Vladimir Putin. 18/03/2014 [i]
Em 1904, Halford Mackinder apresentou na Royal Geography Society of London uma conferência intitulada “The Geographical Pivot of History” que, desde então, perdura no imaginário de homens de poder e teóricos das relações internacionais. Em pouco mais de quinze páginas, Mackinder convida-nos a pensar a história universal pelo prisma das condições geográficas. A história da Europa, neste sentido, estaria subordinada à da Ásia, sendo a civilização europeia produto de séculos de luta contra as invasões asiáticas. Estaria na parte central do continente euroasiático o pivô de todas as grandes transformações geopolíticas de dimensões globais.
Foi no auge do império britânico e da expansão dos Estados europeus que Mackinder propôs, como exercício de análise histórica, retirar a centralidade cartográfica da Europa, situando-a na condição periférica de península eurasiana, para, a partir daí, fazer suas considerações histórico-geográficas sobre a ascensão e declínio dos impérios e sobre a natureza do poder. Para Mackinder existiria uma área pivot (1904)
[ii]– cuja extensão foi outrora alterada pelo heartland(1919)
[iii]– em torno da qual gira o destino dos grandes impérios mundiais. Numa divisão do globo, considera que 9/12 do planeta são constituídos por águas oceânicas; desses 3/12 de terras emersas, 2/12 formariam a Ilha Mundial, uma extensão territorial que incluía Europa, Ásia e África. O restante, cerca de 1/12, compreenderia as Ilhas do Exterior (América e Austrália). Depreende-se daí uma máxima, espécie de síntese de seu pensamento: Quem domina a Europa Oriental controla o Heartland; Quem domina o Heartland controla a Ilha Mundial; quem domina a Ilha Mundial controla o Mundo.
Sua tese ganha força quando se considera o contexto de sua formulação. Em 1904, o domínio europeu era planetário. Transitava-se da era colombiana – época dos descobrimentos e do predomínio do poder marítimo – para a era pós-colombiana, um período cujo símbolo era a existência de um sistema político fechado. Com efeito, as guerras europeias passariam a ser, por excelência, em escala mundial. Daí a reedição, em bases modernas, da rivalidade secular entre poder marítimo e poder terrestre. A mobilidade oceânica era rival natural, sustenta Mackinder, da mobilidade terrestre. Com base no poder marítimo, os europeus cruzaram o cabo da Boa Esperança e conectaram as porções leste e oeste da Eurásia, neutralizando os povos das estepes da Ásia Central, conseguiram multiplicar por mais de trinta vezes o seu domínio em mares e terras exteriores. Entretanto, alerta Mackinder, a expansão sobre o mar ocorreu ao mesmo tempo em que os russos conquistavam as vastas terras da Ásia Central e Sibéria. Um movimento tão ou mais significativo que os dos europeus. A diferença entre o poder marítimo e terrestre não estaria em seus ideais, mas nas condições materiais de sua mobilidade, sobretudo, quando se considera o impacto que as ferrovias proporcionaram à organização dos territórios. Sua observação, ainda em 1904, foi a marca daquilo que se assistiu ao longo do século XX:
A Rússia substitui o Império Mongol. A pressão sobre a Finlândia, sobre a Escandinávia, sobre a Polônia, a Turquia, a Pérsia, a Índia e a China, substitui as investidas centrífugas dos homens das estepes. No mundo todo, ela ocupa a mesma posição estratégica central que a Alemanha ocupa na Europa. Pode atacar por todos os lados e pode também ser atacada por todos os lados, exceto ao norte. O completo desenvolvimento de sua moderna mobilidade ferroviária é uma mera questão de tempo. Nem é provável que alguma possível revolução social irá alterar suas relações essenciais com os grandes limites geográficos de sua existência (MACKINDER, 1904, p. 97) [iv]
Deduz-se de Mackinder que a geografia é um dos princípios fundamentais da política internacional, a chave do poder global estaria no controle da “área pivot” / “heartland”. É a geografia, e não a tecnologia e o poder bruto, que determina o local deste pivô. As mudanças tecnológicas, todavia, podem aumentar a capacidade do heartland de projetar poder fora de seu núcleo ou, o contrário, das potências marítimas conquistarem suas bordas.
Hans Morgenthau foi um dos críticos mais severos de Mackinder. Para ele, o geógrafo britânico se pautou em uma ciência com pouca validade teórica, sua análise histórica, assim como suas prescrições políticas incorreram em graves erros, fruto de uma visão deturpada e, por isso, determinista da história. Morgenthau coloca a geopolítica como exemplo de construção equivocada de avaliação de poder, pois partiria de uma condição específica, uma perspectiva que enaltece o caráter único do poder nacional. A geopolítica, para ele, transformava a geografia (no sentido de condições naturais) em um fator absoluto que “determinaria o poder, e portanto, destino das nações”
[v]. A rigor, diferentemente de Morgenthau, é difícil considerar que Mackinder teria sido um determinista, ele partia do princípio que as condições geográficas poderiam ser superadas, mas só quando tratadas com maior conhecimento. Em autores deterministas o pensamento tende a ser estático, em Mackinder, ocorre o contrário. A geografia é estrutura; é como, na linguagem de Fernand Braudel, uma força de atuação de longo prazo. Uma representação concreta das manifestações do tempo longo, que organiza de forma lenta e suficientemente fixa a relação entre a realidade material e os povos, àquilo que sustenta a formação e o desenvolvimento dos projetos civilizacionais.
