Integração Energética: mais do que apenas um tema econômico e técnico, um tema político
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A integração regional é frequentemente associada aos mais diversos temas, como, por exemplo, economia, política, sociedade, cultura, infraestrutura, instituições, entre outros. Muito embora essa riqueza de abordagens seja extremamente importante e fundamental para o debate da área, o que ocorre frequentemente é a abordagem da questão exclusivamente baseada em um desses temas.
Como consequência direta disso, diversos trabalhos e diferentes pesquisas, ainda que tratem de uma mesma questão, não dialogam entre si. Pegando-se o caso do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), a abordagem econômica avalia o aumento do fluxo de comércio e investimento “intra-bloco”, por exemplo, evidenciando o aumento das variáveis como o produto interno bruto (PIB) ou mesmo a inflação na região. A abordagem física avaliaria a evolução do investimento em infraestrutura de transporte, energia e/ou telecomunicações na região, por exemplo, enquanto a abordagem institucional focaria no poder (e nas limitações) das instituições, como o Fundo para a Convergência Estrutural do MERCOSUL (FOCEM) ou o Parlamento do MERCOSUL (PARLASUL).
Japiassu (1976) evidencia a necessidade de existir a interdisciplinaridade e a integração dos saberes, sobretudo porque elas enriquecem a análise do objeto a ser avaliado. Nesse sentido, não nos limitaríamos a pensar nas fragmentadas “caixinhas” pré-estabelecidas pela influência positivista no fazer científico. É justamente essa a abordagem que se propõe nesse breve artigo, especialmente pela natureza transversal do objeto analisado.
Discutir integração energética é muito mais do que apenas avaliar o aumento da geração energética a partir das usinas binacionais e/ou multinacionais que foram construídas, o montante de capital investido na harmonização regulatória energética, ou investimento em interconexões energéticas; é também isso, mas, inclusive, uma diversidade de outras questões que precisam ser levadas em conta. No entanto, a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA)[1], primeira referência que se vem à mente quando se pensa na integração da infraestrutura física regional, trata da questão da integração energética olhando apenas essas variáveis apresentadas, por exemplo.
Nesse sentido, é necessário desconstruir uma série de mitos e mal-entendidos acerca do conceito de integração energética, em particular quando se leva em consideração o caso dos países da América do Sul (SANTOS, 2014a; QUEIROZ, SANTOS, PEREIRA JÚNIOR, 2015). Mais do que tratar a integração energética exclusiva e unicamente à luz das abordagens econômica e técnica, é necessário perceber que ela é imbricada de fatores políticos, que ora favorecem seu desenvolvimento, ora dificultam-no.
Resumidamente, Padula (2010) e Oxilia e Fagá (2008) destacam que houve dois grandes momentos da integração energética da América do Sul: um primeiro período, entre 1970 e 1980, com maior participação estatal nos projetos (com foco nas usinas binacionais, como é o caso da Itaipu Binacional[2]); e o período seguinte, a partir dos anos 1990, em que os projetos eram caracterizados pela maior participação dos investimentos privados.
O perfil da maioria dos projetos pode ser criticado por várias razões, particularmente por não haver uma integração efetiva do território sul-americano. Diversos são os estudos e projetos que sugerem uma integração energética da América do Sul dividida entre países do Cone Sul e países andinos devido às diferenças institucionais e regulatórias, como destacado por Santos (2014b), Rodrigues (2013), CIER (2011) e Vélez (2005).
Outra crítica, que muitas vezes aparece como sugestão de política, é a necessidade de se promover o protagonismo do Brasil para garantir de desenvolvimento da integração energética regional (CASTRO, 2010; DE OLIVEIRA, 2010), em particular devido à sua expertise em integrar o próprio território nacional. Fuser (2010), por outro lado, alerta para o perigo desse tipo de proposta, precisamente se levarmos em conta questões como soberania e autonomia dos demais estados na formulação das políticas comuns regionais.
Quando se trata especificamente da integração energética do MERCOSUL, é necessário levar em conta as mudanças políticas recentes para explicá-la com mais clareza. Desde meados de 2012, por exemplo, temos a Venezuela com status de membro pleno e, mais recentemente, em particular a partir de 2015, os esforços para a adesão efetiva da Bolívia[3].
Dessa forma, Santos e Varela (2016) destacam que o sistema energético de cada Estado influencia na sua estratégia de política externa, ratificando a hipótese de que a Política Externa Brasileira (PEB) de aproximação com a Bolívia e a Venezuela é resultado do interesse nacional no tocante à integração energética com ambos os países. Reforçam, assim, as relações intrínsecas entre integração física e variáveis políticas e, de modo mais amplo, a interface existente entre integração regional e políticas externas.
Tais relações entre os países originários do MERCOSUL com Bolívia e Venezuela se tornam mais complexas e complicadas com os eventos recentes, especificamente com a instrumentalização do MERCOSUL como meio de pressão unilateral dos países (com destaque para o Brasil) nos interesses regionais. Cabe destacar, nesse contexto, a recente suspensão da Venezuela do MERCOSUL, em 2 de dezembro de 2016, que retira um ator significativo do bloco, seja em termos econômicos, territoriais, populacionais e, particularmente, energéticos[4].
