O que é o Império do Meio?
Volume 7 | Número 69 | Mar. 2020
Por Bernardo Salgado Rodrigues
Uma das tarefas mais complexas no estudo das relações internacionais é compreender a China: uma civilização milenar, com tradições visualizadas no cotidiano contemporâneo, cuja história contradiz o conceito ocidental de Estado-nação convencional, com uma íntima ligação com o passado antigo e os princípios clássicos de estratégia e arte de governar (KISSINGER, 2011, p.20). Ainda assim, algumas observações importantes podem ser realizadas, visando uma discussão ulterior mais profunda.
Nesta tentativa de concepção da China, considera-se relevante o conceito milenar de Tiãnxiá[1]. Este consiste na representação de um sistema que permitiria a garantia da ordem universal como objetivo maior da política, distinto do estágio de caos, conflito, não cooperação e anarquia do sistema internacional contemporâneo. Portanto, a pedra angular da política externa chinesa seria a ideia de uma comunidade de destino compartilhado (MAÇÃES, 2018, pp.26-27), atravessada pelo respeito à noção de soberania dos demais países, uma vez que a harmonia é a condição ontológica para a existência e desenvolvimento das coisas (LIMA, 2018, pp.34-35). Em outros termos, este é um conceito que forma a visão de mundo de centralidade e grandeza da China vis-à-vis sua interação com o restante do mundo (ECONOMY; LEVI, 2014, p.14), tanto no passado quanto no presente, percebendo-se a si mesma como zhongguo, o “Império do Meio” (中国).
A definição do Império do Meio vem sofrendo constantes mutações e inúmeras são as suas terminologias contemporâneas: desde o “socialismo com características chinesas” (KISSINGER, 2011, pp.428-429) – seja pela via interpretativa do “socialismo de mercado” ou do “capitalismo de Estado”– ou através da “economia de mercado não capitalista” (ARRIGHI, 2007, pp.331-332), a verdade é que o “capitalismo confucionista”[2] ou “capitalismo do Rio Amarelo”[3] permanecem incompreendidos pelo mundo Ocidental. Em outros termos, na busca de um “mundo harmonioso”[4] estabelecido a partir de uma “ordem paralela”[5], a “ascensão pacífica”[6] ou “desenvolvimento pacífico”[7] se apresentam como novas configurações de poder no sistema internacional, em que diversos autores sistematizam sua atuação a partir de conceitos como “Consenso de Pequim” [8]ou “Consenso Asiático” [9].
O fato é que o sistema internacional nunca mais será o mesmo após o ressurgimento chinês, e compreender tal fato é o primeiro passo para a formulação de políticas de qualquer Estado. Logo, com a proposição chinesa de fusão entre o Estado revolucionário de 1949 com o Estado Desenvolvimentista de tipo asiático de 1978, o gigante asiático se propõe a integrar ambos os sistemas capitalista e socialista; não seria um ou outro, e sim um e outro, cuja harmonia entre os extremos, o consenso entre os diferentes seria a base do sistema chinês na atualidade.
Enfatizando objetivos coletivos, o laboratório de experimentos sociais faz emergir um “modelo chinês” de socialismo. (NAUGHTON, 2017, p.22) Desta forma, a “lei do socialismo de mercado” estaria baseada na planificação do comércio exterior, transformando-o em bem público, planificado e de Estado, cujo equilíbrio entre políticas públicas, setor público empresarial, interesses empresariais privados e grupos internacionais, em última instância, asseguraria o sucesso do conjunto. Os investimentos globais, o Belt and Road e as novas instituições multilaterais modificam os termos de engajamento global da China, ensejando uma arquitetura diferente de poder e de gestão, um caminho alternativo para o resto do sistema internacional (LEONARD, 2008, pp.132-133), aparentemente mais equilibrado e harmônico do que as “economias de mercado ocidentais”.
Em suma, a evidência empírica é que o dragão chinês vem atravessando mudanças estruturais que somente podem ser compreendidas num horizonte estratégico de longa duração, possibilitando a discussão de três hipóteses em futuros trabalhos:
1) A China é uma economia de mercado firmemente subordinado ao planejamento estatal, no que Jabbour e Dantas (2017, p.804) denominam de novas e superiores formas de planificação econômica;
2) Há uma inadequação do termo “potência emergente” (STUENKEL, 2016, pp.31-32), uma vez que haveria, de fato, o ressurgimento do Oriente (FRANK, 1998) no sistema mundial no século XXI;
3) A busca pelo “sonho chinês” (PAUTASSO; UGARETTI, 2017, p.28), de harmonia nos planos interno – melhoria das condições de vida da população chinesa – e externo – via assertividade da projeção internacional com a multipolarização do poder.
