A evolução do arcabouço jurídico dos Direitos Humanos no âmbito das Nações Unidas

Volume 10 | Número 99 | Mai. 2023

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Por Eduarda Lopes de Souza

INTRODUÇÃO

A importância concedida à proteção dos indivíduos no âmbito internacional foi impulsionada pelas situações de guerra que colocavam a população civil em risco e forçavam o seu deslocamento. A Segunda Guerra Mundial originou a Organização das Nações Unidas (ONU), que nasce com o objetivo de minar conflitos na mesma magnitude do ocorrido entre 1939 e 1945, e carrega em seu cerne o objetivo de estabelecer um arcabouço jurídico internacional que promova a proteção internacional dos direitos humanos. 

O presente artigo busca compreender a evolução do Direito Internacional Público por meio da atuação da Organização das Nações Unidas, que promove o Sistema Universal de Proteção dos Direitos Humanos, composto por tratados, convenções e mecanismos de controle que resguardam o indivíduo no âmbito internacional. 

A primeira parte observa a evolução do Direito Internacional Público e a atuação da Organização das Nações Unidas para a proteção universal dos direitos humanos, principalmente por meio da criação de seus principais tratados. Posteriormente, busca-se entender a evolução dos órgãos relacionados à proteção dos direitos humanos, que desenvolveram mecanismos extraconvencionais para monitorar o tratamento do tema por parte dos atores estatais. 

SISTEMA UNIVERSAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

A Carta de São Francisco constitui a Organização das Nações Unidas como uma organização internacional de caráter universal que abrange os mais variados temas, principalmente aqueles que visam o fomento da paz, a cooperação interestatal e a construção de um sistema internacional de proteção dos direitos humanos, por meio de tratados internacionais (PIOVESAN, 2004; TRINDADE, 2017).

Por ser uma organização internacional multilateral detentora de personalidade jurídica, a ONU é capaz de produzir normas de Direito Internacional e atuar no cenário internacional sem ser vinculada ou subordinada a um Estado. Apesar da organização não deter poder para atuar como um organismo supranacional, ou seja, ela não se encontra acima dos Estados no sistema internacional,tornou-se usual o estabelecimento de mecanismos de controle por meio de tratados internacionais, que averiguam o status e o tratamento dos direitos humanos por seus Estados membros (ALVES, 1994; TRINDADE, 2017).

A Carta Internacional dos Direitos Humanos é composta pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. O Direito Internacional dos Direitos Humanos foi inaugurado a partir do processo onusiano que estabeleceu a proteção internacional dos direitos humanos por meio da promoção de tratados que resguardam direitos individuais, sem distinções. Em conjunto com os respectivos sistemas interamericano, africano e europeu de proteção, foi formado então, o Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos. (ALVES, 1994; PIOVESAN, 2004; DE PAULA e PRONER, 2008)

O Sistema Universal de Proteção dos Direitos Humanos se baseia no âmbito da Organização das Nações Unidas, que passa a ser reconhecida como sua entidade implementadora. Esse sistema é constituído por expressões convencionais do direito, ou seja, os tratados que constituem a Carta Internacional dos Direitos Humanos, em conjunto com o sistema de mecanismos especiais (ALVES, 1994; REZEK, 2011).

Buscando promover os objetivos estipulados pela carta constitucional da Organização, a Comissão de Direitos Humanos foi instaurada em 1946 pelo Conselho Econômico e Social da ONU com o intuito de promover:

uma carta internacional de direitos; Declarações ou Convenções Internacionais sobre liberdades civis, o status da mulher, liberdade de informação, e assuntos relacionados; a proteção das minorias; e a prevenção da discriminação com base em raça, gênero, língua e religião (SHORT, 2008, p.174).

A Comissão foi então responsável pela criação da Declaração Universal de Direitos Humanos, implementada em 1948, com a intenção de estabelecer uma proteção efetiva, ou como aponta Bobbio, “uma fundamentação aos direitos humanos” (2004, p. 20).

