Volume 7 | Número 68 | Jan. 2020
Por Bernardo Salgado Rodrigues
 |
Wikipedia |
Uma das prioridades da política externa do presidente Xi Jinping foi o ressurgimento dos laços da China com o resto do continente euro-asiático, através da construção das chamadas “Rotas da Seda”, uma alusão ao termo cunhado em 1877 pelo geógrafo prussiano Ferdinand von Richthofen para descrever as rotas comerciais que conectavam a China ao oeste do Mediterrâneo durante as dinastias Han e Tang. (STUENKEL, 2016, pp.168-169; FRANKOPAN, 2018, p.2) Ao buscar reestabelecer o corredor econômico que uniu Oriente e Ocidente no primeiro milênio da era cristã, a China intenta fortalecer os laços econômicos entre Ásia, África e Europa com investimentos de bilhões de dólares, que favoreceriam a conexão e o comércio entre os países, assim como confirmaria, direta ou indiretamente, a disputa pelo poder global.
Em 2013, a Nova Rota da Seda (NRS), também conhecida como Cinturão e Rota, ou One Belt One Road (OBOR), foi proposta pelo presidente chinês Xi Jinping durante uma visita oficial à Ásia Central. Como maior conjunto de obras da história da humanidade, o projeto foi anunciado com orçamento de quase US$ 1 trilhão em investimentos em infraestrutura, principalmente na forma de empréstimos, para cerca de 1.000 projetos, possibilitando a propagação econômica ao criar um mundo interligado de linhas de trem, rodovias, portos de águas profundas e aeroportos que permitirão o crescimento das ligações comerciais cada vez mais intensas e rápidas. (FRANKOPAN, 2018, p.15) A NRS cobre uma área de aproximadamente 70% da população global, produz cerca de 55% do PIB mundial e possui cerca de 75% das reservas de energia conhecidas, exigindo a colaboração entre quarenta governos localizados ao longo da rota da seda terrestre e marítima.
A cúpula de Pequim tenta retratar uma visão compartilhada “win-win” multilateral, que conecta toda a Eurásia na forma de cooperação em distintas áreas, desde a redução de barreiras comerciais (incluindo obstáculos burocráticos), combate ao crime internacional, até segurança marítima. (STUENKEL, 2016, p.155) Seu escopo é tão amplo que o prazo para sua realização foi fixado em mais de trinta anos, com a primeira fase do projeto a ser concluída em 2021 (ano do centenário de criação do Partido Comunista Chinês) e o projeto como um todo realizado até 2049 (ano do centenário da Revolução Comunista Chinesa).
Diferentemente da concentração comercial da antiga Rota da Seda, o projeto “Um Cinturão, Uma Rota” inclue um sistema interconectado de transporte, energia e infraestrutura digital, que se transformaria gradualmente em conglomerados industriais e zonas de livre comércio e, em seguida, num corredor econômico que abrangeria construção, logística, energia, manufatura, agricultura e turismo, culminando no nascimento de um grande mercado comum (MAÇÃES, 2018, p.10) e desempenhando um papel decisivo no futuro geopolítico da Eurásia. (STUENKEL, 2016, p.159)
Este projeto seria viável através de uma série de configurações institucionais, como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB), em operação desde 2016 com capital de US$ 100 bilhões, assim como o próprio Fundo da Rota da Seda (Silk Road Fund), um fundo de investimento estatal do governo chinês criado em 2014, com aporte inicial de US$ 40 bilhões, para promover o aumento de investimentos em países ao longo do One Belt, One Road. Entretanto, uma das questões-chave continua sendo a forma de criar um financiamento de baixo custo nos mercados globais de capitais, cuja entrada do mercado de capitais privado será necessária, criando seus próprios mecanismos financeiros relacionados com a NRS.
Em maio de 2017, a China reuniu cerca de trinta líderes nacionais em uma cúpula inaugural dedicada a apresentar o conceito de Cinturão e Rota ao mundo inteiro. A realização do Fórum Belt and Road para a Cooperação Internacional foi apresentado como uma possibilidade real de alterar o jogo da economia global, um modelo de “globalização inclusiva”. Concomitantemente, foram marcados por uma exibição pública das dificuldades e oposição enfrentadas pelo projeto (MAÇÃES, 2018, p.12), tanto em termos locais como globais.
Given how expensive and durable the construction of train and road links is, Xi’s large-scale investments in the region may tie neighbors into a sinocentric Asia for decades, significantly reducing their governments’ capacity or incentives to oppose China. […] Western analysts often point out that China is likely to encounter strong resistance to its plan to strengthen connectivity both on land and sea. Among others, resurgent Russia and a more ambitious India are supposedly eager to block Beijing’s schemes. While such a possibility indeed exists, Chinese roads and ports are more likely to be welcomed with open arms by those who rightly see them as a chance to boost economic development. (STUENKEL, 2016, p.171)
A iniciativa possui componentes terrestres e marítimos, conhecidos respectivamente como o Cinturão Econômico da Rota da Seda (Silk Road Economic Belt) e a Rota Marítima da Seda do século XXI (Twenty-First-Century Maritime Silk Road). No mapa da Eurásia, a NRS aparece com nove flechas cruzando o continente em todas as direções: seis corredores econômicos em terra e três rotas marítimas. Desta forma, o idealizador do projeto, Xi Jinping, prevê uma “estrada marítima” de Quanzhou, na província de Fujian, na China, para a Europa, através do Estreito de Malaca, Kuala Lumpur, Sri Lanka, Nairóbi e Djibuti, além de duas outras rotas: uma através do Cazaquistão, Quirguistão e Irã a caminho da Áustria; e uma rota marítima da China para Antuérpia, na Bélgica. (STUENKEL, 2016, p.170) Ressalta-se ainda que a região possui um comércio de mercadorias de cerca de US$ 2 trilhões a cada ano, mais que o dobro do volume do comércio transatlântico e transpacífico. Complementarmente, é o eixo da economia mundial onde as restrições físicas e legais são mais significativas e, portanto, onde o potencial de crescimento é elevado.
