saúde pública é apenas um prisma dentre outros que demandam uma visão que extrapole a exclusividade do lucro econômico privado, não fortuitamente, os países que conseguem minorar os efeitos da pandemia são aqueles que possuem sólidos sistemas públicos de saúde ou os países socialistas. Se a propagação do vírus é democrática, ela não escolhe país, cor, raça, gênero e etc; sua prevenção, sua repressão e seus efeitos são altamente seletivos, estando atravessados por completo pela política da mercadoria. E a tendência é que os impactos nos países periféricos (ainda mais desiguais) sejam ainda maiores (a catástrofe social aproxima-se para aqueles que adotam políticas equivocadas ou omissivas, como o Brasil vem fazendo).
Tiradas toda tensão e incertezas que envolvem o momento, a tarefa do internacionalista é navegar na tormenta utilizando a teoria como bússola para guiar os caminhos da prática. O olhar sistemático (multidisciplinar) das relações internacionais voltado para o concreto, o real chão do setor externo, ou seja, aquilo que pavimenta e aduba os fenômenos sociais, o modo de produção capitalista. Se, dentro da imensidão de diferenças entre as nações, há um fio que costura todas as bandeiras em um mesmo pano, em toda a circunferência do globo, é o capitalismo. Todos aqueles territórios que se reconhecem e são reconhecidos pelos pares como Estados-nação têm, em maior ou menor medida, as relações de produção capitalistas como predominantes (mas não exclusivas). Por isso, para destrinchar as entranhas dos fenômenos internacionais, cabe destacar o que lhe é estrutural: o capitalismo é crise. Isso significa que 1% da população mundial controla mais da metade da produção material; as forças produtivas e tecnológicas alcançam níveis inéditos atualmente, e a fome continua matando a índices elevados; milhões de pessoas mundo afora dormem na rua, sem moradia, e de barriga vazia, sem alimento; milhões morrem ou adoecem pela falta dos bens mais básicos à sobrevivência. A crise é sua normalidade e não sua exceção.
Marcado esse pressuposto, podemos avançar para a trajetória do modo de produção enquanto dominante no mundo. Sua trajetória de emergência e consolidação é até recente (dentro dos parâmetros da história mundial), tendo como marco o final do século XVII e início do XIX
[6]. Desde as revoluções burguesas de então (como a francesa e a estadunidense) até hoje, é possível traçar uma linha do tempo, apontando para três momentos específicos de transformação do capitalismo, cuja métrica é a das crises econômicas estruturais, acompanhadas pelas grandes guerras decorrentes, carreadas pelo incessante motor da luta de classes: a grande depressão de 1873, a de 1929 e a de 2008. Em outras palavras, hoje, em 2020, ainda estamos no olho do furacão da última crise
[7]. Sentimos os efeitos dela e não vislumbramos ainda um horizonte de plena recuperação. Crises estruturais demoram mesmo para colocar o trem de volta aos trilhos, conforme comprovado nas experiências anteriores.
A novidade da crise de 2008 é a posição da China como protagonista das relações internacionais contemporâneas e da ascensão do eixo asiático, como o Vietnã. E com projeções (incertas, questionáveis) para ultrapassar a economia estadunidense e tomar-lhe a hegemonia mundial. Dessa perspectiva, a principal consequência imediata da pandemia, talvez, seja o reposicionamento da China na geopolítica mundial, elevando as tensões com os Estados Unidos, após uma escalada de eventos desgastantes
[8]. Desde o anúncio do domínio da tecnologia 5G pelos chineses, os dois polos da economia mundial entraram em uma guerra híbrida, com golpes leves e constantes, como guerra comercial, prisões de empresários (notadamente a pendenga com a Huawei), acusações de pirataria, movimentos militares, espionagem e os levantes em Hong Kong (patrocinados pelos Estados Unidos). E agora, as trocas de acusações de ambas as partes sobre a origem do vírus (a ponto dos estadunidenses forçarem uma propaganda para que a expressão vírus chinês se torne difundida) e a omissão de informações (notadamente das autoridades estadunidenses).
As tensões e rivalidades da geopolítica evidenciam uma disputa entre Estados Unidos, potência hegemônica mundial, (e seus sócios menores europeus e seus aliados automáticos espalhados pelo mundo) e o eixo anti-imperialista (composto por países muito diferentes entre si, mas com um rival poderoso em comum, com maior destaque para Rússia e China), atravessada por uma relação de conflito e cooperação. Os polos não são formalizados por nenhum compromisso formal, sendo ambas as coalizões altamente voláteis e mutáveis. O principal palco dos embates gira em torno do petróleo (e de recursos naturais), fator central na estruturação da produção capitalista. E as regiões que abrigam as contendas mais candentes são as das grandes reservas do bem.
