Por Ana Carolina Dias Terra [1]
e Rafaela Mello Rodrigues de Sá [2]
O filme Terra de Ninguém (No Man’s Land) de 2001 foi dirigido e escrito por Danis Tanovic e ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2002, com sua nacionalidade bósnia. A obra cinematográfica conta a história de um episódio da Guerra da Bósnia, em que dois soldados feridos, um de cada lado do conflito, se encontram em uma das trincheiras consideradas “terra de ninguém”, entre as duas linhas inimigas. O principal conflito entre eles é garantir sua sobrevivência e de um terceiro soldado, bósnio, o qual está sobre uma mina prestes a explodir. A dinâmica do filme se dá pela busca de resgate conjunta, apesar da rivalidade entre suas diferentes nacionalidades. A ONU participa deste episódio com a chegada de militares internacionais que buscam concretizar o resgate, salvando a vida desses soldados. Dessa forma, é possível perceber que um filme que retrata apenas um episódio específico da guerra, consegue representar toda a dinâmica da guerra, com a descrição da atuação de diversos atores envolvidos: exército sérvio, exército bósnio, militares da ONU atuando nas operações de paz e a mídia.
O filme, com grande qualidade técnica, utiliza artifícios interessantes para criar a atmosfera do conflito. A paleta de cor acinzentada, com tons esverdeados e amarelados, atribui destaque às cenas de sangue. Além disso, o uso de uma câmera detalhe, com takes aproximados, demonstra as emoções de desespero dos personagens. A relação entre o silêncio e a sonoplastia acentuada cria uma atmosfera de agonia, sentimento próprio de uma guerra. Desse modo, é possível afirmar que as opções técnicas feitas pelo diretor contribuíram para a construção de um clima que propiciou melhor imersão às adversidades do conflito.
A principal dinâmica que permeia todo o filme é uma exposição micro da guerra. O conflito entre o soldado sérvio e o soldado bósnio é uma visão endógena da guerra, vivida nas trincheiras. A angústia causada pela longa espera por resgate retrata bem os sentimentos de um conflito. Enquanto eles estão presos nesta situação, há diversos diálogos interessantes. Serão destacados dois. O primeiro é quando os dois soldados iniciam um debate sobre a guerra, constatando as condições violentas da guerra e acusando um ao outro de iniciar o conflito. O interessante dessa cena é que, assim como quem ganha a guerra que conta a história, no filme quem estava com a arma tinha razão, obrigando o outro a concordar. O segundo diálogo que merece ser destacado é quando os dois começam a falar de situações cotidianas da Iugoslávia, antigo país dos dois, e se vêem falando de uma mesma pessoa, a qual os dois conheciam. Nesse momento, é demonstrado um fator de identificação e proximidade entre eles, indicando a contradição presente no conflito, onde vizinhos começam a matar um ao outro.
A Guerra da Bósnia acontece no período pós-Guerra Fria, e neste momento é possível pontuar uma mudança no formato das operações de Paz. A dicotomia entre EUA e URSS, a disputa de interesses e a formulação do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) impediam que as intervenções fossem executadas de forma mais estruturada. Além disso, neste período havia certa primazia da soberania dos Estados sobre a proteção dos direitos humanos; logo, as intervenções só ocorriam se houvesse consentimento do Estado. Tudo isso gerava certa dificuldade para a realização das Operações de Paz. No entanto, com o fim da Guerra Fria e consequente dissolução da URSS, as agendas globais são ampliadas, o CSNU é “descongelado”, possibilitando uma ação mais condizente com sua função, e a soberania dos Estados é relativizada, ou seja, torna-se mais importante a garantia dos indivíduos pertencentes ao Estado do que a preservação da soberania do mesmo (HERZ, 1999).