Piovesan (2004) demonstra que a Declaração Universal dos Direitos Humanos instituiu uma definição de direitos humanos alinhada com os objetivos da Organização das Nações Unidas:

Introduz ela a concepção contemporânea de direitos humanos, caracterizada pela universalidade e pela indivisibilidade desses direitos. Universalidade, porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade. Indivisibilidade, porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais – e vice-versa (PIOVESAN, 2004, p. 22).

Partindo do ponto que o processo de internacionalização dos direitos humanos havia sido profundamente influenciado pelas violações à pessoa humana observadas na Segunda Guerra Mundial, seria necessário implementar abrangência aos direitos humanos. Em prol de firmar o alicerce para a proteção, a Declaração Universal dos Direitos Humanos em seus 30 artigos busca solucionar os problemas do contexto de sua inauguração. 

A partir desse marco a questão não é mais apenas fundamento dos direitos humanos, mas quais instrumentos garantiriam a proteção dos indivíduos no âmbito internacional. Importante ressaltar que os direitos humanos possuem caráter complementar aos direitos fundamentais no âmbito dos Estados e surgem com a necessidade de proteger os indivíduos para além das fronteiras nacionais. 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos supre a necessidade de se observar os indivíduos como detentores de direitos no âmbito internacional. Porém, por não se configurar como um tratado, é incapaz de impor obrigações para os Estados. Para solucionar a problemática, a Comissão de Direitos Humanos buscou o engajamento dos Estados a partir da proposição da Convenção de Direitos Humanos (BOBBIO, 2004; LAFER, 1999; PIOVESAN, 2004).

A Guerra Fria foi um outro momento histórico que impactou a proteção internacional dos direitos humanos. A polarização trazida pelo conflito ideológico dificultou o processo de ratificação, por conta do ímpeto liberal em reafirmar os direitos de primeira geração, ou seja, os direitos civis e políticos, enquanto o bloco socialista endossava os direitos econômicos, sociais e culturais, pertencentes à segunda geração. A Organização das Nações Unidas, concedeu atenção às demandas das duas gerações, dividindo a Convenção em dois tratados: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966 (ALVES, 1994; BELLI, 2009; LAFER, 1999).

Perante os Pactos (1966a, 1966b), os Estados reconheceriam os direitos propostos pelos tratados e seriam avaliados na adequação às normativas pelo Comitê de Direitos Humanos, instituído como órgão de controle do Pacto de Direitos Civis e Políticos. No Comitê, as partes deveriam elaborar relatórios para detalhar as medidas tomadas em prol da implementação do tratado sempre que solicitado. Havia também um mecanismo de denúncia, onde qualquer Estado ratificante possuía o direito de denunciar qualquer infração das obrigações infligidas pelo tratado (ALVES,1994; LAFER, 1999).

A ratificação do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais supunha que os Estados submeteriam relatórios descrevendo as medidas de adequação com cumprimento do tratado. Nesse caso, os relatórios eram recebidos e  repassados pelo Secretário Geral das Nações Unidas ao Conselho Econômico e Social, que dentre suas funções, também atua como órgão de monitoramento do pacto (ALVES,1994; LAFER, 1999).

Pela primeira vez, foram propostos tratados que vinculavam obrigações sobre a temática dos direitos humanos. Por esse motivo, ambos os Pactos levaram dez anos para alcançar o número mínimo de ratificações para entrar em vigor (ALVES,1994; LAFER, 1999).

Em conjunto com a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, os Pactos inauguram o Sistema de Tratados de Direitos Humanos da ONU, que em conjunto dos respectivos órgãos de monitoramento de cada tratado, estabeleceram o arcabouço normativo da proteção. 

Quadro: Instrumentos convencionais das Nações Unidas e seus respectivos órgãos de monitoramento.

