Eleição estadunidense de 2016: projeto do novo século americano ou caos sistêmico?

Por Bernardo Salgado Rodrigues

Latuff Cartoons


No dia 20 de janeiro de 2017, Donald Trump tomou posse como 45º presidente dos Estados Unidos. Dentre as inúmeras controversas que a surpreendente eleição do magnata estadunidense ocasionou duas se destacam num pensamento de médio-longo prazo nas relações internacionais: se as eleições de 2016 consistiriam numa renovação do Projeto do Novo Século Americano (em inglês, Project for the New American Century, PNAC), ou se acarretaria no caos sistêmico, proposto por estudiosos de distintas correntes teóricas.
No século XXI, a governança global dos Estados Unidos consistiu no Projeto do Novo Século Americano, elaborado pelos neocons do Partido Republicano desde os anos 1990, que buscava a hegemonia unilateral dos Estados Unidos no sistema mundial, cujo objetivo declarado de promover a liderança mundial estadunidense desfazia qualquer intenção de poder global voltado para a multipolaridade ou o equilíbrio de poder. O Projeto exerceu influência sobre os altos escalões do governo dos Estados Unidos durante os mandatos do presidente George W. Bush no que se refere ao desenvolvimento militar e da política externa, particularmente com referência à segurança nacional e à guerra do Iraque. Assim, consiste numa tentativa de trazer à existência o primeiro império verdadeiramente global na história do mundo. (ARRIGHI, 2008)
O caos sistêmico se conforma com a desestabilização da configuração dominante de poder hegemônico, corroendo e alterando a estrutura da hierarquia de poder e riqueza entre Estados e empresas. “A perturbação tende a reforçar a si mesma, ameaçando provocar, ou de fato provocando, um colapso completo na organização do sistema.” (ARRIGHI; SILVER, 2001, p. 42). Assim, o caos sistêmico seria a situação de desorganização sistêmica aguda e aparentemente irremediável. Com papel fundamental, as expansões financeiras constituem um caráter contraditório neste processo, uma vez que mantêm a organização do sistema sob controle, inflando temporariamente o poder do Estado hegemônico em declínio através da liquidez nos mercados financeiros mundiais e, ao mesmo tempo, fortalecem a competição interestatal, interempresarial e aumentam os conflitos sociais, assim como transfere o capital para estruturas emergentes mais seguras e lucrativas.
Essa previsibilidade é obscura devido à instabilidade e complexidade que se anuncia após a eleição de Donald Trump. Entretanto, uma análise da configuração do Governo Trump e do ambiente internacional apontam tendências que possivelmente influenciarão nos desdobramentos políticos dos Estados Unidos a partir de 2017.
As nomeações do secretariado e alto escalão de seu Governo repleto de multimilionários e personalidades ligadas ao mercado financeiro e empresas bilionárias, como Rex Tillerson, presidente da ExxonMobil e magnata do petróleo, como secretário de Estado (pasta de maior prestígio depois da presidência); Steven Mnuchin, ex-funcionário do Goldman Sachs e financista de Hollywood, como secretário do Tesouro; James Mattis, apelidado de “mad dog” e general linha-dura e anti-islã, como secretário de Defesa; Jeff Sessions, senador pelo Alabama contrário a política de imigração e a favor da construção do muro na fronteira do México, como secretaria de Justiça; Ryan Zinke, ex-comandante das forças de operações especiais SEALs e que sempre votou contra pontos da agenda ambientalista, como secretário do Interior; Wilbur Ross, bilionário conhecido na reestruturação de empresas falidas (até mesmo do próprio Trump),contrário ao NAFTA e a entrada da China na OMC, como secretário de Comércio; Andrew Puzder, dono de uma cadeia de fast food e crítico da regulamentação trabalhista do presidente Obama e dos salários mínimos mais altos, como secretário do Trabalho; Tom Price, deputado pela Geórgia que se opõe ao Obamacare (Lei de Proteção e Cuidado ao Paciente), como secretário de Saúde; Rick Perry, ex-governador do Texas e com fortes ligações com a indústria petrolífera, como secretário de Energia; Betsy Devos, bilionária defensora da privatização da educação, como secretária de Educação; John F. Kelly, general da reserva e crítico da entrada de drogas e imigrantes pelo México, como secretário da Segurança Interna, são extremamente preocupantes para o eleitorado que o elegeu (pessoas brancas, sem curso superior, de renda baixa a média e que trabalham na indústria manufatureira tradicional) e para o mundo (protecionismo da maior economia do mundo).
Entretanto, tal configuração governamental não é nenhuma novidade: consiste num reforço da aliança ente setor privado e público[1], tão conectadas nos Estados Unidos desde o final do século XIX, quando se inicia o complexo industrial-militar. Não há condições de reverter as diretrizes da política industrial e exterior dos Estados Unidos no curto-médio prazo devido as pressões dos lobbies financeiros, políticos e midiáticos e as resistências internas nos aparelhos de Governo e do Congresso, e não seria a eleição de Trump o estopim de tal movimento.
No plano internacional, três questões se destacam: o deslocamento de poder para a Ásia e o papel da América Latina (para os Estados Unidos) nessa nova configuração; a ascensão do radicalismo nacionalista de direita nos Estados Unidos e no mundo; e um cenário econômico complexo e de futuras crises.