[…] as intervenções humanitárias da ONU na era pós-Guerra Fria foram muito maiores e mais complexas do que as missões anteriores. Essas novas intervenções envolveram uma gama muito maior de tarefas, incluindo proteção de território, de pessoas, operações de ajuda, desarmar beligerantes, policiamento desmilitarizado, monitorando e executando eleições, e ajudando a reconstruir governos, forças policiais e exércitos. (FARRELL, 2000, p.310)
Assim como conceituado por Greitens, a participação da ONU no conflito da Bósnia é descrita no filme com base na ideia de proteger os direitos humanos, já que o principal objetivo demonstrado pelas equipes militares multilaterais é garantir a vida dos três combatentes presos nas trincheiras em meio às duas linhas de combate inimigas. Este conflito é descrito por Greitens como um dos conflitos que marcaram o debate sobre intervenções humanitárias. De um lado, um grupo que apoiava a intensidade do Peacekeeping e outro que via com críticas estas ações (GREITENS, 2000).
Em meio a trincheiras e minas prestes a explodir, os militares da UNPROFOR – UN Protection Force – iniciaram sua atuação para a operação de paz. Os militares da ONU só podiam observar e mediar o conflito, possuindo dois objetivos: evitar que um matasse o outro e acelerar o processo de paz. Entretanto, em uma das cenas do filme é expressa duas frases interessantes: “Ninguém é neutro diante da morte” e “Não fazer nada não é ser neutro”. Essas frasesprovocam reflexão sobre a atuação da ONU na guerra da Bósnia. Por isso, Greitens e Farrell criticam aatuação da UNPROFOR, afirmando que houve uma falta de poder para proteger os civis, os quais sofriam ameaças dos Sérvios. De acordo com Kofi Annan, em um depoimento no texto, as condições da guerra dificultaram as ações, uma vez que não havia acordo de paz nem cessar fogo, e as ordens para os militares da ONU não continham a provisão de combate ao genocídio. Além disso, a criação das “safe areas” na Bósnia não garantiu a proteção dos civis, já que o Conselho de Segurança não estava preparado para uma atuação eficiente. Havia também grande dificuldade com a comunicação, entre os exércitos locais e as forças da UNPROFOR, de forma que a diferença dos idiomas muitas vezes não permitia o diálogo.E a operação de paz era formada por militares de diversos países, demonstrando a cooperação militar nas ações para à paz. Kofi Annan dirá que um dos erros das forças da ONU na intervenção humanitária na Bósnia foi tentar “[…] manter a paz e aplicar as regras do peacekeeping quando não havia paz para manter” (ANNAN, 1999 apud FARRELL, 2007, p. 313). O caos, o genocídio, a limpeza ética e as brutalidades da guerra impediram que as forças de paz pudessem solucionar o conflito de forma eficaz. O ambiente no qual o conflito se enquadrava não permitia que esse formato de intervenção humanitária desse resultado.
De acordo com Farrell, a ampliação do formato das intervenções humanitárias no pós-Guerra Fria mostrou, em exemplos como no caso da Guerra da Bósnia, que dar uma grande missão à uma força modesta pode ser complicado. O General Sir. Michael Rose, primeiro comandante britânico da ONU na Bósnia, ressaltará que é preciso ter claramente separados os objetivos estratégicos de combate a guerra e a manutenção da paz, para que as vidas dos envolvidos no processo sejam mantidas, assim como o sucesso da missão. “Uma força de paz […] simplesmente não pode ser usada para alterar o equilíbrio militar da força em uma guerra civil” (ROSE, 1995, p. 23 apud FARRELL, 2007, p. 311)
Greitens e Farrell demonstram que, se tratando de intervenção humanitária, há uma dinâmica entre consentimento, força e imparcialidade, que se traduz no seguinte cenário: ao utilizar em primazia a força as operações tendem a deixar de ser imparciais e dividem o consentimento; mas, ao mesmo tempo, se há omissão da utilização da força, se torna difícil conter os beligerantes e dissuadir o processo de paz. As operações na Bósnia mostraram exatamente isso, como as forças de paz se dividem nesta dicotomia tentando realizar a intervenção (GREITENS, 2000).
