O Rock no contexto da Guerra Fria: Uma ponte entre dois mundos

Volume 9 | Número 91 | Jun. 2022

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Por Maria Vitória Elicher Alentejano

Este artigo buscou entender o papel do gênero musical Rock ´n´ Roll no contexto da Guerra Fria, nas décadas de 1960 e 1980. A perspectiva em voga entende este estilo musical enquanto movimento cultural e político, a partir do conceito de Revolução Cultural, de Eric Hobsbawm. O objetivo foi analisar o rock enquanto elemento de contestação político-cultural, desestabilizador dos governos e da coesão interna buscada, analogamente, pelos dois lados na Guerra Fria. Entendeu-se que o rock não esteve alheio às dinâmicas políticas da época e que se tornou um elemento aprofundador de instabilidades internas aos dois lados da disputa político-ideológica da Guerra Fria. 

INTRODUÇÃO

            O uso do termo “Cortina de Ferro” por Winston Churchill ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) anunciou o advento de uma nova configuração político-ideológica que definiria o sistema internacional nos próximos 45 anos: a Guerra Fria. Esta foi caracterizada pela oposição entre socialismo e capitalismo, representados, respectivamente, pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e pelos Estados Unidos da América (EUA), as duas grandes potências vencedoras da Segunda Guerra. Este processo não se restringiu à disputas de hard power[1], mas pelo contrário, também influenciou e foi influenciado por profundas transformações de caráter cultural, social, pessoal e geracional.

A percepção da relevância desses elementos para o que foi a Guerra Fria, levou o historiador Eric Hobsbawm a afirmar que “[…] o que realmente transformou o mundo foi a Revolução Cultural da década de 60” (HOBSBAWM, 2002, p. 290). Segundo ele a Revolução Cultural foi um processo de profunda transformação das relações entre os gêneros e entre gerações com impactos socioculturais profundos. Focaremos aqui na crise geracional que se dava em razão do advento de uma cultura jovem forte e autêntica que se tornou um agente social independente (HOBSBAWM, 1995, p. 137), dotada também de um potente caráter internacionalista. Esta juventude protagonizou os mais diversos movimentos políticos da segunda metade do século (FRIDMAN, 2021).

Em contrapartida, na estrutura interna de cada um dos ‘mundos’ deste período (capitalismo e socialismo), buscava-se construir uma estabilidade que garantisse sua legitimidade enquanto modelo. Logo, era primordial zelar pela manutenção e promoção das características culturais, políticas e morais próprias, tradicionais e constitutivas daquelas identidades. Nos EUA imperavam os valores e preceitos do livre mercado capitalista, e das tradições judáico-cristãs. Na URSS, a manutenção da coletivização dos meios de produção, da centralização econômica e do ateísmo.

No bojo da Guerra Fria, houve o advento de um novo tipo de juventude e de movimentos político-culturais internacionais. Um fator de destaque foi a ascensão do Rock ´n´ Roll, estilo musical estadunidense, derivado da mistura do jazz com o rhythm-blues, o gospel e o country (FRIDMAN, 2021). Entre as décadas de 1950 e 1980 o rock alcançou o mundo, ganhando novas versões, influenciando movimentos políticos e, sobretudo, sendo, ao mesmo tempo, criação e criador da nova juventude que emergia (HOBSBAWM, 1995).

Destarte, a partir do entendimento de que “o rock não restou à margem do que acontecia em outras esferas da sociedade” (FRIDMAN, 2021, p. 316), este artigo buscará analisar como as duas potências (EUA e URSS) lidaram com o rock em seus territórios, considerando convergências e divergências, e ademais, analisar o rock como elemento de contestação político-cultural, sendo entendido como desestabilizador dos governos e da coesão interna buscada, analogamente, pelos dois lados na Guerra Fria. 

