Avanços e retrocessos: O desenrolar da crise política e econômica em Moçambique

Volume 4 | Número 41 | Out. 2017

Por Bernardo Oliveira

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A partir de 2011, ocorreram muitos confrontos entre o braço armado da Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), o principal partido de oposição moçambicano, e as forças armadas de defesa e segurança (FDS) de Moçambique no Centro e Norte do país. O partido de oposição exige o governo de seis províncias do país, onde afirma ter havido fraude eleitoral em favor do partido no poder, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Em maio desse ano, foi assinada uma trégua por tempo indeterminado pelas duas partes beligerantes. Como consequência disso, cerca de seis mil refugiados moçambicanos que se encontravam no Malawi retornaram ao seu país de origem¹.
Em 1992, foi assinado o Acordo Geral de Paz de Roma, que trouxe trégua a um conflito entre a FRELIMO e a RENAMO que data desde a época da independência do país, que ocorreu em 1975. O mesmo acordo estabeleceu as bases de um regime multipartidário em Moçambique, porém o primeiro partido está no poder há 40 anos. Os “dividendos da paz” (OYA, 2012, p. 402) do acordo de Roma não só trouxeram crescimento econômico, mas também desenvolvimento nas áreas de saúde e educação no país, que contou “com uma generosa ajuda internacional” (Ibidem).

O país manteve uma estabilidade relativa até entrar uma crise militar e política em 2011, quando Afonso Dhlakama, o atual líder do partido de oposição, questionou o resultado das eleições gerais moçambicanas e pediu maior presença da RENAMO nas principais instituições do país, como a Comissão Nacional de Eleição (CNE), por exemplo. Como as negociações com o governo não foram satisfatórias para Dhlakama, o mesmo estabeleceu uma base, nas montanhas de Gorongosa, com treinamento militar para os integrantes da RENAMO, o que acentuou a tensão político-militar. Depois de muitos conflitos, a mesma base foi ocupada pelas forças do governo em 2013 ². Em meados do mesmo ano, aconteceram diversas ações militares de ambos os lados do conflito e, concomitantemente, percebeu-se um esforço do governo de minimizar tais confrontos nos órgãos de informação públicos e privados, pois os altos dirigentes do governo se recusavam a assumir a situação de guerra do país, o que entrava em contraste com as evidências e opinião pública (BRITO, 2014, p. 23). Essas repetidas disputas armadas também foram motivos para condenação da ONU, que afirmava ser desnecessária medidas drásticas e uso de armas para resolver a crise política do país³.
Uma pesquisa afirma que a crise político-militar em Moçambique é resultado de uma má implementação de alguns pontos do Acordo Geral de paz, de 1992. Em outras palavras, a falha crucial da ONU foi não criar procedimentos de continuação do processo de desarmamento e desmobilização após o término da ONUMOZ, a missão de paz de implementação do acordo em Moçambique4 .Outra tese afirma que a dificuldade de se alcançar a paz é consequência de uma cultura política problemática moçambicana, onde não se debate a cidadania, no sentido de até onde o Estado deveria interferir nas liberdades individuais (MACAMO,2014, p. 55).
Tendo em vista esse contexto crítico, foram estabelecidas rodadas de negociação de paz entre representantes da RENAMO e FRELIMO, com mediação internacional reconhecida e selecionada pelos dois lados, para que não houvesse parcialidade. Os mesmos encontros se mostraram muito instáveis e tiveram diversas pausas até a declaração que finalizou a mediação internacional, feita em fevereiro desse ano pelo presidente de Moçambique, Felipe Nyusi. O próprio chefe de Estado do país afirmou que esses encontros auxiliaram na aproximação do governo com a RENAMO e que a partir do seu fim se iniciaria uma nova fase com a criação de grupos de trabalho compostos pelos dois partidos, que têm como função deliberar sobre assuntos considerados importantes para a resolução da crise5.
Os assuntos mais importantes debatidos nos grupos de trabalho são a necessidade de uma descentralização no Estado moçambicano, cessação dos confrontos militares, despartidarização das FDS, desarmamento do braço armado do partido de oposição e a respectiva reintegração de seus guerrilheiros na sociedade. Sobre a descentralização, Afonso Dhlakama, presidente da RENAMO, já reivindica que seja feita uma lei que permita eleições para governadores provinciais a partir de 2019 e outra lei que torne as finanças provinciais mais autônomas, o líder do partido de oposição deseja que tais leis já sejam aprovadas pela Assembleia da República no fim deste ano6. Outrossim, também já se tornou prioridade para Dhlakama, que os homens da RENAMO sejam desarmados e integrados na polícia e forças de defesa e segurança.