Referências bibliográficas
ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith in Beijing: Lineages of the Twenty-First Century. London . New York: Verso, 2007.
ECONOMY, Elizabeth; LEVI, Michael, By all means necessary: how China’s resource quest is changing the world. New York: Oxford University Press, 2014.
FRANK, Andre Gunder. ReOrient: Global Economy in the Asian Age. Berkeley / Los Angeles / London: University of California Press, 1998.
JABBOUR, Elias; DANTAS, Alexis. The political economy of reforms and the present Chinese transition. Brazilian Journal of Political Economy, vol. 37, nº 4 (149), pp. 789-807, 2017.
KISSINGER, Henry. Sobre a China. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
LEONARD, Mark. What does China think? London: Fourth Estate, 2008.
LIMA, Marcos Costa. A nova teoria das relações internacionais chinesa e a ascensão do país: o conceito de Tianxia. In: VADELL, Javier (Org.). A expansão econômica e geopolítica da China no século XXI. Belo Horizonte: Editora Puc Minas, 2018. Cap. 1. p. 13-42.
MAÇÃES, Bruno. Belt and Road: a chineses world order. London: Hurst, 2018.
NAUGHTON, Barry. Is China Socialist? Journal Of Economic Perspectives, Nashville, v. 31, n. 1, p.3-24, 2017.
PAUTASSO, Diego; UNGARETTI, Carlos Renato. A Nova Rota da Seda e recriação do sistema sinocêntrico. Estudos Internacionais, Belo Horizonte, v.4, n.3, pp.25-44, 2017.
SHAMBAUGH, David. China goes global: the partial power. New York: Oxford University Press, 2013.
STUENKEL, Oliver. Post-western world: how emerging powers are remaking global order. Malden, MA: Polity Press, 2016.
VADELL, Javier; RAMOS, Leonardo; NEVES, Pedro. As implicações internacionais do modelo chinês de desenvolvimento do Sul Global: Consenso Asiático como network power. In: LIMA, Marcos Costa (Org.). Perspectivas Asiáticas. Rio de Janeiro: Folio Digital, 2016. p. 67-90.
[1] “The general principle of Tianxia—which literally means All-under-Heaven or World—is that relations between units or actors determine the obligations corresponding to their network ties. Relations are based on mutual benefit—or win-win in common parlance—and once established they should take precedence over individual choices. The Western mode of association, which presumes the autonomy of individual units and consists of clear boundaries between the Self and the Other, is excluded. No entity can think of itself in isolation.” (MAÇÃES, 2018, pp.27-28)
[2]“Encina (2009) afirma, neste sentido, que este tipo de capitalismo é ancorado na confiança como uma forma de capital social, num quadro de reciprocidade e de interesse mútuo. Tais elementos estabeleceriam um novo capitalismo com novas bases consensuais, distintas da estrutura hegemônica anglo-saxã. De fato, o discurso chinês do capitalismo harmonioso emerge concomitantemente à estratégia de política externa econômica ‘voltada para fora’, que fortalece um novo padrão, uma network Power comercial e de investimentos dinâmica e complementar, incrustada no sistema capitalista. A conseqüência política mais notável é a (re)emergência de um novo polo no centro deste estrutura, remodelando e reforçando a arquitetura da governança institucional global.” (VADELL; RAMOS; NEVES, 2016, p.82)
[3]“For the ‘New Left’, the key to the Yellow River Capitalism is a philosophy of perpetual innovation – developing new kings of companies and social institutions that marry competition and co-operation.” (LEONARD, 2008, p.36)
[4] “In addition to peaceful development, the other cornerstone of China’s international messaging in recent years is the concept of ‘Harmonious World’ (和谐世界). Put forth most systematically by President Hu at the United Nations in 2006, a harmonious world should have four principal atributes: effective multilateralism with a strong role for the United Nations, development of a collective security mechanism, prosperity for all through mutually beneficial cooperation, and tolerance and enhancement of dialogue among diverse civilizations. Like peaceful rise theory, “Harmonious World” theory posits
that China’s rise will not threaten or disrupt the existing global order.” (SHAMBAUGH, 2013, pp.219-220)
