Em rota de colisão: A Política Externa Ambivalente do Governo Bolsonaro e suas influências na relação com a China

Volume 10 | Número 98 | Abr. 2023

Imagem: Pixbay

Por Thaisa da Silva Viana

INTRODUÇÃO

Durante a corrida eleitoral para a presidência em 2018, o discurso de Bolsonaro já era marcado por um tom agressivo em relação à China. Por diversas vezes, o presidente se direcionava de forma combativa ao governo chinês, com ensaios para uma possível aproximação com Taiwan 1 e em declarações afirmando que a China estaria “comprando” o Brasil (SPRINGS, 2018). A China, por sua vez, alertava sobre as consequências negativas do posicionamento agressivo do pré-candidato, temendo pela continuidade das relações amigáveis com o Brasil, especialmente pelos acordos comerciais firmados entre os países nos últimos 10 anos (SPRINGS, 2018; AOS FATOS, 2022).


Seu governo parecia estabelecer uma relação dúbia, uma vez que, sempre que criticava o governo chinês, voltava atrás dias após suas declarações e tentava abrandar seu posicionamento. Tal comportamento reflete nas análises de política externa que apontam, no exercício da política externa do governo Bolsonaro, lados de pragmatismo e ideologia que atuavam simultaneamente ou de forma intercalada.


Observando esses modelos de política externa, e, percebendo-os como uma relação pendular que segue ao longo de toda a política externa do governo Bolsonaro, se questiona de que forma essa política externa conduzida pelo ex-presidente 一 e demais atores das relações externas brasileiras durante seu governo 一, afetaram as relações bilaterais entre China e Brasil. O presente artigo visa responder essa pergunta, utilizando os conceitos de política externa pragmática e ideológica, tendo como principal hipótese a de que a política externa do governo Bolsonaro, baseada nessas relações pendulares, desgastaram a relação entre Brasil e China. A primeira parte do artigo busca explicitar a relação de pragmatismo e ideologia na política externa de Bolsonaro. Na segunda parte, faz-se um balanço sobre as relações entre Brasil e China nos últimos dois anos, analisando os efeitos da política externa do governo
Bolsonaro.

ENTRE IDEOLOGIA E PRAGMATISMO

Em discurso durante sua posse para o cargo de Ministro das Relações Exteriores do Brasil, em 2019, o ex-chanceler Ernesto Araújo menciona “a inevitável expansão do globalismo e a necessidade de deter o avanço do projeto no Brasil” (MAGALHÃES, 2022). O discurso deixou claro o principal objetivo traçado por sua gestão: combater um conceito de globalismo e suas demais manifestações, em uma luta contra os preceitos de uma “esquerda global”, contrária à família, à soberania nacional dos Estados e à liberdade (SARAIVA e SILVA, 2019; MAGALHÃES, 2022).


Sua fala chama a atenção pela temática, até então nunca explorada na política externa brasileira, e também pelas convergências com o discurso amplamente difundido pelo governo Trump nos EUA 一 que, aliás, retoma o papel principal na política externa brasileira, sendo um importante aliado na luta pela defesa do conceito de “Ocidente” 一 (MAGALHÃES, 2022; SARAIVA e SILVA, 2019; SCHERER, 2021). As declarações surgem como uma síntese do pensamento que envolvia não apenas o ex-chanceler bolsonarista, mas também diversos atores não-convencionais que se mostraram bastante ativos ao longo da política externa do governo Bolsonaro.