A aproximação de Trump com Putin tem objetivos geopolíticos no plano internacional: acessar os recursos energéticos russos no Ártico, no qual seu secretário de Estado possui papel fundamental ao possuir, desde 2011, um acordo entre a ExxonMobil e a estatal russa Rosneft, referente à indústria do petróleo; suavizar o papel da Alemanha na União Europeia e destruir o papel centrista que pretende jogar na Europa; e enfraquecer a relação sino-russa-iraniana que vem se configurando em torno de projetos estratégicos, buscando isolar os três países e, principalmente, a China. Entretanto, o país asiático já possui estratégias delineadas a partir de um mandato estadunidense de mudanças drásticas[2], e consiste num potencial estabilizador mundial e promovedor de acordos comerciais alternativos, diante das incertezas estadunidenses e retirada do Tratado Trans-Pacífico[3]. Ou seja, visualiza-se o início de uma reorientação estratégica, por parte da China, para se adequar a um mundo menos centrado nos Estados Unidos[4].
Na América Latina, a tensa relação com o México (e a possível renegociação do NAFTA[5]) é um prelúdio das relações com os países latino-americanos, ocasionando uma possível fuga de capitais estadunidenses para alguns países da região devido à expectativa de elevação da taxa de juros nos Estados Unidos em função do aumento nos gastos públicos, acarretando uma possível valorização do dólar e impactando negativamente a inflação e importadores latino-americanos. Referente a agenda estadunidense para a região, há duas perspectivas: uma de distanciamento relativo, tal qual fora realizado no Governo George W. Bush e ratificado por uma agenda mais doméstica e cética com respeito à globalização (e que abre espaço para a atuação mais incisiva da China), e outra baseada numa retomada mais enfática dos Tratados de Livre Comércio bilaterais em detrimento de projetos hemisféricos, detendo maior poder de persuasão nas negociações e buscando contrapor a expansão chinesa e ascensão do Brasil. Entretanto, no que tange a segurança, presença político-militar, atuação das empresas e financiamentos americanos na extração dos recursos naturais, tal agenda tende a ser constante e atuante.
Outro ponto seria a ascensão do radicalismo nacionalista de direita, um fenômeno marcante da segunda metade do século XXI, não somente nos Estados Unidos, mas na Europa, América Latina e no mundo. Atualmente, há uma descrença no modelo de democracia liberal, visualizada como fonte de imprevisibilidade, corrupção e nepotismo, cujas crescentes taxas de abstenção por parte dos eleitores que consideram a política algo distante de sua vida prática deturpa a própria noção de governo representativo. Neste sentido, a vitória de Trump, tido como outsider, anti-político e salvador da pátria para fazer a América grande outra vez fortalece essa tendência conservadora e, em certo sentido, de contestação, nos Estados Unidos e no mundo, no qual discursos populistas de direita, racistas, xenófobos e misóginos tendem a se disseminar.
Indubitavelmente, a crise no sistema financeiro afetou e afetará a estrutura econômica dos Estados Unidos, sustentada, principalmente, pelo complexo industrial-militar. Seja no Governo eleito ou nos próximos que virão, alguns especialistas afirmam que os Estados Unidos não terão mais recursos para continuar subsidiando a indústria bélica e toda a sua cadeia produtiva, sendo inevitável reduzir seus gastos militares. O presidente Trump, mesmo que trate de reduzir o déficit fiscal dos Estados Unidos (fato pouco provável), terá pouca margem de manobra e poder de barganha em determinadas agendas, não podendo, por exemplo, cortar substancialmente as encomendas com que o Pentágono subsidia a indústria militar, uma vez que diversas empresas desse complexo industrial quebrariam, aumentando o desemprego e arrasando os Estados onde estão instaladas. Suas principais preocupações deveriam ser, a princípio, os déficits gêmeos e a dívida externa, que tendem a crescer e provocar uma bolha, representada pelo complexo industrial-militar e inflada com recursos públicos. “Esta bolha mais dias menos dia vai estourar, como aconteceu com a bolha do sistema financeiro e a indústria automobilística.” (BANDEIRA, 2009, p.41-42)
Em outros termos, a contraposição entre o Projeto de Novo Século Americano e o caos sistêmico é provocativa e não definitiva, uma vez que a inédita eleição de Trump e a correlação de forças internas (nos Estados Unidos) e externas (no sistema internacional) no século XXI são incógnitas em diversos sentidos. Porém, um axioma é presente: Donald Trump nada mais é do que a expressão máxima do ambíguo e convergente papel de homens públicos e homens de negócios (statesman e businessman) nos Estados Unidos, “que saem das grandes corporações para o governo e vice-versa, através da porta-giratória do complexo industrial-militar e financeiro, predominante em Washington” (BANDEIRA, 2016, p.142), e que agora é o presidente da nação econômica e militarmente mais poderosa do mundo.
Referências bibliográficas
ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2008.
ARRIGHI, Giovanni; SILVER, Beverly J. Caos e governabilidade no moderno sistema mundial. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora UFRJ, 2001.
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Geopolítica e política exterior: Estados Unidos, Brasil e América do Sul. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2009.
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A desordem mundial: o espectro da total dominação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
[1] http://outraspalavras.net/terraemtranse/2016/12/20/capital-e-poder-os-empresarios-na-politica-norte-americana/
[2] http://en.siis.org.cn/index.php?m=content&c=index&a=show&catid=22&id=591
[3] http://americasquarterly.org/content/how-trump-benefits-china-latin-america
[4] http://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/13/opinion/1481645514_886736.html
[5] http://www.ictsd.org/bridges-news/pontes/news/trump-quer-renegocia%C3%A7%C3%A3o-do-nafta-e-sa%C3%ADda-da-tpp-no-in%C3%ADcio-de-seu-mandato

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353