TRATADOÓRGÃO DE MONITORAMENTOANO
Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação RacialComitê para a Eliminação da Discriminação Racial1965
Pacto Internacional de Direitos Civis e PolíticosComitê de Direitos Humanos1966
Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e CulturaisComitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais1966
Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a MulherComitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher1979
Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes.
Comitê contra a Tortura
1984
Convenção sobre o Direito das CriançasComitê sobre o Direito das Crianças1989
Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de Suas FamíliasComitê para os Trabalhadores Migrantes
1990
Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas de Desaparecimentos ForçadosComitê sobre Desaparecimentos Forçados2006
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com DeficiênciaComitê sobre o Direito das Pessoas com Deficiência2006
Fonte: ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (2012)

As Nações Unidas (2012) reconhecem a complementariedade entre seus instrumentos normativos, que se relacionam a partir do esforço em garantir que não haja nenhum tipo de discriminação na concessão da proteção dos indivíduos, promovendo equidade no âmbito normativo. 

Os órgãos de monitoramento, respaldados pela Divisão de Tratados de Direitos Humanos do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), têm o objetivo de fomentar a adoção dos termos do tratado que monitora, visando tornar os direitos ratificados realmente efetivos (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2012).

A proteção dos direitos humanos é  de interesse universal, onde a cooperação estatal deve guiar seu estabelecimento. Os tratados que compõem a proteção internacional, “refletem, sobretudo, a ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca de parâmetros mínimos de proteção (o ‘mínimo ético irredutível’).” (PIOVESAN, 2004, p. 24).

No entanto, o Sistema Universal carrega consigo a contradição de arraigar o marco dos direitos humanos no âmbito internacional, enquanto favorece os direitos civis e políticos, compatíveis com a visão liberal, colocando os direitos individuais acima dos direitos coletivos. Além do problema dos valores disseminados, o esforço em construir um arcabouço normativo em prol da proteção internacional, não impediu os atos de violação dos direitos humanos. Ainda são recorrentes os casos de indivíduos, povos e grupos que são sistematicamente violados em suas liberdades individuais, de expressão, manifestação religiosa, cultural ou política (BOTELHO, 2005; DE PAULA e PRONER, 2008).

Se observarmos o Direito Internacional em busca de respostas, perceberemos que, em sua origem, a responsabilização internacional não acolhe as violações de direitos humanos, se compatibilizando com as definições contemporâneas a partir do século XIX. Caso os Estados não sejam capazes ou não se mostrem dispostos a reparar a violação cometida, chegando ao fim do trâmite jurídico da controvérsia no âmbito doméstico, pode-se haver a responsabilização no âmbito internacional. (TRINDADE, 2017)

Atualmenteé possível observar a proteção dos indivíduos como elemento central dos processos relativos ao descumprimento das normativas de direitos humanos. Botelho (2005) demonstra que um ato institucional que viola os direitos de um indivíduo não necessariamente constitui uma ameaça direta ao Estado. Portanto, é necessária a existência de um Direito Internacional dos Direitos Humanos que proteja a pessoa humana e busque reparar as respectivas violações. (CASTANHEIRA E GIANNELLA, 1998; RAMOS, 2004 apud BOTELHO, 2005) 

Nesse sentido, Castanheira e Giannella (1998) apontam a necessidade de um diálogo entre as regulações internas e externas. O uso dos mecanismos internacionais para punir violações é eventual, pois os Estados escolhem a que normas internacionais se submeterão, e, portanto, decidem ao que serão subjugados. Para além da regulação, normalmente, os mecanismos internacionais não são acionados antes do devido esgotamento dos recursos internos, havendo, eventualmente, exceções de acordo com a gravidade da violação. 

ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO EXTRACONVENCIONAIS

De acordo com Belli (2009), a Carta de São Francisco não conseguiu tornar concreta a proteção humana no âmbito internacional. Portanto, ficou a cargo da Comissão de Direitos Humanos estabelecer parâmetros claros para os direitos humanos. O órgão contava com 53 Estados membros eleitos em mandatos rotativos de três anos e possuía como atribuições principais a centralização da discussão sobre os direitos humanos e a elaboração de instrumentos normativos de proteção. Apesar do papel central concedido ao organismo em sua criação, ele nunca foi totalmente desvinculado de sua condição de subordinação ao Conselho Econômico e Social (ECOSOC) e à Assembleia Geral da ONU (ALSTON, 2006; SHORT, 2008).