É a história, mais do que os críticos e pensadores da política, que demonstra a importância das teses geopolíticas do britânico. Como diria outro clássico da geografia política, Friedrich Ratzel, a teoria de poder que faz abstração do território toma, invariavelmente, o sintoma pela causa. Pode ser que hoje o heartland tenha perdido sua exclusividade como reserva de recursos, fortaleza natural e berço de poder mundial, mas continua a ser um ponto estratégico para a projeção global de poder de qualquer Estado eurasiano. Permanece, enquanto realidade geográfica, central. Mackinder foi um dos autores mais refutados do século XX, sua relevância, entretanto, persiste. Os atuais impasses na Ucrânia, a anexação russa da Criméia[vi], o novo cerco da OTAN[vii], as tentativas de estabelecimento de sanções da União Europeia à Rússia e, por fim, a política norte-americana que, desde o pós-guerra, procura manter posições estratégicas nas bordas da Eurásia (Europa, Oriente Médio e Ásia Central, Extremo Oriente) são evidências de que existe alguma verdade perturbadora nos trabalhos de Mackinder.
Referências
[ii] MACKINDER, Halford. The Geographic pivot of History. 1904.
[iii] MACKINDER, Halford. Democratic Ideals and Reality: A Study in the Politics of Reconstruction. 1919.
[iv]MACKINDER, Halford. The Geographic pivot of History. 1904. [“O pivô geográfico da história”. GEOUSP: Espaço e Tempo, n. 29, p. 88-100, jun. 2011].
[v] MORGENTHAU, Hans. A política entre as nações: a luta pelo poder e pela paz. Editora Universidade de Brasília, 2003. (p. 309)
Hélio Farias é Bacharel e Mestre em Geografia pela UNICAMP (2008), Doutorando em Economia Política Internacional (PEPI/IE) na UFRJ e Professor do curso de Defesa e Gestão Estratégica Internacional (DGEI) na UFRJ.
Belo texto! Com o "fim da história" a impressão que dá é que o mundo ficou colorido e em paz. Por que não temos uma influência tão grande da cultura russa ou asiática no Brasil/America Latina? Não havia um equilibrio de forças, pelo menos no plano ideológico? Você acha que o Brasil tem condições de protagonizar alianças de integração efetiva na America Latina? Quais as direções que você apontaria pra isso?
São muitos questionamentos e todos dando margem para longas reflexões.
O fundamental é que o Brasil reconheça seus potenciais de inserção ativa no sistema internacional, sobretudo em seu entorno imediato, América do Sul e África. Para tanto, sustentar uma estratégia de longo prazo em diversas frentes, da integração produtiva à comunicacional, urge como tarefa. Um pensamento geopolítico não pode ser confundido com visões de curto-prazo e pautadas, apenas, em preferências comerciais.
Abraço, Hélio.
Boa noite professor! Em primeiro lugar queria agradecer o excelente trabalho que o senhor faz frente às turmas de DGEI/UFRJ, uma vez que ainda acho um único semestre pouco para destrinchar uma matéria tão importante para o estudo de Defesa.
Em observação a resposta de nosso colega que usa o pseudônimo "SCMarcos", essa termologia "fim da história", mesmo que usado de forma utópica não cairia bem, uma vez que a história é um ciclo evolutivo que não tem fim. Os Estados se transformam com o passar do tempo, mas os desejos velados de manter o controle sobre o"heartland" ainda continua sendo o fomento para que nações desenvolvidas busquem fundamentos para manterem posições estratégicas nas bordas da Eurásia, como podemos perceber nas sábias palavras do docente Hélio Farias.
Dito isto professor, considerando essas questões estratégicas, é perceptível que China e Rússia possuem características muito intrínsecas com o imperialismo, o que nos demonstra a diferença de propósitos estratégicos entre o Brasil e esses aliados que juntos com Índia formam o BRICS.
Visto que o Brasil possui uma visão estratégica muito diferente das grandes potências asiáticas, é possível afirmar que a formação trilateral IBAS é uma forma de buscar o desenvolvimento da nação com países que tenham a mesma infraestrutura que o país brasileiro, bem como um mesmo raciocínio evolutivo de prospecção de suas atividades produtivas e redução da pobreza? O senhor consideraria essas medidas brasileiras adotadas assertivas como forma de ajudar na promoção de seu desenvolvimento pleno?
Quanto as questões atuais que vislumbramos, que não é uma particularidade da Rússia, o senhor consideraria que a influência dos EUA sobre as demais nações desencadeia esse repúdio contra o povo russo, uma vez que os próprios americanos são praticantes dessa mesma política, porém com o subterfúgio de que "é tudo para o bem estar da nação mundial"?
Abraço, Marcos
Marcos Vinicius,
Grato pelos comentários, eles certamente requerem um aprofundamento das reflexões geopolíticas sobre o Brasil.
Penso que mais do que a quantidade e a diversidade de parceiros, o Brasil precisa de uma estratégia de integração regional e global coerente com uma perspectiva de conquista de maior autonomia no sistema internacional. Isso, sem dúvida, é resultado de uma lenta construção, demanda uma visão política que seja capaz de superar as oscilações fomentadas pelas alternâncias de governos ou pelas “vontades” imediatas do mercado. Abraço.