Entre os mais de 25 atores presentes na política externa bolsonarista, como bem destacados por Mesquita (2019), chamam a atenção figuras peculiares que comumente não seriam associadas às atividades da política externa brasileira. Destacam-se Olavo de Carvalho, intitulado de ‘guru’ do conservadorismo no Brasil; Felipe Martins Lasse, como assessor de Bolsonaro para assuntos internacionais; e os três filhos do presidente Bolsonaro, que, conjuntamente com as bancadas evangélicas no congresso, compõem um time com profundas influências na política externa do governo (SARAIVA e SILVA, 2019; SCHERER, 2021). Esse grupo corresponde diretamente ao viés mais ideológico da política externa bolsonarista, e, justamente por se alinharem e atenderem ao discurso antiglobalista, é que esses atores conseguem alcançar posições de destaque na política externa, sendo mais presentes, até
mesmo, do que o próprio Itamaraty (SARAIVA e SILVA, 2019; MAGALHÃES, 2022). Há, entre esses demais atores, um esforço em influenciar a formulação de políticas para o combate ao dito governo mundial, o qual poderia significar a queda dos Estados-nação (MAGALHÃES, 2022).


O viés antiglobalista abordado pelo grupo ideológico, e pelo próprio Bolsonaro, coloca a China como parte de um “globalismo comunista”. Sendo o antiglobalismo defendido pelo ex-chanceler Ernesto Araújo e demais atores da ala ideológica um apoio aos conceitos modernos de Ocidente, cristandade judaico-cristã e soberania nacional 一 especificamente associados ao ideal estadunidense 一, a China viria a ser uma oposição natural à esses valores por se identificar como ‘comunista’, sendo parte de um grupo, que, conjuntamente com a Rússia, teria o suposto objetivo de instaurar um governo mundial comunista
(MAGALHÃES, 2022; SARAIVA e SILVA, 2019; SEN, 2002. grifo próprio). Interessante notar como esse modelo de globalismo, supostamente defendido pela China e pela Rússia segundo a corrente ideológica, teria seu principal meio de difusão na influência econômica que esses países detêm, propagando o marxismo clássico através de parcerias econômicas que visam principalmente a substituição dos valores ‘tradicionais’ e ‘universais’ do Ocidente pelos valores ‘comunistas’ (MAGALHÃES, 2022. grifo próprio).


Essa nova relação antagônica de ‘nós vs. eles’ torna-se evidente na prática quando se observa o modelo de posicionamento a ser seguido pela política externa brasileira a partir do governo Bolsonaro, demonstrado no quadro a seguir:

Figura 1 – Quadro de posicionamento para a política externa brasileira seguindo os princípios do antiglobalismo

Fonte: MAGALHÃES, 2022, pág. 127.

Conforme ilustrado, além de uma aversão à cooperação e à multilateralidade 一 pilares da própria relação bilateral entre Brasil e China 一, há um apoio ao livre comércio desde que ele não estabeleça vínculos com países ditos “apoiadores do globalismo” (MAGALHÃES, 2022; WANMING, 2021. grifo próprio). O antiglobalismo, fomentado pelo grupo ideológico, promove o estabelecimento de relações principalmente entre países que adotam a denominação de “Ocidente”, colocando as relações com a China como um possível perigo para os interesses do Brasil, especificamente no cenário de defesa da economia liberal. A perspectiva da ala ideológica de que as relações entre Brasil e China trariam riscos para os valores tradicionais liberais e cristãos no país também perpassa as concepções de que a China estaria no espectro do ‘marxismo cultural’, o qual poderia minar a ‘cultura ocidental’ no Brasil.

O grupo ideológico exerce influência na adoção de uma política externa mais isolacionista, questionando a associação do Brasil com a China (SCHERER, 2021). Acordos e posicionamentos historicamente favoráveis à relação amigável entre os dois países, principalmente no ramo econômico, são rejeitados pela ala ideológica, gerando uma oposição crítica em relação à China, que, por vezes, se manifestava até em declarações xenofóbicas 2(MAGALHÃES, 2022; CARVALHO, 2020).

Entretanto, apesar das críticas expressadas pelo governo Bolsonaro, observa-se que o comércio entre Brasil e China não somente se manteve estável como cresceu exponencialmente. Mesmo em tempos de pandemia, a China ainda representa 30% das exportações físicas do Brasil3 (THE ECONOMIST, 2022). Surge, portanto, a indagação: o como essa relação poderia manter-se próspera em meio a tantos conflitos? A resposta viria do outro lado da política externa bolsonarista, na figura do pragmatismo.