A hipótese deste trabalho se organiza a partir de dois eixos: (a) o rock teve o papel de contestador dosestablishments (socialista e capitalista) devido aos símbolos sociais e políticos que construiu, ao mesmo tempo em que (b), como gênero musical e expressão cultural desempenhou papel de elo conector entre as duas realidades. 

O ROCK GANHA O MUNDO

Nos anos 1950 surgia nos EUA um novo ritmo musical que mudaria o mundo. As letras embaladas por ritmos dançantes e animados, heranças da música africana, em sua origem expressavam a dor e a luta da população negra dos EUA contra a escravidão, a segregação e o preconceito, ao mesmo tempo em que celebravam a fé e a importância da comunidade e das origens. Na década de 50, as obras de pioneiros do rock como Muddy Waters, Chuck Berry e Little Richard começaram a ser eternizadas pelos estúdios das gravadoras negras americanas: Motown, Sun, Stax e Chess Records. Aos poucos, ultrapassaram as fronteiras da segregação racial ganhando as lojas de discos de cidades como Chicago e Nova York, sob o nome de “black music”, sem, entretanto, deixar de ser alvo constante de preconceitos e apropriações (FRIDMAN, 2021).

Em 1953, surgia na cena musical um jovem cantor branco nascido no sul dos EUA: Elvis Presley. “Elvis, the Pelvis[2] como era chamado em homenagem a seus movimentos de dança, foi o grande responsável por popularizar o rock entre os brancos o que, nas palavras do produtor Quincy Jones, significou “The emotional revolution of young white america”[3].

Com o “embranquecimento” da música e a popularização através do rádio, da televisão e da indústria fonográfica estadunidense que, ao mesmo tempo, se internacionalizava, o Rock rapidamente ganhou a juventude de todo o mundo. Nos anos 1960, de 70% a 80% da produção da indústria fonográfica era vendida a jovens de 14 a 25 anos, predominantemente LPs de rock (HOBSBAWM, 1995, p. 317/318). Este, portanto, se tornou também um fenômeno comercial, além de sociocultural (GEBHARDT, 2013).

O rock adquiriu novas dimensões transformadoras quando alcançou a juventude europeia. Sua popularização, principalmente na Grã-Bretanha, deu origem ao fenômeno que ficou conhecido como “invasão britânica”. Este designa o momento em que bandas como The Beatles e Rolling Stones se apropriaram do rock, do blues e do country estadunidense, misturando as mais diversas influências para criar algumas das músicas mais emblemáticas da história como Yesterday, dos Beatles e Satisfaction, dos Stones. Na Europa, as letras exaltavam o espírito de uma juventude eufórica que buscava viver vidas mais felizes que as de seus pais, marcados por todos os traumas das décadas anteriores, como a Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial (FRIDMAN, 2021).

É importante mencionar que o rock enquanto nicho comercial só floresceu devido a características que marcaram a juventude que surgia (GEBHARDT, 2013). Os Anos Dourados do capitalismo, permitiram pela primeira vez que, nas famílias pertencentes à emergente classe média, os pais destinassem aos filhos um excedente da renda familiar (HOBSBAWM, 1995). Assim, “vestidos de autonomia e independência das gerações passadas” (Hobsbawm, 1995), esta nova juventude se tornou um grupo consumidor particular.

As indústrias da moda e fonográfica, por sua vez, souberam explorar gostos, desejos e sentimentos que mobilizavam tal juventude (HOBSBAWM, 1995). Os “ideais típicos” e os símbolos próprios do rock foram também explorados comercialmente. O uso do blue jeans, os novos cortes de cabelo e fumar cigarro Marlboro são alguns dos elementos que se tornaram símbolos materiais de pertencimento ao universo do rock. Assim, o rock também se tornou aos poucos uma mercadoria do capital, vide a relação natural entre cultura e consumo de massa que é estrutural da chamada sociedade pós-industrial ou sociedade de consumo (JAMESON, 1981).

