Volume 7 | Número 69 | Mar. 2020
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ACNUR Brasil |
Introdução [2]
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), ou Agência da ONU para Refugiados, é um braço das Nações Unidas fundado em 1950 para assistir as vítimas de perseguição, violência e intolerância, proteção de refugiados, assistência humanitária e resposta de emergência. [ROCHA, 2014, p. 11]. Está presente em 127 países e mais de 100.000 pessoas trabalham em suas atribuições. Em dados de 2015, havia um número equivalente a 50 milhões de pessoas atendidas pelos serviços da Organização. [CAMACHO, Marketing Social, 2017, p. 04]
Dentro de um Sistema Internacional conturbado, intenso, cheio de conflitos entre nações e reclamado pelos poderes de Estados, as instituições do Terceiro Setor se tornam extremamente importantes. São organizações sem fins lucrativos e, a priori, sem interesses partidários. Além da ACNUR, que tem foco na questão de refúgio, há: a UNICEF (The United Nations Children’s Found) para auxílio a crianças do mundo; Médico Sem Fronteiras baseados em questões de saúde, assistência humanitária em regiões de conflito, epidemias, desastres naturais e etc.; ONG da Igreja Cristã Manos Unidas, dedicada a acesso à alimentação, principalmente no continente africano; Cruz Vermelha, também dedicada à ajuda humanitária, apoio em áreas de conflito, e outros diversos apoios referentes à saúde. [CAMACHO, 2017, p.06]
Grande parte do dinheiro para o funcionamento da agência vem da própria Organização das Nações Unidas. No entanto, como outras ONGs e organizações sem fins lucrativos, a ACNUR faz frequentemente campanhas para arrecadação de doações, o que contribui para o financiamento de seus serviços humanitários. Para isso, o uso de técnicas de marketing é usada com força em suas publicidades para cativar o público a contribuir.
Veremos neste artigo técnicas de marketing na esfera humanitária e análises de algumas propagandas da ACNUR. Num arcabouço teórico do Humanitarismo e Pós-Humanitarismo, foi utilizada uma bibliografia diversa, com artigos das áreas de Comunicação Social, Relações Internacionais, Sociologia Internacional, além dos anúncios da organização.
Marketing Humanitarista
A comunicação humanitária tem dois principais objetivos: 1) visa estabelecer uma estratégia de relacionamento emocional entre o Ocidente e um doente distante com uma vista a propor certas disposições à ação em prol de uma causa; [CHOULIARAKI, 2010, p. 01] e, além da ideia contextual internacionalista de relação entre povos – “Ocidente” e outros –, 2) almeja seduzir pessoas para abraçar a ação e contribuir financeiramente com os projetos das organizações. Para isso, técnicas são utilizadas pelos profissionais da publicidade para provocar tais movimentos.
A psicologia é uma ciência que é aproveitada pelos anúncios publicitários. No caso das campanhas de Organizações Não-Governamentais e sem fins lucrativos com enfoque no âmbito humanitário, imagens como crianças – de preferência, negras e africanas – desamparadas, doentes, com lágrimas no rosto são utilizadas frequentemente para acarretar emoção no espectador. “O discurso ativa emoção, como indignação e culpa ou simpatia e gratidão para sustentar uma reivindicação legítima de ação pública sobre o sofrimento”:
Por que é tão difícil hoje em dia ficar indignado e fazer acusações ou, em outro sentido, tornar-se emocional e sentir simpatia – ou pelo menos acreditar por qualquer período de tempo, sem cair na incerteza, na validade da própria indignação ou da própria simpatia? [BOLTANSKI, 2000, p. 12, apud CHOULIARAKL, 2010, p. 109]
Segundo Chouliarakl [2010, pp. 110-114], há dois principais artifícios na comunicação Pós-Humanitarista: o recurso de “efeito de choque” e o de “imagem positiva”. Na de “efeito de choque” o intuito é gerar sentimento, aclamar o público, a partir do sofrimento mais intenso por imagens que remetem ao aspecto negativo. Geralmente são usadas imagens de crianças, mulheres e idosos – estas pessoas são classificadas como mais vulneráveis.