A cobertura extensiva da mídia sobre o conflito impacta não só a opinião pública, mas também acaba trazendo consequências para o conflito. Dessa forma, a opinião pública é um fator relevante nas Intervenções Humanitárias, sendo cruciais para a sua legitimidade. A presença massiva da mídia nos conflitos levando ao público imagens e relatos da guerra contribui para aproximar, por exemplo, um telespectador ocidental de um conflito no oriente. As pessoas podem se tornar mais propensas ou não há uma intervenção dependendo da forma como a mídia repassa os fatos. “A opinião pública pode criar e quebrar intervenções humanitárias” (FARREL, 2007, p.318).
A relação entre a mídia e a opinião pública está presente em grande parte da história do filme. Jornalistas de todo o mundo buscam extrair imagens e depoimentos a todo momento dos atores da guerra, sejam eles os exércitos em conflito, ou os militares da ONU. Esta busca por informações é motivada pelo interesse da opinião pública em querer saber o que está acontecendo na guerra, acompanhando cada movimento pela televisão. Dessa forma, há um grande cuidado dos militares que estão executando a operação de paz em não provocar ações contrárias ao consenso moral da opinião pública. Dessa forma, os militares buscam o respeito dos direitos humanos, demonstrando a importância de uma vida.
Desse modo, há um grande cuidado dos militares que estão executando a operação de paz em não provocar ações contrárias ao consenso moral da opinião pública. Assim, os militares buscam o respeito dos direitos humanos, demonstrando aimportância de uma vida.Oargumento principaldo filme rodeia o processo de resgate de um homem em cima de uma bomba armada, baseando-se no princípio de que toda vida importa. No entanto, apesar de todosos esforços para tirar o homem de cima de uma bomba na frente das câmeras, aindahá uma construção da imagem para não chocar a opiniãopública. Isso acontece porque os militares da ONU falham em administrar a crise e dizem à mídiaque salvaramo homem, criando imagens para demonstrar isso. Porém, o homem sobre a bomba é deixado para trás, sem nenhuma ajuda se quer. Com isso, é possível fazer uma reflexão sobre a atuação da ONU no conflito: de que forma o respeito aos direitos humanos são executados para transmitir mensagens positivas aos telespectadores, com o intuito de não impactá-los?
Portanto, o filme é um retrato de um episódio da guerra da Bósnia, e mesmo não sendo baseado estritamente em casos reais, a história consegue transmitir dinâmicas reais sobre as intervenções humanitárias. Apresentando os principais atores em uma operação de paz, o filme é um ótimo instrumento para demonstrar como é feito um processo paz, destacando principalmente suas dificuldade e desafios.
Referências
FARRELL, Theo. Humanitarian Intervention and Peacekeeping. In BAYLIS, John, GRAY, Colis, WIRTZ, James e COHEN, Eliot. Strategy in the Contemporary World, segunda edição. Oxford and New York: Oxford University Press, 2007.
GREITENS, Sheena Chestnut. Humanitarian Intervention and Peace Operations inStrategy in the Contemporary World: An Introduction to Strategic Studies. John Baylis, Colin S. Gray, James J. Wirtz, 2000.
HERZ, Monica. O Brasil e a Reforma da ONU. Lua Nova [online]. 1999, n.46, pp.77-98. ISSN 0102-6445. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451999000100004>
Filme “No man’s land“. Direção de Danis Tanovic. 96 min., 2001.
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[1] [2] Graduação de Relações Internacionais na Universidade Católica de Petrópolis
Como citar:
TERRA, Ana Carolina Dias; SÁ, Rafaela Mello. Resenha “No Man’s Land” e Textos de Greitens e Farrell. Diálogos Internacionais, vol.6, n. 61, jun.2019. Acessado em [03/06/2019]. Disponível em: http://www.dialogosinternacionais.com.br/2019/06/resenha-no-mans-land-e-textos-de.html
Belissimo filme … Congratulações !!