Por outro lado, a partir dos anos 1960, devido à simbiose entre o rock e os movimentos de insurgência da década (FRIDMAN, 2021), o conteúdo político se torna parte essencial das letras das canções. Soma-se às já presentes referências à liberdade sexual e a outros tipos de irreverência juvenil, e assim consagra seu caráter underground e rebelde, reforçando-se enquanto movimento sociocultural revolucionário.

A relação entre a nova cultura jovem, contestação política e o rock também existia do outro lado da Cortina de Ferro. Desde o começo dos anos 1960, o consumo do rock ocidental mainstream alcançou os jovens soviéticos de toda a Europa Oriental por meio de um vasto mercado clandestino. Surgiam ao mesmo tempo na Alemanha Ocidental a “Neue Deutsche Welle”[4] (Nova Onda Alemã), na Polônia, o jazz-rock polonês, na Hungria o rock sinfônico húngaro e na Tchecoslováquia um tipo de rock com acentos eslavos e forte influência do free jazz (COSTA, 2010). Neste último, um importante acontecimento político, a Revolução da Tchecoslováquia (1989), teve forte influência da banda de rock tcheca “Plastic People of the Universe” como demonstra Costa (2010).

O ROCK COMO ELEMENTO POLÍTICO-CULTURAL

Segundo Hobsbawm (1995), apesar da retórica de disputa por supremacia ou aniquilação característica do período da Guerra Fria, o confronto direto entre as duas superpotências era descartado pelo cálculo de que a coexistência pacífica era a melhor estratégia a longo prazo, principalmente a partir da emergência da MAD[5] (Mutually Assured Destruction) que perdurou até os anos 1980. Para o autor, o âmbito da Guerra Fria onde a luta pela superação do outro realmente teria se dado, não teria sido dentro das decisões oficiais dos governos, mas sim nos serviços secretos (HOBSBAWM, 1995), e nas disputas político-culturais sutis e disfarçadas, internamente ou nas áreas sob disputa ao redor do mundo.

A interpretação aqui em voga busca mostrar que o rock foi crucial neste contexto, à medida que foi uma “(…) arte que expressou mais que revoltas juvenis ou identidades associadas a inquietações adolescentes.” (FRIDMAN, 2021, p. 316). Já a música enquanto elemento sociocultural, possui elementos psicológicos e simbólicos relevantes para a construção da consciência de grupos e lugares na medida em que se caracteriza como uma importante expressão da sociedade (CARNEY, 2007).

Fridman (2021), lembra que muitos consideram o rock individualista, hedonista e descolado de projetos e propostas políticas concretas. De fato, não é equivocado dizer que o gênero possui um aspecto individual, ao tratar do prazer e da felicidade, principalmente considerando músicas de décadas como as de 1950 e 1990. Porém, é mister considerar que o rock também tem uma dimensão de expansão do individual para o coletivo (GIDDENS, 2002). Um dos slogans de maio de 1968, “O pessoal é político”, expressa com exatidão este pensamento. Assim sendo, é possível argumentar que confrontos intelectuais e morais e as angústias individuais foram combustível para alterar os cenários sociais, principalmente em 1960 (HOBSBAWM, 1995). A letra da canção Imagine de John Lennon também é emblemática neste sentido: “You may say I’m a dreamer/But I’m not the only one/I hope someday you’ll join us/And the world will be as one[6].

Nesta perspectiva, principalmente por meio da juventude, este estilo musical foi instrumento essencial para a contestação dos efeitos do establishment gerontocrático (“governo de velhos”) em ambos os mundos do pós-guerra (HOBSBAWM, 1995). É possível mencionar rapidamente o movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos, os movimentos Pacifistas em todo o mundo, as Primaveras de 1968 e o movimento hippie na década 1960, todos sob forte influência do rock e de seus protagonistas.

É possível dizer que este configurou um elo entre angústias individuais e coletivas, das juventudes dos dois lados da ‘Cortina de Ferro’. Fosse nos EUA, na Europa Ocidental, na URSS ou nas periferias do sistema, cada região com suas contradições e disputas políticas específicas. Ademais, em toda parte onde o rock encontrou oposição das autoridades, acabou adquirindo um tipo diferente de valor e significado para aqueles cidadãos (CARNEY, 2007), conforme discutiremos a seguir.