Enquanto a ala ideológica criticava a instalação do 5G no Brasil por empresas chinesas, culpava a China pela pandemia e fazia comentários polêmicos sobre o governo chinês, grupos ligados ao agronegócio e a ala militar sentiam pressões internas para conter esses posicionamentos agressivos de Bolsonaro e seus aliados ideológicos (SARAIVA e SILVA, 2019; SCHERER, 2021).

Com um investimento de mais de 70 bilhões de reais feitos no Brasil de 2005 a 2020 e sendo a principal compradora de carne e outras commodities, a China desempenha um papel fundamental na economia brasileira (OLIVEIRA, 2021). Apresentando um saldo positivo de US$ 33,6 bilhões para o Brasil na balança comercial com a China 一 melhor até do que a balança comercial com os EUA 一, e colaborando com mais da metade do superávit do comércio exterior brasileiro, torna-se difícil ignorar as relações comerciais com a China e romper laços com o governo chinês, como bem propunha a ala ideológica (SCHERER, 2021). Nesse sentido, o lado pragmático, representado pelos setores que seriam mais afetados pelos impactos do posicionamento agressivo, une-se em uma tentativa de apaziguar as relações Brasil e China e trazer um caráter mais contido à política externa brasileira.

Como destaca Saraiva e Silva (2019), há um esforço da ala pragmática em “moderar” os avanços da ala ideológica, pela percepção de que, caso a retórica se concretizasse em medidas contrárias à relação bilateral de China e Brasil, determinados setores seriam infinitamente mais prejudicados, especialmente a economia. O próprio vice-presidente Mourão e grupos da chamada ‘bancada ruralista’ enfatizavam a importância de uma política externa mais pragmática, bem como o papel do secretário-geral do Itamaraty Otávio Brandelli, responsável por “frear” as ações de Ernesto Araújo (SARAIVA e SILVA, 2021, p. 121).

As ações de contenção pelo grupo pragmático podem ser observadas em diversos momentos ao longo da política externa do governo Bolsonaro. Tereza Cristina Diaz, ex-Ministra da Agricultura, propôs uma conversa com Araújo sobre os impactos negativos de suas declarações em relação ao temor do avanço da China no Brasil, sendo uma das figuras centrais na negociação pelo fim do longo embargo à carne brasileira feita pela China em 20214 (SARAIVA e SILVA, 2019; CNN, 2021). O vice-presidente Hamilton Mourão, juntamente com o senado, representado por Kátia Abreu e o Grupo Parlamentar Brasil-China, desempenharam um papel importante na condução da política externa brasileira sob um viés mais pragmático.

A reversão do governo brasileiro em relação à abertura do leilão do 5G para empresas chinesas participarem, contrariando o posicionamento do presidente Bolsonaro alinhado com os EUA, se mostra como uma contenção pragmática. Apesar das desavenças com a ala ideológica, o governo atendeu ao pedido das operadoras e abriu o mercado para a China, reconhecendo a vantagem econômica e tecnológica dessas empresas para reduzir custos de implementação no Brasil (UCHOA, 2022).

O leilão do 5G no Brasil é um exemplo da luta entre pragmatismo e ideologia na política externa de Bolsonaro. Embora empresas chinesas tenham participado do leilão, o caso foi envolto em muitas críticas por parte de membros importantes do governo ao papel da China. A questão, já tensionada pelas expectativas dos EUA sob o posicionamento do Brasil, foi agravada pelas ofensas do então deputado federal Eduardo Bolsonaro 一 filho do presidente Bolsonaro 一 ao governo chinês. Na ocasião, o deputado em suas redes sociais acusa a China de usar a tecnologia 5G para espionagem, afirmando que o Brasil já estaria atento para a promoção de tecnologias que pudessem garantir a privacidade de indivíduos e empresas, contrariando exemplos como o Partido Comunista Chinês, denominando como “inimigo da liberdade” (BEHNKE e SOARES, 2020). A situação não apenas coloca Brasil e China em rota de colisão, mas também alinha o Brasil automaticamente aos EUA na guerra comercial entre China e EUA, sem dar chances para a atuação de uma política externa brasileira mais autônoma (SARAIVA e SILVA, 2019).