Esse recurso mostra o refugiado, a pessoa, desprovida de individualidade e muitas vezes relacionando-a a animais. Pode-se associar, de certa forma, a ideia de Zoe de Agamben [1995], no sentido em que a ACNUR retira a ação política dos refugiados ao postulá-los como seres apenas sofredores e resilientes, portanto passivos por sua condição.
Chouliarakl comenta sobre os riscos do “efeito de choque”. Para ele este tipo de mecanismo deixa o receptor do anúncio com sentimento de impotência ao ver imagens tenebrosas de situação de refúgio (efeito de espectador). Gera, em vez de vontade de ação, sentimento de fraqueza perante aquela realidade. Além disso, produz:
indignação das pessoas e não ao imaginado praticante do mal, mas em direção à mensagem de culpa do ‘efeito de choque’ por bombardear você com material que só faz se sentir infeliz e culpado em vez de facilitar o chamado a doação pública sobre o sofrimento, esses riscos podem enfraquecê-los (efeito boomerang) [2010, p. 112, marcação nossa]
A figura a baixo mostra a seção que aparece quando é selecionado o valor de 30 Euros de contribuição para a ACNUR na Espanha. Observa-se que embaixo do valor vem escrito “Alimento para 30 niños refugiados”. A colocação de “alimentação para crianças refugiadas” é artefato midiático para colaborar sentimentalmente para a contribuição.
Por outro lado, a “imagem positiva” tem uma estratégia oposta:
1) personaliza focalizando o apelo em indivíduos distintos como atores (por exemplo, como participantes de projetos de desenvolvimento) e 2) singulariza os doadores abordando cada um como uma pessoa que pode dar uma contribuição concreta para melhorar a vida de um doente (por exemplo, através do patrocínio de crianças).
Nos últimos 10 anos o mundo da comunicação sofreu grandes modificações. A transição de televisão e rádio para novas mídias da internet desmembram as estacas que mantinham a ordem dos meios de comunicação. As Organizações Humanitárias não ficaram fora desse escopo. Muitas ganharam presença em redes sociais como Facebook, Instagram, Twitter, levando a publicidade para locais onde não havia. Esta transição gera efeitos não apenas práticos e numéricos de arrecadação, por exemplo, mas levanta questões muito mais intimistas e psíquicas do que parece.
Nesse sentido é possível afirmar o que poderíamos chamar de Banalização do Sofrimento.
[3] Fenômeno da utilização do sofrimento alheio como mecanismo de captação de recursos, que é intensificado no momento em que se tem como meio a internet, espaço efêmero. Ao mesmo tempo em que o ingresso nessa nova mídia fornece maior público, é possível, em um click, apagar o anúncio e seguir assistindo vídeos de animaizinhos e memes engraçados.
Análises de Campanhas Publicitárias
Figura 01 – Spot to Refugee
Fonte: UNHCR, apud JANKS, 2005.
A figura 01 é um anúncio na ACNUR (UNHCR, sigla em inglês) que foi analisado por Hilary Janks em 2005. Em sua análise o autor faz alguns levantamentos a respeito das técnicas da arte e a reverberação no espectador. 1) o título do texto, que é uma instrução, já estipula que o refugiado seja singular ao ponto de ser diferente dos demais “Legos”. 2) Se você seguir o comando de procurar o refugiado na “quarta fila, o segundo da esquerda., aquele com bigode”, acabará por cair no jogo do anúncio e compartilhar da ideia de que a pessoa refugiada é de aparência característica.
Figura 02 – Refugees want the same problems you have
Fonte: UNHCR, 2010.
A figura 02 e a figura 03 são as típicas artes de apelo sentimental com base no que Chouliarakl chama de “efeito de choque”. Na figura 02 o ambiente é todo construído para parecer uma cena de guerra: construções destruídas, sujeira, desespero por parte dos atores. O ponto chave no anúncio é a ligação dos dois mundos – o do refugiado e do não refugiado – que está sinalizada visualmente pela lâmpada na parte superior, e pela frase. Na figura 03 representa uma região de escassez hídrica severa. A mulher negra com vestimentas não-ocidentais, céu escuro, vegetação quase inexistente, pedras, balde de água que simboliza a carência; todos esses aspectos atribuem à imagem angústia e tristeza.