O ROCK NO MUNDO SOVIÉTICO

O rock esteve efervescente na União Soviética, principalmente, na cena underground e nas universidades (COSTA, 2010). Para grande parte da juventude da URSS, a liberdade cantada pelas letras de rock reforçava a ausência de sua própria liberdade. Compartilhavam dos mesmos sentimentos de rebelião, insatisfação e descontentamento com as regras e limitantes sociais que os jovens do ocidente. Neste sentido, Gilmore (1960), expressa de maneira simples:

Nos anos 1960, enquanto os fãs se esbaldavam com o rock, partilhavam uma experiência estética que os transportava para outro terreno, em que “[…] a música era uma força unificadora […] ela tinha um peso político porque havia demarcado um idioma popular, encarnava o debate nacional e tinha o poder de convencer. (GILMORE, 2010, apud FRIDMAN, 2021, p. 329)

Costa (2010) ressalta que o intercâmbio entre jovens ocidentais e soviéticos foi essencial para a explosão do rock na URSS. O ativista e poeta Beatnik Allen Ginsberg, o líder da Students for a Democratic Society[7] de Chicago, Tom Hayden, e o músico canadense Paul Wilson, por exemplo, visitaram países da esfera de influência soviética na década de 1960 onde inspiraram a juventude e influenciaram a expansão da cena underground. Centenas de conjuntos de beat, pop, rock, folk e country, surgiram nos subúrbios proletários de Praga e em aldeias rurais, influenciados por bandas como The Beatles, The Doors e Velvet Underground (COSTA, 2010). A Primavera de Praga (1968) foi em grande parte produto desta efervescência cultural que, depois do período reformista sob a liderança de Alexander Dubcek, foi reprimida violentamente por Moscou, “com a invasão dos tanques soviéticos contra os cabelos compridos e o rock‘n roll” (COSTA, 2010, p. 01).

É importante ressaltar que a contestação por meio do rock dentro da URSS não era o equivalente a anticomunismo ou anti-socialismo. Pelo contrário, muitos artistas soviéticos eram convictos do socialismo e fizeram parte de movimentos que buscavam transformar aquilo que havia se tornado o socialismo da URSS, tais como Alexander Dubcek e o filósofo Egon Bondy. Ademais, nos movimentos de 1968, dos quais a Primavera de Praga foi um dos mais fortes, as propostas se voltavam de modo geral contra totalitarismos, práticos e simbólicos, onde se questionava, inclusive, a esquerda tradicional e suas rígidas hierarquias, o amortecimento de suas aspirações, as noções consagradas de representação e a incapacidade de transformar a vida imediata das pessoas (FRIDMAN, 2010).

Havia na URSS um entendimento de que as canções faziam apologia ao individualismo, à promiscuidade e às drogas. De fato, o rock não deixa de ser algo que exacerba a experiência individual, a felicidade, os prazeres, a consciência e um “utopismo individual da liberdade do ser e da mente” (FRIDMAN, 2010). Porém, tais elementos são sempre conjugados com uma contestação de caráter social: não é possível haver verdadeira liberdade do ser sem mudança social e cultural mediante a transgressão de padrões estabelecidos da ordem vigente. Desta forma, entre os anos 1950 e 1970, o rock era expressamente proibido na URSS, apesar das liberalizações da era do “Degelo de Kruschev”[8].