Além da adoção do discurso conspiracionista, o deputado ainda declara o apoio do governo brasileiro à iniciativa norte-americana 一 a Clean Network5 一. As consequências do tuíte surgem logo após a publicação com direito a uma resposta do próprio embaixador chinês no Brasil. Mesmo com a publicação sendo apagada horas depois, Fábio Faria, então Ministro da Comunicação do governo Bolsonaro, precisou vir a público em coletiva de imprensa afirmar que “nenhuma questão geopolítica foi abordada em reunião com o presidente Bolsonaro” (BEHNKE e SOARES, 2020). Segundo o ministro, o presidente estaria conhecendo de perto as propostas chinesas e iria conversar com Eduardo Bolsonaro na tentativa de afastar qualquer ligação direta do Brasil com as ideias da Clean Network e alinhamento com os EUA (BEHNKE e SOARES, 2020).


A desaceleração do discurso mais ideológico na metade do governo Bolsonaro pode ser vista como uma consequência direta das ações promovidas pelo grupo ideológico no início do governo. Com a adoção de um discurso moderado do chanceler Carlos França6 e os elogios do presidente Bolsonaro a China7, a expectativa era que o governo adotasse um posicionamento mais discreto e pudesse apaziguar os impasses criados anteriormente. Assim sendo, diante essa disputa sobre a condução da política externa brasileira, quais seriam os impactos na relação entre Brasil e China?

AS RELAÇÕES BRASIL-CHINA NOS ÚLTIMOS TRÊS ANOS

As relações entre Brasil e China são estabelecidas desde a década de 1970 com a construção de uma agenda de cooperação profunda e bastante abrangente (MAGALHÃES, 2022). A partir de 2009, a China se torna principal parceiro econômico do Brasil, e, ao longo dos anos, passa a amplificar seus canais de diálogo com o país, principalmente após a criação dos BRICS, a aliança durante o G20 e as demais associações voltadas ao multilateralismo.         

Pode-se observar que, a relação delicadamente construída ao longo dos anos, porém, passa por um momento de crise durante o governo Bolsonaro. Ainda que se observe uma redução no tom crítico de Bolsonaro no primeiro ano de mandato, reconhecendo a importância da China para o Brasil 一 sendo essa recalibragem resultante das pressões exercidas pela ala pragmática 一, O governo Bolsonaro teve dificuldades em estabelecer uma relação harmoniosa com a China, mesmo considerando a postura pragmática geralmente adotada pelo país asiático em suas relações internacionais e a tentativa de conter as declarações pouco simpáticas da ala ideológica do governo. (MAGALHÃES, 2022; SCHERER, 2021; WANMING, 2021).

Ainda que a economia tenha suportado os efeitos da onda ideológica, o cenário não foi de total alívio, especialmente com a crise do embargo à carne brasileira 一 que resultou na exoneração do ministro Ernesto Araújo 一, o atraso na importação de materiais hospitalares durante a pandemia e a crise do 5G. A visita do vice-presidente Hamilton Mourão em 2019 a China para a reunião da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (COSBAN), a visita de Bolsonaro a Pequim e a visita de Xi Jinping em Brasília na reunião dos BRICS, marcam uma tentativa de reaproximação do Brasil com a China e apaziguamento dos atritos entre os países após a eleição de Bolsonaro (MAGALHÃES, 2022). Os acordos e diálogos estabelecidos anteriormente sugeriam um possível enfraquecimento da política externa ideológica em favor de uma abordagem pragmática, no entanto, essa situação se mostrou efêmera.