Uma possível consequência dos grupos de trabalho foi o anuncio de Afonso Dhlakama, em maio desse ano, declarando trégua por tempo indeterminado. O próprio presidente da RENAMO afirma que essa trégua “não significa o fim da guerra, mas o início do fim” 7, ou seja, só ocorreu o cessar-fogo, pois a possível assinatura de um acordo de paz depende da resposta do governo às demandas da RENAMO, destas, a mais imediata é a retirada das posições das FDS na região de Gorongosa.
Uma crítica pertinente às negociações para o fim da crise política e militar de Moçambique é que as mesmas ocorrem de forma fechada e secreta. Como afirma o ativista social moçambicano, Roberto Tibana, é de interesse da FRELIMO e RENAMO, que se mantenham as negociações excluindo outros segmentos da sociedade para que se mantenha a hegemonia política dos mesmos partidos. O historiador moçambicano Elcídio Macuacua também afirma que esse fato é grave porque “a história mostra que todo o processo que foi conduzido num modelo secreto não teve uma solução definitiva” (MACUACA,2017) 8.
Pode-se afirmar que a instabilidade política-militar é um dos fatores que agravam a crise econômica. Isso acontece porque a ocorrência de repetidos conflitos armados entre o governo e o braço armado da RENAMO deteriorou a reputação internacional de Moçambique, que é um país que necessita de investimento externo para executar diversas atividades. Ademais, o turismo também foi afetado, pois o acesso à diversos pontos turísticos remotos são feitos por meio de estradas, que foram evitadas por causa da violência9.
Outrossim, em 2016, causas externas também pioraram a crise econômica como a grande valorização do dólar e a queda dos preços das commodities importantes para a economia moçambicana tal qual gás natural, carvão, alumínio, açúcar e algodão. Esse contexto escasseou as divisas e desequilibrou a balança comercial do país10. No contexto interno, pode-se afirmar que a ocorrência de desastres naturais como a seca que atingiu a região Sul de Moçambique a partir de 201511, a desvalorização do metical, que é a moeda nacional, e o crescimento alarmante da inflação contribuíram fortemente para o colapso econômico.
Outro fator importante para a crise econômica moçambicana é a crise da dívida pública em que, desde 2013, o Governo de Moçambique contraiu, sem o conhecimento do parlamento e dos órgãos internacionais, cerca de 2 bilhões de dólares em empréstimos para 3 empresas estatais: A Proindicus, Mozambique Management Asset (MAM) e Empresa Moçambicana de Atum (EMATUM). Quando isso foi revelado, o FMI parou de cooperar financeiramente com o país e, posteriormente, mais 14 grupos investidores também o fizeram. O surgimento desse escândalo fez os juros moçambicanos se tornarem um dos maiores do mundo e diminuiu a nota do país nas agências de classificação de risco12. Na época, o FMI e outros credores afirmaram que só iriam renegociar a dívida ou cooperar com Moçambique depois da realização de uma auditoria internacional independente sobre os empréstimos13.
Tal auditoria foi realizada pela entidade internacional Kroll em parceria com a Procuradoria Geral da República e terminou no início de julho desse ano. De acordo com o economista Luis Magaço, a auditoria concluiu que os projetos que receberam empréstimos tinham o propósito de sustentar outras operações e não de gerar receitas para pagar a verba emprestada. Isso ocorre porque tais empresas não tinham capacidade de operação, os próprios barcos da EMATUM estão parados porque são inadequados para a pesca, por exemplo. De acordo com Magaço, tais dívidas deveriam ser pagas com as rendas previstas da extração do gás natural, que não obteve os lucros previstos. Além disso, o relatório também afirma que houve desvios de dinheiro massivos, como 500 milhões de dólares que deveriam ter sido enviados ao Ministério da Defesa, mas não se sabe a localização desse dinheiro14.