Portanto, pela conjugação de seu caráter comercial e de inspirador de contestações políticas, o rock sofreu perseguição na URSS. Canções eram censuradas e artistas perseguidos e o estilo era proibido nas rádios oficiais, além de ser banido de casas de show e de dança, onde era trilha sonora para danças como o boogie woogie e o twist. A Clärchens Ballhaus, casa de dança mais famosa de Berlim Oriental à época, por exemplo, tocava rock clandestinamente (Deutsche Welle, 2019). Cantores e bandas eram vigiadas por organizações estatais, pela KGB (a polícia secreta soviética) e por gravadoras oficiais. Os LPs dos Beatles, dos Stones, de Ella Fitzgerald, de Elvis, dos Beach Boys e de diversos outros artistas eram proibidos de serem vendidos e os instrumentos musicais, em sua maioria eram doados pelos governos (COSTA, 2010), restringindo a autonomia das bandas soviéticas.

Aos poucos também foram sendo desenvolvidas estratégias de controle via adaptação do estilo para os moldes aceitos pelo governo. Por exemplo, na República Democrática Alemã, tão próxima do enclave capitalista ultra-moderno de Berlim Ocidental e de outras cidades como Hamburgo e Leipzig[9], uma política de Estado começou em um esforço para desenvolver estrelas musicais equivalentes às da República Federal Alemã, fomentando o crescente movimento que ficou conhecido como Ostrock (rock do leste). O Ostrock era predominantemente mais conservador, entretanto, a cena underground não deixou de existir dentro do movimento. O estilo, até certo ponto, era aceito nos Festivais da Juventude[10] e os governos incentivam os artistas a não cantarem em inglês, e sim na língua de seus países.

Apesar dessas medidas, a música ocidental conseguia chegar via mercados clandestinos[11], intercâmbios entre estudantes e artistas e, dependendo da eficácia das interferências, através da captação de sinais de rádios ocidentais como a Rádio Liberty, a BBC e a Voice of America. Na segunda metade dos anos 80, com o começo da abertura soviética por meio da Perestroika[12] e da Glasnost[13]LPs passaram a ser lançados, artistas ocidentais foram chamados para shows e a repressão diminuiu.[14].

O ROCK NO MUNDO CAPITALISTA

De maneira análoga, no mundo ocidental, mesmo sendo cantado e tocado por jovens brancos, o rock ainda era estigmatizado e alvo de perseguições. O estilo era considerado sinônimo de “obscenidade e vulgaridade” e de desobediência às hierarquias e valores tradicionais da família. Até meados da década de 1970, o gênero era rechaçado pelos mais velhos e foi peça chave para alargar o abismo entre as gerações que caracterizou a Revolução Cultural da década de 1960 (HOBSBAWM, 1995).

Alguns elementos que foram mobilizados neste quesito foram o preconceito racial contra a população negra e social contra os mais pobres. Ainda, convenções e proibições expressas sobre comportamento corporal, como é emblemática a questão sexual, além da chamada “onda do medo vermelho”, que caracterizou a política de propaganda anticomunista durante a primeira parte da Guerra Fria.

Neste sentido, conforme aponta Fridman (2021), diversas forças conservadoras se uniam para se opor às manifestações político-artísticas do rock. Clérigos, psiquiatras e políticos buscaram o banimento do novo estilo denunciando-o enquanto incitador de delinquência juvenil, violência, do uso de drogas e de sexo. Discos foram queimados por DJs contra a ‘degeneração’ da música estadunidense. As forças policiais eram mobilizadas contra fãs, clubes, casas de show, festivais e artistas.

O fato de que os jovens de classes média e alta, pela primeira vez, começaram a aceitar e até a se apropriar da música, da linguagem falada e corporal, da dança e da moda das classes baixas urbanas também foi fator que mobilizou preconceitos históricos das sociedades ocidentais (HOBSBAWM, 1995). Nos EUA, berço original do rock, este componente era muito presente. As classes baixas das grandes cidades deram em grande parte compostas por negros descendente das pessoas escravizadas apenas um século antes, e eram ainda vítimas da segregação racial formal que persistiu nos EUA até os anos 1964 e 1965, quando foram revogadas as Leis Jim Crow e promulgadas a Lei dos Direitos Civis e a Lei do Direito de Voto.