In the description presented in Astana, the Belt looks like an extremely ambitious trade agreement organized along five separate dimensions. First, policy coordination, by which Xi means the attempt to find common ground for different national development policies. Second, transport infrastructure. Third, trade, the removal of trade barriers in the countries along the ancient Silk Road. Fourth, currency integration. Fifth, encouraging more intense exchanges and contacts between people. (MAÇÃES, 2018, p.25)
Além dos fatores apresentados, a NRS para a China consiste num meio para tergiversar o “Dilema de Malaca”: um choke point
[1] de vulnerabilidade chinesa a partir de um possível bloqueio naval americano do estreito de Malaca em caso de conflito, numa região que trafega 80% do petróleo importado da China. (MAÇÃES, 2018, pp.21-22) Alinhado a este fator geopolítico, a NRS proporciona um meio para desenvolver ainda mais o renminbi como uma moeda global de comércio e investimento, criando oportunidades para sua maior utilização em transações internacionais, especialmente aquelas relacionadas ao desenvolvimento de energia e ao investimento em infraestrutura, possibilitando maior captação de recursos e incentivando as empresas a utilizar a moeda no comércio transfronteiriço. (MAÇÃES, 2018, pp.22-23)
Em outros termos, a NRS não se configura única e simplesmente como uma rota comercial, mas um cinturão econômico, um espaço de profunda integração econômica. Em outros termos, significa que a China organizará e liderará uma parcela crescente das cadeias de suprimentos globais, reservando para si os segmentos de produção mais complexos e criando fortes vínculos de interdependência e colaboração com outros países. Politicamente, “deeper links of investment, infrastructure and trade can be used as leverage to shape relations with other countries even more in its favor.” (MAÇÃES, 2018, p.30)
A construção da NRS se baseia numa estratégia geoeconômica, compreendida como o uso de instrumentos econômicos para fins geopolíticos, tal qual definido por Blackwill e Harris (2016, p.20). A utilização de corredores de infraestrutura contribuem para a criação de uma Eurásia cada vez mais sinocêntrica, cujo vetor do desenvolvimento mundial resultaria em relações de crescente poder chinês, com o objetivo final de criar uma nova economia global centralizada no Império do Meio. Logo, após o comércio, os distintos fluxos propostos pela NRS seguirão e exercerão influência tanto cultural quanto politicamente. Parafraseando Mackinder quanto ao domínio do coração continental, “whoever is able to build and control the infrastructure linking the two ends of Eurasia will rule the world.” (MAÇÃES, 2018, p.2)
O Cinturão e Rota é o único projeto de desenvolvimento multilateral de grande escala no século XXI; é a matriz do planejamento chinês de longo prazo; é a ideia de construir uma nova ordem mundial, substituindo o sistema internacional liderado pelas potências ocidentais; é a representação da transformação da China de uma potência regional em uma potência global. Nesta nova ordem mundial, a projeção de poder de Pequim alcançaria mais de dois terços do mundo, refletindo a mudança em direção a uma estratégia de política externa mais ativa, que visa moldar o ambiente externo chinês em vez de apenas se adaptar a ele. Em suma, o século XXI é o século asiático, cujos acontecimentos nos países da Rota da Seda ganham cada vez mais relevância: decisões em Pequim e Moscou, em Teerã e Riad, em Délhi e Islamabad, em Cabul, Ancara, Damasco e Jerusalém, tendem crescentemente a moldar as relações internacionais contemporâneas. (FRANKOPAN, 2018, p.7) Como afirma Maçães (2018, p.30), “the Belt and Road is the name for a global order infused with Chinese political principles and placing China at its heart.”
Referências bibliográficas
BLACKWILL, Robert; HARRIS, Jennifer. War by other means: geoeconomics and statecraft. Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 2016.
FRANKOPAN, Peter. The new silk roads: the present and the future of the world. London: Bloomsbury Publishing, 2018.
MAÇÃES, Bruno. Belt and Road: a chineses world order. London: Hurst, 2018.
STUENKEL, Oliver. Post-western world: how emerging powers are remaking global order. Malden, MA: Polity Press, 2016.
[1] Na estratégia militar, um choke point (ou ponto de estrangulamento) é uma característica geográfica pelo qual uma força armada é obrigada a passar para atingir seu objetivo, corriqueiramente uma frente substancialmente mais estreita, diminuindo muito seu poder de combate.