[5] “Rather than directly confronting existing institutions, rising powers (primarily China) are quietly building a so-called parallel order that will initially complement today’s international institutions. This order is already in the making, including institutions such as the BRICS-led New Development Bank and the Asian Infrastructure Investment Bank (to complement the World Bank), Universal Credit Rating Group (to complement Moody’s and S&P), China Union Pay (to complement MasterCard and Visa), and the BRICS (to complement the G7). These structures do not emerge because China and others have new ideas about how to address global challenges; rather, they create them to project their power, like Western actors have done before them.” (STUENKEL, 2016, p.203)
[6]“A expressão ‘ascensão pacífica’ ou ‘ascensão da China’ foi primeiramente utilizada pelo renomado professor Yan Xuetong da Universidade de Tsinghua, em seu controvertido livro que se intitula International Environment of China’s Rise, publicado pela Tianjing Renmin Chubanshe in 1998, e depois em seu artigo ‘The Rise of China in Chineses eyes’, publicado pelo Journal of Contemporary China (v.10, n.26, p.33-44, 2001). O conceito foi utilizado em termos da história chinesa e de seu ambiente internacional, mas também em termos de uma perspectiva da política internacional da China e de suas estratégias estabelecidas por lideranças chinesas para o presente e o futuro. A noção, contudo, de ‘ascensão chinesa’, causou debates internos no país após a publicação do livro em 1998. O governo chinês de Jiang Zemin rejeitou o conceito e a palavra ‘ascensão’ (Jueqi) foi proibida de aparecer em documentos oficiais.O conceito de ‘ascensão pacífica’ foi posteriormente reintroduzido em 2003 no Boao Forum por Zheng Bijian, chairman do Fórum de Reforma da China.” (LIMA, 2018, p.14)
[7] “Com o título de “Persistindo em tomar o caminho do desenvolvimento pacífico”, o artigo de Dai pode ser visto como uma resposta tanto a observadores estrangeiros preocupados com a possibilidade de que a China nutrisse intenções agressivas quanto àqueles dentro da China — incluindo, postula-se, alguns dentro da própria estrutura de liderança — que argumentavam que a China devia adotar uma postura mais insistente. O desenvolvimento pacífico, argumenta Dai, não é um artifício pelo qual a China “esconde seu brilho e ganha tempo” (como desconfiam alguns não chineses), nem tampouco uma ilusão ingênua que abdica as vantagens chinesas (como alguns dentro da China acusam). É a política genuína e duradoura da China porque serve melhor aos interesses do país e convém à situação estratégica internacional.” (KISSINGER, 2011, p.487)
[8] “One expression of this reversal has been what Joshua Cooper Ramo has called the Beijing Consensus-the China led emergence of “a path for other nations around the world” not simply to develop but also “to fit into the international order in a way that allows them to be truly independent, to protect their way of life and political choices. ” Ramo points to two features of the new Consensus that are especially appealing to the nations of the global South. One is “localization”-the recognition of the importance of tailoring development to local needs, which necessarily differ from one location to another-in sharp contrast to the one-size-fits-all prescriptions of the increasingly discredited Washington Consensus; and the other is ” multilateralism” -the recognition of the importance of interstate cooperation in constructing a new global order based on economic interdependence but respectful of political and cultural differences-in sharp contrast to the unilateralism of US policies.” (ARRIGHI, 2007, p.379)
[9] “Neste sentido, destacam-se algumas características do CA: 1) as possibilidade de uma maior margem de manobra política ou autonomia para os países subdesenvolvidos e em desenvolvimento como resultado de condições de maior permissibilidade internacional econômica. […] 2) A crescente interdependência entre a RPC e os países menos desenvolvidos não é uma ameaça real para os EUA. […] 3) A RPC visa a manutenção de relações harmoniosas e a promoção da estabilidade nas regiões menos desenvolvidas, a fim de garantir a segurança dos seus próprios investimentos e relações comerciais. […] 4) A China é uma nova opção de fonte de financiamento para os países africanos e latino-americanos. […] 5) Finalmente, o padrão de relação da RPC é baseado em uma estratégia bilateral de comércio e investimentos no processo de negociação com países menos desenvolvidos.” (VADELL; RAMOS; NEVES, 2016, pp.77-78)
Como citar:
RODRIGUES, Bernardo Salgado. O que é o Império do Meio? Diálogos Internacionnais, vol. 7. n. 69, mar. 2020. Acessado em: 23 mar. 2020. Disponível em: http://www.dialogosinternacionais.com.br/2020/03/o-que-e-o-imperio-do-meio.html