Da coalizão à tentativa de governabilidade na Espanha

Volume 7 | Número 68 | Jan. 2020
Por Ana Paula Moreira Rodrigues Leite
Fagner Gamonal
Flávia Matilde Seidel Osório
Na escalada de crises políticas mundiais, os discursos sobre democracia vêm sofrendo um forte ponto de inflexão. Na Espanha, a política tem se voltado a levantar diversas bandeiras pulverizando o debate democrático sob diversas nuances. Assim como na América Latina, evocam-se as constituições para falar sobre democracia, ao mesmo tempo que se encontram brechas e atribuem-se interpretações enviesadas que acabam por vulnerabilizá-la. 
Depois de meses de impasse e duas eleições, Pedro Sánchez vem tentando ocupar o cargo de Presidente de Governo na Espanha desde junho de 2018. Dentre as principais propostas do novo governo estão: o aumento de impostos sobre renda maior que 145 mil euros ao ano, aumento do salário mínimo, limite à alta de aluguéis e subsídio à habitação, combate à diferença salarial entre mulheres e homens, reforma trabalhista e aumento da proteção social, bem como possibilitar o diálogo com os movimentos separatistas da Catalunha e do País Basco, mantendo-se o respeito à Constituição. Neste último quesito, é importante salientar, o novo governo não poderá ceder a qualquer pretensão independentista diante da proibição constitucional da separação do território espanhol.

Historicamente, a disputa política espanhola esteve polarizada em dois grandes partidos: PP e PSOE. O Partido Popular (PP), representando a direita espanhola, conta com alguns dissidentes do franquismo. Foi fundado em 1989, a partir da fusão da Aliança Popular (1976), Partido Democrata Popular (1982) e do Partido Liberal Espanhol. O Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), partido de esquerda, foi fundado em 1879 no seio da segunda Revolução Industrial apregoando valores marxistas, cujo dogmatismo foi abandonado a partir de 1979, estando atualmente ideologicamente enquadrado como sendo social-democrata europeu. 
Por grande parte do tempo da história da redemocratização espanhola, esses partidos tornaram-se majoritários entre o eleitorado, muito embora houvesse outros partidos menores. Esse cenário polarizado sofreu uma maior ruptura a partir da crise econômica de 2008, com o movimento dos Indignados[1] e o aparecimento de novos partidos e forças políticas, dentre eles o PODEMOS, fundado em 2014, situado à esquerda e que levantou a bandeira do câmbio político se apresentando como elemento de mudança. 
O PODEMOS, juntamente com outros partidos de esquerda incluindo os de cunho independentista, acirrou os ânimos políticos em uma conjuntura de crise econômica, desemprego, austeridade e aumento dos sentimentos nacionalistas independentistas como na Comunidade Autônoma da Catalunha. Esses são uns dos antecedentes que culminaram numa crise política com o surgimento de partidos mais à direita e, consequentemente, com o surgimento da crise de governabilidade a partir de 2018. 
Sánchez foi eleito indiretamente pelo Congresso de Deputados espanhol em meados de 2018, após articular a moção de desconfiança que culminou na saída do ex- Primeiro Ministro Mariano Rajoy, do PP, alvo de acusações de corrupção em seu governo. Formado o governo, Sanchéz teve pouca governabilidade. Após ter propostas orçamentárias continuamente derrotadas no Parlamento, Sanchéz solicita ao Rei Felipe VI a convocação de eleições gerais antecipadas, ocorridas em abril de 2019. A população vai às urnas e Sánchez é eleito para Primeiro Ministro, o que lhe rende força política. O que parecia uma maré favorável, foi apenas o início de uma série de novas dificuldades. 
O regime político na Espanha é o que se denomina Monarquia Parlamentar Constitucional, uma forma de parlamentarismo, com separação entre a Chefia de Estado e a Chefia de Governo, o primeiro exercido pelo Rei Felipe VI e o segundo por um Primeiro Ministro ou Presidente de Governo, escolhido por escrutínio popular que, após eleito, deve formar um governo com a chancela do Congresso dos Deputados, também eleito diretamente. O Congresso de Deputados é composto por 350 cadeiras, subdivididas entre 52 regiões, de acordo com o tamanho de sua população. O Primeiro Ministro precisa obter 2/3 dos votos, o que equivale a 176 cadeiras dos deputados, para formar o governo, cuja formação é autorizada pelo Chefe de Estado após ouvidos o eleito e as lideranças do Congresso. 
No parlamento, essa coalizão formada possibilita a posse do premiê para que comece a governar. Quando o primeiro ministro não tem uma margem de diferença de votos grande o suficiente em relação à oposição, pode ser dificultosa a formação da coalizão, que foi o que ocorreu nas eleições gerais em que Pedro Sánchez foi eleito Chefe de Governo, mas seu partido e demais lideranças de esquerda perderam o número de assentos no Congresso em relação ao escrutínio anterior. Por outro lado, os partidos de centro-direita e direita aumentaram sua participação. 