A crise sanitária que afeta o mundo vem, portanto, aprofundar os efeitos das crises econômica e social já em curso. O início do ano de 2020 já anunciava os efeitos econômicos deletérios e diferidos decorrentes ainda dos impactos da bancarrota do neoliberalismo de 2008, com a sobreposição e retroalimentação de uma crise financeira (cujos indícios já vinham sendo anunciados há algum tempo) e de consequências das oscilações do preço do petróleo (com tendência de forte queda). Além disso, ao final de fevereiro, quando a pandemia desembarca no Brasil, o histórico nacional apontava para um gradativo desmonte da estrutural estatal erigida ao longo dos anos do nacional-desenvolvimentismo, com períodos de aceleração e desaceleração, e que se encontra atualmente em meio a um programa ultraneoliberal de privatizações e austeridade (com cortes brutais em serviços essenciais, como o da saúde, por exemplo), em pleno curso praticamente desde 2016. Os defensores da privatização do Sistema Único de Saúde (SUS) agarram-se nele como âncora de salvação.
A COVID-19 suscita questões ainda desconhecidas. Não se consegue por ora mensurar o índice de letalidade e de contaminação
[9]. E quais os efeitos práticos que ela gerará. O que não se pode negar é que ela abriu uma janela de possibilidades e escancarou os horizontes encobertos pela normalidade do capitalismo. Não podemos nos apressar em enterrar o neoliberalismo (o keynesianismo de outrora não enterrou, mas deu fôlego para o retorno do liberalismo). Se a saída da crise será por mais capitalismo ou por sua superação, se haverá avanços ou retrocessos; dependerá muito do posicionamento da luta de classes
[10]. A tendência é que se agrave a ofensiva da burguesia contra a classe trabalhadora, haja um aumento da concentração e até um aprofundamento do neoliberalismo. Ainda que, por ora, seja muito desfavorável aos trabalhadores, eles se defrontam como uma situação inédita, que serve de alento, demonstrando a inércia do poder da mercadoria e a potência do trabalho na produção.
Referências
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[1] MASCARO, Alysson. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.
[2] A referência é ao economista britânico John Maynard Keynes, responsável por idealizar políticas econômicas de estímulo à demanda agregada e ao consumo como alternativa para as debilidades da crise que impactava o mundo, após 1929. Aplicado inicialmente nos Estados Unidos, a partir do governo de Franklin Roosevelt, o modelo de bem-estar social (welfare State) ficou conhecido e foi adaptado, com resistências e com importantes variações a algumas realidades do pós-Segunda Guerra Mundial, sobretudo na Europa Ocidental. Esse modelo de intervenção do Estado na economia ficou conhecido, então, como keynesiano.
[3] DARDOT, Pierre e LAVAL Christian. “A prova política da pandemia”. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/26/dardot-e-laval-a-prova-politica-da pandemia/?fbclid=IwAR3eL898CmwxRw82nCWTaSPb79TNAfzWuI3TBhLoPZeZ_sFD4Z7CKh9Gq> Acesso em 27 de março de 2020.
[4] ALTHUSSER, Louis. A corrente subterrânea do materialismo do encontro (1982). Crítica Marxista, São Paulo, Ed. Revan, v.1, n.20, 2005, p. 9-48.
[5] MARCUSE, Hebert. Eros e Civilização. Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.
[6] OSORIO, Luiz Felipe. Imperialismo, Estado e Relações Internacionais. São Paulo: Editora Ideias & Letras, 2018.
[7] MIRANDA, Flávio. “O desastre econômico e o COVID-19: a luta de classes pede passagem”. Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2020/03/25/o-desastre-economico-e-o-covid-19-a-luta-de-classes-pede-passagem/. Acesso em 27 de março.
[8] ESCOBAR, Pepe. “A China engalfinhada em uma guerra híbrida com os Estados Unidos”. Disponível em: <https://www.brasil247.com/blog/a-china-engalfinhada-em-uma-guerra-hibrida-com-os-estados-unidos> Acesso em 26 de março de 2020.
[9] ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Folha Informativa COVID-19. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875. Acesso em 26 de março de 2020.
[10] DAVIS, Mike, et al. Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos: Brasil, 2020.
Luiz Felipe Brandão Osório é membro do Conselho Editorial da Revista Diálogos Internacionais. Professor Adjunto de Direito e Relações Internacionais na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e atual Coordenador da Graduação em Relações Internacionais. Autor do livro Imperialismo, Estado e Relações Internacionais, pela Editora Ideias & Letras.
Como citar
OSÓRIO, Luiz Felipe Brandão. Capitalismo: um paciente no grupo de risco do coronavírus. Diálogos Internacionais, vol. 7, n. 70, Abr. 2020. Acessado em: 08 Abr. 2020. Disponível em: http://www.dialogosinternacionais.com.br/2020/04/capitalismo-um-paciente-no-grupo-de.html