É interessante destacar como a variável energética é importante, muito embora ela seja frequentemente ignorada nos estudos de integração regional. O Paraguai sempre foi o país que inviabilizou a adesão efetiva da Venezuela no MERCOSUL e, devido ao impeachment (juicio político) do ex-presidente Fernando Lugo, houve a brecha para que o país tivesse sua adesão aprovada. Embora essa estratégia seja criticada por diversas razões, de fato, a entrada da Venezuela no MERCOSUL viria a retirar o peso (geo)político do Paraguai enquanto ator relevante no cenário energético, devido à sua dotação do recurso natural água. Hoje, contudo, com os preços do petróleo cerca de 50% inferior àqueles dos anos 2012, o país perde o papel estratégico de outrora[5].
Portanto, fica clara a necessidade de se avaliar diversas questões quando se trata de investigar a integração energética (não apenas no MERCOSUL, ou mesmo na América do Sul). Por isso, é fundamental perceber que o tema é muito mais do que um problema a ser pensado, problematizado e planejado por economistas e/ou engenheiros, mas deve sempre considerar as questões (geo)políticas que conduzem tais processos.
Justamente por isso, é fundamental estar atento à política doméstica e à política externa dos países envolvidos na iniciativa, de modo a identificar momentos de maior ou menor propensão ao desenvolvimento da integração energética regional, seja ela onde for. Evitando incorrer em análises de regionalismo comparado que “pecam” em considerar a gama particular de variáveis relevantes em cada um dos casos, mesmo na União Europeia (UE) o desenvolvimento das iniciativas de integração energética regional se deu por motivações políticas quando do pós-IIGM, com a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (CEEA), mais conhecida como Euratom.
Referências Bibliográficas:
CASTRO, N. J. O Papel do Brasil no Processo de Integração do Setor Elétrico da América do Sul. Rio de Janeiro. Texto de Discussão do Setor Elétrico TDSE 23, GESEL – Instituto de Economia-UFRJ, 2010.
CIER – COMISSIÓN DE INTEGRACIÓN ENERGÉICA REGIONAL. Proyecto CIER 15 – Fase II, Informe Final. CIER, Montevideo, Uruguay, 2011.
DE OLIVEIRA, Adilson. Energy security in South America: The role of Brazil. TKN series on trade and energy security. Geneva: TKN, 2010.
FUSER, I. A (des)integração energética na América do Sul: uma crítica ao Brasil-centrismo. IV Simpósio Lutas Sociais na América Latina: Imperialismo, nacionalismo e militarismo no Século XXI, Londrina: UEL, 2010, pp.115-124.
JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e Patologia do Saber. Rio de janeiro: Imago Editora LTDA, 1976.
OXILIA, Victorio Enrique; FAGÁ, Murilo Tadeu Werneck. As motivações para a integração energética na América do Sul com base no gás natural. Petro & Química, Ano XXX, nº 289, 2010, pp. 70-74.
PADULA, Raphael. Integração regional de infra-estrutura e comércio na América do Sul nos anos 2000: Uma análise político-estratégica. Tese (doutorado), Rio de Janeiro: UFRJ/COPPE, 2010
QUEIROZ, Renato; SANTOS, Thauan; PEREIRA JÚNIOR, Amaro Olímpio. “Para além da desconstrução de mitos e mal-entendidos a respeitos da Integração Energética da América do Sul”, 5th Latin American Energy Economics Meeting, Medellín-Colômbia, 2015.
RODRIGUES, Bernardo Salgado. A integração da infraestrutura de transportes, energia e comunicações no Mercosul. Anais do Fórum Universitário Mercosul – FoMerco, 2013, pp. 31-42.
SANTOS, Thauan; VARELA, Ian. A Diplomacia Brasileira a Serviço da Segurança Energética. V Congresso Internacional do Núcleo de Estudos das Américas (V NUCLEAS), Rio de Janeiro: UERJ, 2016.
SANTOS, Thauan. “A Critical Deconstruction of Myths and Misunderstandings about Energy Integration in South America”, 5º SimpoRI-UERJ, Rio de Janeiro-Brasil, 2014a.
SANTOS, Thauan. Integração Energética na América do Sul: desdobramentos do desenvolvimento institucional. Dissertação de Mestrado – Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2014b.
VÉLEZ, Jaime Alfonso Orjuela. Condições Econômicas e Institucionais para a Integração Energética na América do Sul. Dissertação de Mestrado em Economia: IE/UFRJ, 2005.
[1] Hoje incorporada ao Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (COSIPLAN) como foro técnico da União das Nações Sul-americanas (UNASUL).
[2] Em 17 de dezembro de 2016, a usina quebrou o recorde mundial em geração anual de energia e voltou a ser maior produtora de energia elétrica do mundo, superando os 98,8 milhões de MWh produzidos pela usina chinesa de Três Gargantas. Ver: https://www.itaipu.gov.br/sala-de-imprensa/noticia/itaipu-ultrapassa-tres-gargantas-e-reassume-lideranca-mundial-de-producao-d.
[3] Ainda que em determinada parte do próprio site oficial do MERCOSUL, a Bolívia já seja incluída como Estado Parte (membro efetivo). Em outras partes, destaca-se que o país ainda está em processo de adesão formal – apesar de a Assinatura do Protocolo de Adesão da Bolívia ao MERCOSUL ter ocorrido em 07 de dezembro de 2012 e ter sido ratificada por todos os Estados Partes, agora se encontra em vias de incorporação pelos congressos dos mesmos.
[4] Vale mencionar que a Venezuela apresenta forte potencial em termos hidrelétricos, bem como a maior reserva de petróleo do mundo – com base em dados de 2015.
[5] Certamente, há outras variáveis que justificam essa suspensão efetiva do país, a saber: o cenário democrático no país, foco de muita crítica, bem como o fato de ter completado quatro anos de adesão ao bloco, prazo máximo para que cumprisse todas as normas de adesão, sem fazê-lo.