Nas legislativas realizadas em 28 de abril de 2019, o PSOE obteve 123 deputados (28,68% dos votos), o PP 66 (16,70%), o Cidadãos 57 (15,86%), a coligação Unidas Podemos 42 (14,31%) e o Vox 24 (10,26%), tendo os restantes deputados sido eleitos em listas de formações regionais, o que inclui partidos nacionalistas e independentistas. [2]

Após a eleição de abril, o governo não conseguiu formar uma coalizão e o congresso foi dissolvido em setembro e convocadas novas eleições para novembro. O impasse da ingovernabilidade e da dificuldade em se formar uma coalizão vem da divisão do congresso com três blocos de direita e três de esquerda. A coalizão só se tornou possível com um acordo com os independentistas, que temiam uma maior escalada da direita que vinha ganhando novas cadeira a cada pleito. Um exemplo disso é o VOX, que em abril ganhou 22 cadeiras, em novembro, mais que dobrou. 
De acordo com reportagem da Folha de São Paulo, O VOX aumentou de 24 para 52 deputados; O PSOE de 123 caiu para 120; o PP aumentou de 66 para 87; o Cidadãos caiu vertiginosamente sua representação de 57 para 10, e, a Unidas Podemos também perdeu cadeiras, caindo de 42 para 35.[3]
Com os repetidos insucessos na formação do governo, não restou alternativa ao premiê a não ser uma saída inusitada: negociar com o PODEMOS. Porém, essa coalizão ainda não era suficiente e dialogou com os partidos independentistas, donos de 18 cadeiras. A negociação com estes partiu da premissa da abstenção, para que se pudesse obter a aprovação do Congresso Espanhol por maioria simples na segunda rodada do Ato de Investidura, ocorrido em 07/01/2020. 
Mas este movimento demonstrou-se deveras arriscado do ponto de vista político. A súbita negociação de Sánchez com os independentistas desagradou grande parte de seu eleitorado. Os partidos independentistas têm em suas fileiras ex-combatentes de grupos considerados terroristas pelo Estado e seus anseios de separação muito claros, apesar da proibição constitucional. Muitos eleitores e congressistas veem risco no fato de que tais partidos sejam o verdadeiro pêndulo da legitimidade de Sanchéz. Agrava-se a situação pelo fato de Sanchéz ter considerado inicialmente receber apoio formal dos independentistas e tomada de parte no novo governo, optando pela estratégia de abstenção para evitar maior rechaço popular. 
Há chances de que, ao menor descontentamento, desencadeie-se uma prematura moção de desconfiança, repetindo-se todo o ciclo de Rajoy. Esse movimento pode ocasionar a eleição indireta de um novo líder frágil e a possibilidade de que o Rei seja instado à convocar novas eleições gerais antecipadas preocupa a nova coligação porque há chances de que seja eleito um novo Primeiro Ministro mais alinhado à direita. Da mesma forma, a agenda progressista do presidente pode ser de difícil implementação diante de seu apoio em patamar mínimo dentro do Congresso de Deputados, risco mitigado pela maioria do PSOE no Senado Espanhol. Com o precedente de eleição indireta, o Primeiro Ministro eleito não mais depende da votação a favor por 2/3 do Parlamento; bastou maioria simples para que ele se mantivesse no cargo e formasse a coalizão, o que garantiu a Sánchez manter-se como premiê. 
A falta de governabilidade que pairou sobre a Espanha nos últimos meses, portanto, teve a ver diretamente com, por um lado, separatistas e esquerda radical (os quais não são representados por Sánchez) tentando travar o país para vender sua pauta e, por outro lado, a direita radical travando o país pra não deixar que a esquerda assumisse, na figura de Sánchez que já estava fortalecida politicamente, uma vez que ele fora apoiado pela população em eleições gerais. Quanto aos 18 deputados separatistas que se abstiveram, suas abstenções garantem que estes favoreçam seu próprio eleitorado (tampouco representado por Sánchez) e eles serão o pêndulo para a governabilidade do Primeiro Ministro nos próximos capítulos de seu governo. 
O Ato de Investidura 
O processo se deu entre os dias 04 e 07 de janeiro de 2020. Em um primeiro momento, Sánchez defendeu a sua candidatura e passou pelo crivo dos congressistas. Em discussões extremamente acaloradas, cada parlamentar defendia sua posição partidária. Houve caso do chamado Transfuguismo, no qual o parlamentar vota de acordo com convicções pessoais em oposição ao próprio partido. 
Em alguns momentos o debate teve picos de tensões, principalmente em relação ao debate sobre o processo de independência catalão. Sánchez defendeu a possibilidade de um referendum, o qual é constitucionalmente inviável. A partir deste momento, a oposição o acusa de traidor do povo e da democracia e defenderam a continuidade de uma Espanha única. 
Outro momento de tensão foi quando Mertxe Aizpurua, do partido EH Bildu, do País Basco, subiu à tribuna e denunciou repressão política na Comunidade e rechaçou a Monarquia. Aos gritos de “terrorista” vinda do hemiciclo e com o silêncio de Sánchez diante de seu discurso, a oposição o acusou de contribuir com os partidos que cresceram nas fileiras dos movimentos separatistas mais ofensivos a criar o caos e a ruptura no país. 
Após um longo processo político para a formação de um governo, por fim, Pedro Sánchez, do PSOE, é aceito pelo Parlamento Espanhol com 167 votos a favor, 165 contra, ademais de 18 abstenções, em uma casa com 350 parlamentares, num resultado apertado para a coalizão de esquerda, o com menor vantagem desde a redemocratização espanhola, em 1978. 
A grande questão dos discursos durante esses dois dias que mais chamaram atenção dos autores desse texto é que a palavra democracia ganhou um significado da disputa do poder pelo poder. As palavras mais pronunciadas foram: “democracia”, “direita”, “esquerda”, “terroristas”, “independência” e “traidores”. Talvez nem cinco vezes tenham sido mencionadas as palavras: “povo” e “sociedade”! 
Diante do exposto, cabe a crítica ao modelo político espanhol no sentido da permissividade ao surgimento de países com pautas que afrontam a constituição. Ademais, quando Sánchez articulou a moção de desconfiança contra Rajoy, automaticamente abriu possibilidade para provar de seu próprio veneno e garantiu-lhe a ingovernabilidade. Ao mesmo tempo, no agravamento da crise política, fortaleceu forças de direita como o VOX, que se tornou a terceira força política com uma agenda ultraconservadora e de bases cristãs que pode tender ao crescimento. Portanto, o tiro parece sair pela culatra das esquerdas espanholas. 
Ana Paula Moreira Rodriguez Leite é pós-doutoranda do Instituto COPPEAD-UFRJ. E-mail: a.paulamrl@gmail.com