O rock também estava ligado à crescente busca pela libertação corporal e sexual. O slogan de maio de 1968, “Quanto mais eu faço amor, mais tenho vontade de fazer a revolução, quanto mais faço a revolução, mais tenho vontade de fazer amor”, é lembrado por Eric Hobsbawm (1995), para expressar a ligação destes elementos com os movimentos de insurgência da época. Segundo o autor, o poder das lutas envoltas em sexo, drogas e rock n’ roll eram “as maneiras mais óbvias de despedaçar as cadeias do Estado, dos pais e do poder dos vizinhos, da lei e da convenção” (HOBSBAWM, 1995, p. 326). 

Os movimentos de contestação das guerras imperialistas por procuração dos anos da Guerra Fria também tiveram grande relação com o mundo do rock. Em 1960, esses movimentos se encontravam em comícios, shows, festivais de música, marchas anti-guerra, protestos, entre outras manifestações. Estes contavam com o apoio, participação e contribuição de diversos astros do rock como Janis Joplin, Jimi Hendrix, Bob Dylan, Eric Clapton e George Harrison. Muitos protestos e manifestações eram respondidos com extrema violência policial. O caso da repressão aos protestos contra a Convenção Nacional Democrata no verão de 1968, em Chicago, que resultou na prisão e no espancamento de centenas de manifestantes, foi emblemático desta prática do Estado norte-americano. 

Enquanto a URSS combatia o rock por considerá-lo individualista e consumista, paradoxalmente, no Ocidente ele era atacado pela propaganda anticomunista. Exemplo emblemático foi o panfleto “Communism, hypnotism, and The Beatles” lançado em 1965, pelo pastor evangélico David A. Noebel. O pastor defendia que o rock havia sido uma invenção soviética para produzir uma lavagem cerebral nos adolescentes (JACKSON, 2016 apud FRIDMAN, 2021, p. 327). Outro pastor evangélico, Jack Van Impe declarava: “A música que eles (soviéticos) planejam usar para demolir a moral dos Estados Unidos é esse lixo pútrido, obsceno, imundo, lascivo e devasso que se chama rock ‘n’ roll […]” (MITCHELL, 2015, apud FRIDMAN, 2021, p. 328).

É válido reafirmar que, no mundo capitalista, o rock foi inserido nos movimentos de cultura pop através de meios privados (GEBHARDT, 2013), pela grande mídia e pelos produtores de bens de consumo. Na  segunda metade do século XX passou fortemente a fazer parte do entretenimento de massa e alguns de seus símbolos se tornaram mercadorias para a nova juventude. A absorção do rock pela máquina capitalista também servia para tentar tirar deste seu caráter de rebeldia e contestação (FRIDMAN, 2021). Um importante exemplo disto era o hábito de filmar Elvis Presley apenas da cintura para cima em programas de televisão, evitando mostrar os movimentos de dança que este fazia com a cintura e a região da pélvis, considerados obscenos pelos grupos conservadores e tradicionais. 

Gebhardt (2013) ainda aponta para o fato de que raramente o rock ´n´ roll foi usado de maneira formal e evidente para instrumentalização de uma diplomacia cultural estadunidense[15]. É possível perceber, portanto, que apesar de ter sofrido algum grau de apropriação pela indústria cultural, o rock não perdeu seu caráter irreverente e contestador das normas sociais e do establishment ocidental, que foi extremamente forte na época em análise neste texto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O temor ao rock, portanto, esteve associado aos dois lados da Cortina de Ferro da Guerra Fria. Dada a riqueza de elementos que este conseguia mobilizar: ao mesmo tempo representava um utopismo individual da liberdade do ser e da mente e um ânimo social e cultural de transgressão de padrões estabelecidos, da ordem vigente e do inconformismo, articulados para construir um mundo melhor. Como afirmou a socióloga Bárbara Ehrenreich o rock encarnou “[…] o ponto de convergência de uma cultura alternativa inteiramente apartada das estruturas dominantes do governo, das corporações, da Igreja e da família” (EHRENREICH, 2010, apud FRIDMAN, 2021, p. 318). 