Na reunião dos BRICS em 2020, já era possível notar o desgaste que ia se formando nas relações Brasil-China. Enquanto Xi Jinping seguia a política de defesa da cooperação e do multilateralismo, até defendendo pautas ambientais, Bolsonaro discursava contra a cooperação, tecendo críticas à Organização Mundial da Saúde, comissões da ONU e aos acordos e metas estabelecidas para a defesa do meio ambiente (MAGALHÃES, 2022). Não apenas confinado em um discurso contrário, Bolsonaro também atrasou o pagamento das cotas para o BRICS, postergando os planos de solidificação do Novo Banco de Desenvolvimento e causando um mal-estar ainda maior entre China e Brasil (MAGALHÃES, 2022).

Outros laços econômicos e espaços de cooperação foram enfraquecidos. O investimento da China no Brasil, que em 2010 bateu a marca de US $13 bilhões de dólares em 12 projetos, segundo o Conselho Empresarial China-Brasil, foi reduzido para US $4 bilhões de dólares no ano de 2022 (THE ECONOMIST, 2022). Em uma retração do que já tinha sido proposto por Xi Jinping durante a reunião da CELAC, as empresas chinesas só investiram cerca de US$ 76 bilhões de dólares na América Latina, sem que fossem mencionados novos investimentos a partir de 2020, algo que fica muito aquém da promessa de US$ 250 bilhões proposta em 2015 por Xi Jinping (THE ECONOMIST, 2022). Ainda que se possa levantar a hipótese de uma redução pragmática dos investimentos da China na América Latina, é questionável o novo posicionamento do presidente Xi Jinping logo após a suspensão da participação do Brasil na CELAC durante o governo Bolsonaro, não à toa o impulso nos investimentos na África para diversificar as fontes de importação do governo chinês.

O ano de 2020 ainda trouxe consigo uma crise sanitária de proporções globais. A pandemia de COVID-19 também afetou as relações do Brasil com a China, mas especificamente, por uma permanência da ala ideológica na política externa brasileira. Em diversos ataques à China, seja seguindo o discurso conspiracionista de Trump culpando o país pela pandemia, seja questionando a eficácia da vacina elaborada por laboratórios chineses, o governo Bolsonaro consegue potencializar o mal-estar estabelecido e comprometer o combate à doença no Brasil. Nem mesmo a política pragmática adotada por Carlos França era capaz de frear as declarações polêmicas do presidente em relação a China e à pandemia.

Além do presidente, seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro; o ex-chanceler Ernesto Araújo; o ex-Ministro da Educação, Abraham Weintraub; e o Ministro da Economia, Paulo Guedes, se viram envolvidos em diversas polêmicas a partir de declarações de cunho xenofóbico e conspiracionistas, que em muito comprometeram a negociação da compra de vacinas do laboratório chinês Sinovac; equipamentos de proteção individual; máscaras; respiradores mecânicos e os principais insumos para a elaboração das vacinas brasileiras pelo Instituto Butantã (GADELHA e ARBEX, 2021; MAGALHÃES, 2022). Na ocasião, os ministros e o deputado não apenas apontaram a China como possível responsável pela elaboração do vírus da COVID-19, mas também afirmaram que o governo chinês teria benefícios econômicos e políticos com a pandemia8. As críticas acertaram principalmente na exportação de insumos chineses para a fabricação de vacinas no Brasil, que atrasaram ainda mais o combate à COVID-19 enquanto o país atingia a média de mil mortes por dia e mais de 50 mil casos confirmados por dia (G1, 2021a).

De acordo com Magalhães, com Bolsonaro, o Brasil não conseguiu usufruir de sua parceria estratégica estabelecida com a China ao longo dos anos (2019, pág. 132). Porém, mais do que uma simples perda de capital diplomático, a política externa do governo Bolsonaro, na tutela de Ernesto Araújo, não conseguiu garantir que os principais interesses do povo brasileiro no momento da pandemia 一 o direito fundamental à vida e ao acesso à saúde 一 fossem defendidos. No momento em que o Brasil atingia seu pico de mortes por COVID-19, durante a crise causada pela falta de tanques de oxigênio na cidade de Manaus, mesmo com as ofertas de ajuda e a possibilidade de negociação de suprimentos necessários para conter a crise, o ex-chanceler Araújo discursava no Fórum Econômico Mundial sobre a necessidade de se contrapor ao “tecno totalitarismo chinês’, na esperança de que a China se tornasse mais ocidental devido a globalização (ZARUR, 202; MAGALHÃES, 2022).