A partir disso, o FMI fez uma visita à Moçambique e pediu para o governo corrigir essas lacunas de informação resultantes da auditoria e exigiu que o governo reduzisse o déficit fiscal para o orçamento de 2018 por meios de diversas medidas de austeridade como redução de investimentos públicos, contenção da renda, eliminação de insenções fiscais, etc15. Entretanto existem opiniões que divergem sobre o que deve ser feito, como a dos próprios credores da dívida oculta, que em uma nota afirmaram que o governo não deveria assumir estas dívidas ocultas e deveria liquidar todas as empresas estatais envolvidas neste escândalo. Também apoiam a ideia de não pagamento da dívida os partidários da RENAMO, que afirmam que a Justiça moçambicana deve responsabilizar e penalizar os culpados por esses empréstimos16.
Portanto, percebe-se que 2016 foi um ano conturbado para Moçambique e que a aparição de problemas simultâneos como o colapso econômico, a dificuldade de se estabelecer a paz no conflito político-militar e as calamidades naturais abalaram as estruturas do status quo e mudanças na economia e política se tornaram necessárias. Entretanto, em 2017, surgiram acontecimentos animadores como a visível aproximação do governo com a RENAMO – ao ponto de se declarar uma trégua permanente no conflito – e também alguns indicadores macroeconômicos têm mostrado expressiva melhora, mesmo que isso não signifique uma melhora imediata nos indicadores sociais. Pode-se afirmar que a inflação tem desacelerado consideravelmente nos últimos meses, o metical se recuperou perante o dólar e o rand, a moeda sul-africana, e houve um aumento das reservas internacionais líquidas moçambicanas17. Dessa forma, pode-se afirmar que ainda existem muitos fatores e problemas a serem resolvidos e debatidos em Moçambique, porém a perspectiva de melhora de vida do povo no país tem crescido recentemente e isso traz esperanças para uma conjuntura mais agradável nos próximos anos.
 1 FOLHA DE MAPUTO. Seis mil refugiados regressaram ao país. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=o3Z47u1tbOk. Acesso em 23/07/2017. 
2 FRIZO, Pedro. Crise política em Moçambique põe em risco ganhos econômicos recentes. CEIRI Newspaper. Disponível em: http://www.jornal.ceiri.com.br/crise-politica-em-mocambique-poe-em-risco-ganhos-economicos-recentes/. Acesso em 15/09/2016.
3 OBSERVADOR. ONU condena “medidas drásticas” para resolver crise política em Moçambique. Disponível em: http://observador.pt/2016/10/24/onucondenamedidasdrasticaspararesolvercrisepoliticaemmocambique/. Acesso em 27/10/2016.
4 VOA PORTUGUÊS. Crise em Moçambique: Falha na consolidação da paz ou dificuldade momentânea?. Disponível em: http://www.voaportugues.com/a/crisemocambiquefalhaconsolidacaopazdificuldademomentanea/3397507.html. Acesso em 23/09/2016. 
5 VERDADE. Negociações para paz em Moçambique vão retomar em breve mas sem mediadores internacionais. Disponível em: http://www.verdade.co.mz/destaques/democracia/61052-negociacoes-para-paz-em-mocambique-vao-continuar-sem-mediadores-internacionais. Acesso em 25/07/2017.
6 ISSUFO, Nadia. Moçambique: Governo “marca passo” nas negociações de paz, acusa Afonso Dhlakama. DW África. Disponível em: http://www.dw.com/pt-002/mo%C3%A7ambique-governo-marca-passo-nas-negocia%C3%A7%C3%B5es-de-paz-acusa-afonso-dhlakama/a-39480575. Acesso em 31/07/2017.
7 LUSA. Afonso Dhlakama anuncia trégua por tempo indeterminado. Dísponível em: http://www.dn.pt/mundo/interior/afonso-dhlakama-anuncia-mais-60-dias-de-tregua-com-o-governo-mocambicano-5701967.html. Acesso em 25/07/2017. 
8 LUSA. “Secretismo” nas negociações de paz em Moçambique pode condicionar solução definitiva. Disponível em http://www.dn.pt/lusa/interior/secretismo-nas-negociacoes-de-paz-em-mocambique-pode-condicionar-solucao-definitiva-6244747.html. Acesso em 25/07/2017. 
9 VOA PORTUGUÊS. Crise política e militar afecta reputação de Moçambique, diz CTA. Disponível em: http://www.voaportugues.com/a/tensaopoliticomilitarpoderaafectaraeconomiamocambicana/3238746.html. Acesso em 15/09/2016.