O que é interessante nessas ilustrações é o toque de culpa que gera no leitor. As duas vêm com a seguinte frase: “Refugees want the same problems you have”. Numa sociedade estruturada pelo cristianismo, onde o sentimento de culpa é trabalhado culturalmente, ao ler esta frase e observar as imagens, nos defrontamos com o desconforto de observar os refugiados representados em situações totalmente diferentes daquelas em que vivem. Isto põe em xeque o sentimento de comparação da vida de um não-refugiado com a de um refugiado. Coloca em cena o sentimento de privilégio que é trabalhado para gerar ligação entre o espectador e o refugiado. Esta é uma técnica que contribui para criação de sentimento empático.
Figura 03 – Refugees want the same problems you have
Fonte: UNHCR, 2010.
Figura 04 – #GENTEDAGENTE
Fonte: ACNUR Brasil
Esta é uma campanha na ACNUR Brasil do ano de 2018. Foi difundida pelas ruas e avenidas do Rio de Janeiro no primeiro semestre daquele ano. Nela, algumas características devem ser levadas em consideração quando comparadas com propagandas de outras organizações e até mesmo da ACNUR.
A imagem mostra uma mulher de pele branca, bem-vestida, de aparência que remete a empoderamento e resistência. Ao lado direito da imagem tem seu nome, idade, profissão, status e nacionalidade, o que difere das anteriores onde a pessoa em si não importava, era relevante apenas sua situação de desumanidade. Portanto, nesta representação, a ideia de resistência e atividade está presente no lugar da resiliência e passividade.
Ao mostrar as informações da mulher em refúgio, cria-se intimidade e empatia com o espectador. Diferentemente da publicidade de “choque”, esta utiliza dados pessoais que a humanizam, o que incentiva uma possível doação. É importante notar o grande destaque concedido à profissão, característica extremamente vislumbrada num cidadão neoliberal.
Além do intuito primário de doações para a Agência, estas campanhas também colaboram para a desmistificação da figura do refugiado, que na maioria das vezes é visto como pobre, criminoso, pouco instruído e apartado da sociedade na qual está refugiado.
Conclusão
Como visto, instituições humanitárias não estão alheias aos mecanismos de publicidade. Estas podem ser usada tanto com o objetivo unicamente de ganho de dinheiro quanto com fins de ajuda humanitária. No entanto, os reflexos morais e éticos do uso da condição infeliz de uma pessoa, mesmo quando ela própria é a beneficiada, deve ser posto em debate.
A campanha #GENTEDAGENTE demonstra uma outra forma de jogar com os sentimentos. Além de menos usurpadora para os refugiados e, quiçá, mais eficiente em arrecadação, não contribui para reiterar certos preconceitos. Luta para mostrar, de uma maneira menos tirana, quem são essas pessoas que migram para ter uma vida melhor.
Referências:
CHOULIARAKI, Lilie. Post-humanitarianism. International Journal Of Cultural Studies, [s.l.], v. 13, n. 2, p.107-126, mar. 2010. SAGE Publications.
AGIER, Michel. Refugiados diante da nova ordem mundial.
Tempo Social: revista de sociologia da USP, São Paulo, v. 18, n. 2, p.197-215. Tradução de Paulo Neves. Disponível em: <
http://www.scielo.br/pdf/ts/v18n2/a10v18n2>. Acesso em: 5 dez. 2019.
[1] Bruno Gonçalves é Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estagiário da Marinha do Brasil (MB) e pesquisador do Núcleo da Avaliação da Conjuntura da Escola de Guerra Naval (EGN).
[2] Este artigo foi orientado pela Profa. Flávia Guerra, UFRJ, a qual sou grato pelo apoio.
[3] Referência à Teoria de Banalização do Mal de Hannah Arendt [1963].
Como citar
GONÇALVES, Bruno. Marketing Humanitarista: uma breve análise da ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Diálogos Internacionais, vol.7, n.69, mar.2020. Acessado em [13/01/2020]. Disponível em: http://www.dialogosinternacionais.com.br/2020/03/marketing-humanitarista-uma-breve.html