Em relação à questão do 5G, embora a postura pragmática tenha prevalecido e nenhuma restrição à participação de empresas chinesas tenha sido imposta no leilão, estas empresas decidem não participar por vontade própria, deixando o leilão restrito apenas a empresas de telefonia brasileiras (UCHOA, 2022; G1, 2021b). A questão só mostrou ser superada somente em 2022, durante o encontro de Marcos Pontes 一 Ministro da Ciência e Tecnologia 一 e Sun Bao Cheng 一 diretor executivo da Huawei no Brasil 一 no Mobile World Congress, em que a Associação para Promoção de Excelência do Software Brasileiro (Softex) lança um projeto com a parceria da Huawei para o desenvolvimento de inteligência artificial e 5G no Brasil (ANDRION, 2022). Ainda que o resultado do leilão tenha sido relacionado a própria ação individual das empresas chinesas, se questionam essas ações como influenciadas diretamente pelos abalos na relação Brasil-China.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há de se argumentar que, devido ao crescimento do superávit da balança comercial do Brasil com a China, as relações dos dois países não apresentam desgastes significativos, porém, a estratégia desajeitada de aliar uma política externa altamente ideológica a um pragmatismo de contenção levaram as relações China-Brasil para um momento de desconforto antes nunca visto. A política externa ideológica tem profundos impactos na relação com a China. A existência de uma força pragmática capaz de conter esses avanços da ala ideológica não foram suficientes para impedir as crises do embargo das carnes, da importação dos insumos e materiais hospitalares e a questão do 5G.

Com a vitória de Lula e o desmonte da política externa ideológica no Itamaraty, porém, os esforços de Bolsonaro se mostram pífios e caberá aos novos participantes da política externa brasileira conduzir as relações Brasil-China para uma direção mais amigável do que a vista nos últimos quatro anos.

REFERÊNCIAS

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Notas de rodapé

  1. Ainda como pré-candidato, Bolsonaro viaja para Taiwan, o que seria ofensivo ao princípio de soberania e a política de “Uma única China”, presente na China desde a década de 1970 (SPRINGS, 2018).
  2. Em alusão às declarações de Olavo de Carvalho sobre a higiene da população na China. Olavo afirma em um de seus tweets que “A China não consegue solucionar o problema de higiene de seu povo e quer mandar no mundo”. Em alusão às falas do presidente Bolsonaro em relação à COVID-19 na Comissão de Relações Exteriores no Senado Federal.
  3. Referente ao mês de dezembro de 2022.
  4. O embargo foi justificado pela contaminação do gado brasileiro com a doença da ‘vaca-louca’, especialistas, no entanto, questionaram a duração do embargo 一 três meses 一 e a possibilidade de uma ser uma resposta da China para as declarações do governo de Bolsonaro
  5. Iniciativa do governo Trump de promover um “5G livre de iniciativas de espionagem”.
  6. Substituto de Ernesto Araújo e responsável por apaziguar a disputa sobre o embargo à carne brasileira. Conhecido pelo caráter mais tradicionalista e pragmático.
  7. Referente à fala do presidente Bolsonaro em relação à eficácia das vacinas chinesas (MAZUI, 2021).
  8. Em referência a postagem vinculada a conta do ex-ministro da educação do governo Bolsonaro, Weintraub, que afirma que o vírus da COVID-19 foi criado em um laboratório chinês. Assim como Weintraub, Ernesto Araújo se referia ao vírus da COVID-19 como “Comunavírus”, em referência ao Partido Comunista Chinês. Disponível em:https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/06/weintraub-publica-post-com-insinuacoes-contra-a-china-depois-apaga-embaixada-repudia.ghtml. Acesso em: 1 de Nov. 2022.

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353