O rock, portanto, foi a trilha sonora intelectual e cultural de uma época, sendo elemento de união de uma nova geração que vivia em um mundo ideologicamente polarizado, aterrorizado pela ameaça nuclear e calcado em pensamentos, valores e convicções tradicionais e conservadores. Diante disso, foi o instrumento pelo qual se expressaram muito mais do que apenas desejos individuais de jovens inquietos. Efetivamente trazia ideais e sentimentos de liberdade, rebeldia, fúria, paixão e irreverência direcionados para a experiência coletiva no mundo. 

Tanto para os EUA quanto para a URSS, o rock foi um elemento aprofundador de instabilidades e de contestações internas ao poder estabelecido, em um momento em que estas potências lutavam pela supremacia no âmbito externo. Ressaltamos, portanto, com as emblemáticas palavras de Pete Townshend, guitarrista, compositor e cantor da banda The Who: “Os jovens, no entanto, herdeiros do justificado comedimento e da contenção de tempos tão duros, ousaram resgatar […] a alegria e a raiva de uma geração que lutava pela vida e pela liberdade.” (TOWNSHEND, 2013 apud FRIDMAN, 2021, p. 320). Nessa perspectiva, buscamos mostrar como o rock ´n´ roll teve um papel fundamental em um momento revolucionário na história contemporânea mundial. Ao mesmo tempo, foi capaz de promover o resgate de sentimentos e emoções perdidas pelas gerações endurecidas e traumatizadas pelas guerras da primeira metade do século, e, indo além, logrou inspirar as mentes e a ação de várias gerações que contribuíram substancialmente para os avanços de direitos sociais e políticos.

REFERÊNCIAS

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COSTA, Mauro José Sá Rego. A Gente Plástica do Universo. Rock´n roll e Revolução na Tchecoslováquia. Caxias do Sul/RS, XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2010.

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FRIDMAN, Luis Carlos. Rock e insurgências nos anos 1960. Revista Antropolítica, n. 51, Niterói, p. 315-334, 1. quadri., 2021.

GEBHARDT, Matheus Schneider. O Rock’n’roll como fonte de soft power: análise do papel da música na construção do prestígio externo dos Estados Unidos. Porto Alegre, UFRGS, 2013.

GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: O breve século XX. 1914-1991. Editora Companhia das Letras, 2a edição, São Paulo 1995.

HOBSBAWM,  Eric  J. Tempos  interessantes: uma  vida  no  século  XX.  São  Paulo: Companhia das Letras, 2002

JACOB, Leonardo Maurício. Rock em língua alemã: A Neue Deutsche Welle na Alemanha Ocidental (1979-1985). Londrina, UEL, 2013.

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MANRIQUE, Diego. A grande história secreta entre o rock e o comunismo. El País, Brasil, 2016. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/01/cultura/1459516339_893184.html ; Acesso em 4 de Junho de 2021.

MARTINELLI, Caio Barbosa. O Jogo Tridimensional: o Hard Power, o Soft Power e a Interdependência Complexa, segundo Joseph Nye. Revista Conjuntura Global, vol. 5 n. 1, jan./abr., 2016, p. 65-80.

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SOLT, Andrew. Documentário ‘The History of Rock – Rock ‘n’ Roll Explodes’. Time Life Video &  Television, 1995. Disponível em:  https://www.youtube.com/watch?v=U2Ptv_7VqO4 ; Acesso em 30 de Maio de 2021.


[1] Conceito formulado pela primeira vez pelo estadunidense Joseph Nye, pertencente à corrente realista das relações internacionais. Designa a capacidade de um corpo político (geralmente, um Estado) de influenciar ou exercer poder sobre o comportamento de outro, mediante o emprego de recursos militares e econômicos. (MARTINELLI, 2016)

[2] “Elvis, a pélvis” (tradução da autora).  