Fagner Gamonal é advogado, especialista em Direito Público

Flávia Matilde Seidel Osorio é mestre em Estudos Estratégicos de Defesa e Segurança Internacional pelo PPGEST – UFF. E- mail:flaviaseidel@ymail.com 


[1] Surgiu a partir dos protestos organizados em redes sociais, em 2011. Chamado também de 15M ou Spanish Revolution, foram pacíficos e com pautas bastante heterogêneas, entre elas o fim da polarização, o fim das medidas de austeridade e mudanças nos processos políticos. 
[2] DINHEIRO VIVO. Investidura de PM espanhol depende de acordo à esquerda. Portugal, 21 jul.2019. Disponível em: https://www.dinheirovivo.pt/geral/investidura-de-pm-espanhol-depende-de-acordo-a-esquerda/. Acesso em 09 jan.2020. 
[3] ANTUNES, Patu. Socialistas vencem com margem menos na Espanha e veem ultradireita avançar. Folha de São Paulo, 10 nov.2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/11/socialistas-vencem-na-espanha-mas-seguem-sem-maioria-para-governar.shtml Acesso em 10 jan.2020. 

Como citar

LEITE, Ana Paula Moreira Rodriguez; GAMONAL, Fagner; OSÓRIO, Flávia Matilde Seidel. Da coalisão à tentativa de governabilidade na Espanha. Diálogos Internacionais, vol.7, n.68, jan.2020. Acessado em [13/01/2020]. Disponível em: http://www.dialogosinternacionais.com.br/2020/01/da-coalizao-tentativa-de.html

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353