10 DIÁRIO DE NOTÍCIAS. O ano de todas as crises em Moçambique. Disponível em: http://www.dn.pt/mundo/interior/oanodetodasascrisesemmocambique5152896.html. Acesso em 12/09/2016.
11 CALDEIRA, Adérito. Umbeluzi está seco. VERDADE. Disponível em: http://www.verdade.co.mz/nacional/60555-umbeluzi-esta-seco. Acesso em 22/12/2016. 
12 A BOLA. 2016: O ano em que os moçambicanos descobriram as suas dívidas escondidas. Disponível em: http://www.abola.pt/africa/ver.aspx?id=645789. Acesso em 20/12/2016.
13 O PAÍS. FMI apoiará Moçambique depois da auditoria forense. Disponível em: http://noticias.mmo.co.mz/2016/12/fmiapoiaramocambiquedepoisdaauditoriaforense.html. Acesso em 22/12/2016.
14 GOMES, Karina. Moçambique: Auditoria às dívidas ocultas prova que projetos serviram para “financiar outras operações”, diz economista. DW ÁFRICA. Disponível em: http://www.dw.com/pt-002/mo%C3%A7ambique-auditoria-%C3%A0s-d%C3%ADvidas-ocultas-prova-que-projetos-serviram-para-financiar-outras-opera%C3%A7%C3%B5es-diz-economista/a-39743647. Acesso em 24/07/2017.
15 MATIAS, Leonel. Moçambique: “Governo deve colmatar lacunas de informação” no caso das dívidas. DW ÁFRICA. Disponível em: http://www.dw.com/pt-002/mo%C3%A7ambique-governo-deve-colmatar-lacunas-de-informa%C3%A7%C3%A3o-no-caso-das-d%C3%ADvidas/a-39776956. Acesso em 24/07/2017. 
16 MATIAS, Leonel. Detentores da dívida dizem que Maputo não tem de pagar empréstimos. DW ÁFRICA. Disponível em: http://www.dw.com/pt-002/detentores-da-d%C3%ADvida-dizem-que-maputo-n%C3%A3o-tem-de-pagar-empr%C3%A9stimos/a-39496377. Acesso em 24/07/2017
17 PORTAL MOZ NEWS. “Moçambique Já Está Livre Da Crise” Disse Rogério Zandamela. Disponível em: http://portalmoznews.com/2017/06/mocambique-ja-esta-livre-da-crise-disse-rogerio-zandamela.html. Acesso em 04/08/2017 
Referências
BRITO, Luís de. Uma Reflexão Sobre o Desafio da Paz em Moçambique. In: BRITO, Luís de, et al. (Org.). Desafios para Moçambique 2014. Maputo. Iese. 2014. P. 23- 40 
DEUTSCHE WELLE. Diálogo político retomado em Moçambique. Disponível em: http://www.dw.com/pt/di%C3%A1logopol%C3%ADticoretomadoemmo%C3%A7ambique/a19546332. Acesso em 12/09/2016. 
DEUTSCHE WELLE. Afonso Dhlakama condiciona desarmamento a disponibilidade do Governo. Disponível em: http://www.dw.com/pt-002/afonso-dhlakama-condiciona-desarmamento-a-disponibilidade-do-governo/a-38805707. Acesso em 31/07/2017.
MACAMO, Elísio. Cultura política e cidadania em Moçambique. In: BRITO, Luís de, et al. (Org.). Desafios para Moçambique 2014. Maputo. Iese. 2014. P. 41-60.
OYA, Carlos. Crise global, crescimento e desafios para Moçambique e sua estratégia de desenvolvimento. In: BRITO, Luís de. et al. (Org.). Desafios para Moçambique 2012. Maputo. Iese. 2012. P. 387-409. 
VERDADE. Para quando o tão almejado encontro? [Editorial]. Disponível em: http://www.dw.com/pt/analistaprev%C3%AArondasnegociaisdepazdif%C3%ADceisparamo%C3%A7ambique/a19563807. Acesso em 23/09/2016. 
VOA PORTUGUÊS. Desastres naturais em debate em Moçambique. Disponível em: http://www.voaportugues.com/a/desastres-naturais-em-debate-em-mocambique/2921304.html. Acesso em 20/12/2016.

Bernardo Oliveira é graduando em Relações Internacionais na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353