[3] “A revolução emocional da juventude branca estadunidense.” (Tradução da autora). Depoimento do produtor musical Quincy Jones no documentário ‘The History of Rock – Rock ‘n’ Roll Explodes’, de direção de Andrew Solt.

[4] A “Neue Deutsche Welle”, em português ‘A Nova Onda Alemã’, é um gênero musical derivado do punk rock e do new wave que surgiu na República Federal da Alemanha (Alemanha Ocidental) em meados dos anos 1950, a partir do intercâmbio com artistas estadunidenses e britânicos. (Jacob, 2013)

[5] Em português, “destruição mútua inevitável” era a ideia predominante na Guerra Fria de que, a eventual eclosão de um confronto nuclear entre EUA e URSS significaria o fim da vida na terra como a conhecemos (Hobsbawm, 1995, pág 224)

[6] “Você pode dizer que eu sou um sonhador/Mas eu não sou o único/Espero que um dia você se junte a nós/E o mundo será como um” (Imagine – John Lennon) – Tradução da autora

[7] Na sigla inglês SDS, Students for a Democratic Society (Estudante por uma Sociedade Democrática) foi uma organização de estudantes estadunidenses que surgiu nos anos 1960 como um dos principais representantes da Nova Esquerda no país. Tinha como uma de suas principais bandeiras uma nova concepção de democracia participativa. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Students_for_a_Democratic_Society>. Acesso em 04 de junho de 2021.

[8] O chamado “Degelo Soviético de Kruschev” designa o período de transformação da sociedade soviética provocadas pelas políticas de relativo relaxamento da repressão política e da censura em meio às políticas de “desestalinização” implementadas pelo novo líder soviético Nikita Khrushchev. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Degelo_de_Kruschev>. Acesso em 04 de junho de 2021.

[9] Nestas cidades se localizavam famosos clubes como o The Star-Club e o Indra Club que receberam músicos como Jimi Hendrix, The Beatles, Black Sabbath, Little Richards, Jerry Lee Lewis, Bo Diddley e Ray Charles durante os anos 1960. (The Beatles – Antologia, 2013)

[10] Os Festivais da Juventude eram eventos de intercâmbio entre as juventudes dos países da zona de influência soviética, frutos das leis da solidariedade que obrigavam as nações do Pacto de Varsóvia a realizar trocas culturais entre grupos. (MANRIQUE, 2016)

[11] Por exemplo, através dos roentgenizdat, em inglês Rock on Ribs, técnica de gravação fonográfica feita sobre raios-X, que ficaram conhecidos como “música de osso”.

[12] Em português “reconstrução” ou “reestruturação”, a Perestroika foi uma política de reformas econômicas de abertura da URSS para o mundo capitalista introduzida por Mikhail Gorbachev, em 1986.

[13] A Glasnost (“transparência”) foi um processo de abertura política que acompanhou a reforma econômica na era Gorbachev.

[14] Mikhail Sergeyevich Gorbatchov foi o último líder da URSS, entre os anos de 1985 e 1991, quando a URSS se dissolveu. Foi responsável pelas reformas de abertura e democratização da URSS: a Glasnost, que permitiu mais liberdade de expressão e de imprensa, e a Perestroika, reforma política e econômica. 

[15] Exemplo emblemático deste tipo de política foi a dos “embaixadores do jazz”, que ocorreu entre os anos 1950 e 1960. 

Maria Vitória Elicher Alentejano é graduanda de Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora de iniciação científica pelo LEMADRIN – Laboratório de Estudos em Meio Ambiente, Desenvolvimento e Relações Internacionais – IRID/UFRJ.

Como citar esse artigo:

ALENTEJANO, Maria Vitória Elicher. O Rock no contexto da Guerra Fria: uma ponte entre dois mundos, Diálogos Internacionais, vol.9, n.91, jun.2022. Disponível em: https://dialogosinternacionais.com.br/?p=2706

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353