Liderança carismática na América Latina

Por Bernardo Salgado Rodrigues

No último dia 21/02/2016, o presidente Evo Morales foi derrotado no plebiscito de reforma constitucional, inviabilizando que dispute mais um mandato na eleição de 2019, após ter sido eleito presidente em 2006, reeleito em 2010 e novamente em 2014.
Apesar do resultado desfavorável, a popularidade do presidente segue em alta, explicado pelos dados econômicos e sociais: uma revolução política e econômica num país que, até sua chegada ao governo, era recordista na região em quantidade de golpes de Estado e dos mais pobres de toda a América Latina. Iniciado em 2006, seu governo lançou políticas ousadas de redistribuição de renda com políticas sociais, em especial, aumento das aposentadorias e uma versão local do Bolsa Família; o percentual da população vivendo em extrema pobreza caiu de 38% para 24%, em seis anos[1]; nacionalizou setores estratégicos, como o gás e o lítio; possui uma média de crescimento de 5,5% a.a. nos seus dois primeiros mandatos, além do investimento estatal ter aumentado em 75%.
Entretanto, esse consiste em mais um exemplo da encruzilhada que os governos progressistas na América Latina se encontram (agregando-se a dependência do extrativismo como ferramenta de crescimento econômico, a dependência financeira de organismos multilaterais, a superexploração de trabalhadores, etc): o atrelamento da liderança carismática para sustentar a continuidade de tais processos é uma característica presente historicamente na América Latina.
A dominação carismática foi um termo utilizado pelo sociólogo Max Weber, em seu clássico texto “Os três tipos puros de dominação legítima”, onde a partir dos conceitos de dominação racional-legal, tradicional e carismática define as diretrizes do poder, da dominação e da legitimação. A dominação carismática é relacionada em virtude de devoção afetiva à pessoa do senhor, do seu carisma e suas vocação pessoais; é uma relação social especificamente extracotidiana e puramente pessoal, que se pauta na presença de um líder carismático.
Não que a relação entre um líder carismático e um processo revolucionário sejam dois fatores excludentes ou incompatíveis; pelo contrário, são parte de um mesmo processo, segundo Laclau, de ruptura de uma ordem liberal estabelecida. O problema se encontra quando o processo em si se vincula, única e exclusivamente, com a figura do líder carismático, onde a própria figura do líder se sobressai ao processo no qual se buscou implementar. Na América Latina, muitos são os exemplos de líder carismáticos que não conseguiram desvincular essa liderança e se encontram dependentes das mesmas para sustentar a continuidade de tais processos. A figura do líder carismático que assegure a voz das massas é imprescindível; mas essa liderança não deveria se sobressair ao processo que busca implementar, correndo o risco do processo se desgastar quando a figura da liderança não se torna mais presente, seja pela impopularidade ou ausência física, tendo como exemplo o processo venezuelano após a morte de Hugo Chávez.
No atual contexto boliviano, com o resultado adverso, o nome imediato para uma possível troca de poder no campo da esquerda seria o do Vice-presidente Alvaro Garcia Linera. Entretanto, dois empecilhos aparecem a sua candidatura: apesar de ser um grande intelectual boliviano, Linera não é indígena, em que num contexto onde 55% da população é indígena e 30% mestiça, tal fato possui um peso considerável. Em segundo lugar – e ainda mais importante – um verdadeiro líder, de dimensão nacional, é um fator que não se pode “preparar”. Todas as lideranças populares que realizaram uma contribuição individual decisiva para a História foram pessoas que construíram uma trajetória de luta, de uma oposição a ordem estabelecida de maneira criativa e original, lutando não só contra os poderes instituídos, as classes dominantes, mas também em luta contra ideias pré-estabelecidas e práticas inerciais no próprio campo popular.
O “desgaste” das lideranças carismáticas na América Latina ganha mais um protagonista. Entretanto, é inegável o papel central dos líderes carismáticos em alguns dos movimentos revolucionários mais bem-sucedidos e radicais; líderes que possuem um perfil ideológico heterodoxo, isto é, que mostram algumas das características típicas de populismo[2]: populismo entendido a partir dos termos utilizados por Ernesto Laclau, na obra A Razão Populista, num processo de demanda democrática numa operação de construção do populismo, entendido como um momento histórico de ruptura popular. É necessário examinar seriamente o porquê desse papel nos processos revolucionários, sem aceitar necessariamente as conotações negativas convencionais, e propondo alternativas na sucessão desses líderes.

Referências

LACLAU, Ernesto. A Razão Populista. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.

WEBER, M. Sociologia. Coleção grandes cientistas sociais, n. 13. São Paulo: Ática, 1979.



[1] http://www.cartacapital.com.br/blogs/outras-palavras/economia-o-notavel-exemplo-da-bolivia-6693.html
[2] http://www.scielo.org.ve/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1012-25082006000200004

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353