Alves (1994, p.135) demarca os anos entre 1945 e 1966 como o “período abstencionista” da Organização das Nações Unidas. A partir do ano de sua fundação, a Comissão passou a receber denúncias de violação dos direitos humanos. Porém, o órgão não possuía intenção de acolhê-las naquele momento, argumentando que não possuía competência para responsabilizar Estados (ALSTON, 2006).

Mesmo assim, Alves (1994) defende que este não pode ser considerado um período sem avanços na proteção. Houve a realização de convenções, congressos e a elaboração dos Pactos Internacionais que vinculam os compromissos firmados pela Declaração Universal. Também era relevante a pressão exercida pelos Estados em relação à criação de mecanismos de controle para averiguar a internalização dos tratados firmados. Apesar do primeiro termo, é descartada uma oposição de momentos, como muitos autores consideram o período “intervencionista” da ONU, a partir do ano de 1967. 

Para que fosse possível construir um sistema de proteção universal, era primordial a implementação de mecanismos de monitoramento dos direitos humanos, principalmente para criar a percepção que todos os Estados seriam submetidos à mesma norma e observados de forma igualitária. A realidade é o avesso, pela incapacidade da Comissão em ser neutra e por conta dos consecutivos ataques de teor político que ocorreram entre Estados no âmbito da Comissão (BELLI, 2009).

A partir de 1965, a Comissão passou a acolher as denúncias recebidas discretamente, pois a intromissão de um órgão internacional em questões do domínio estatal causaria resistência. Em 1967 foi implementada a Resolução 1235, primeiro mecanismo que permitiria a averiguação de violações mais expressivas, no intuito de criar um modelo a ser seguido pelos Estados em termos de proteção. Essa resolução foi o passo inicial para a implementação do primeiro canal de denúncias confidenciais de violações dos direitos humanos. No mesmo ano, a Comissão recebeu do Conselho Econômico e Social a incumbência de acolher as denúncias de violação provenientes dos Estados em processo de descolonização (ALVES, 1994; BELLI, 2009).

Nas primeiras averiguações realizadas pela Comissão, era possível observar uma seletividade política que influenciou o processo de escolha dos países que seriam submetidos ao crivo, assim como houve infiltração dos interesses dos Estados membros nas pautas acolhidas pelo organismo (BELLI, 2009; LAFER, 1995).

Tornou-se usual a presença de mecanismos convencionais que admitiam o recebimento de denúncias individuais sobre violações dos tratados da ONU. Porém, o primeiro mecanismo de caráter extraconvencional, onde os Estados não necessariamente se comprometem a participar e, mesmo assim, são compelidos a cooperar, foi denominado de Procedimento Confidencial. Promovido pela Resolução 1503, o dispositivo era secreto, para se adequar ao princípio da não-intervenção. Nele, um pequeno grupo de trabalho era designado para averiguar se havia reincidência de violações dos direitos humanos no país denunciado, exame limitado à abordagem de casos gravíssimos e reincidentes. Após, era decidido se seriam emitidas recomendações ao ECOSOC, ao qual a Comissão era subordinada, ou se seria criado um comitê específico para examinar a situação da violação, caso o país autorizasse. A confidencialidade era o pilar fundamental do mecanismo e a maior sanção que um Estado poderia receber era de ter seu caso publicamente divulgado. Até o fim de sua existência, o Conselho apenas atuou indiretamente, remetendo os casos para o ECOSOC (ALVES, 1994; BELLI. 2009).

Houve uma tentativa de reformular o mecanismo do Procedimento Confidencial em 2000, mas não foram implementadas mudanças efetivas e o dispositivo perdeu relevância, apesar da confidencialidade agradar os Estados sob o jugo do mecanismo. Porém, deve-se destacar o pioneirismo do procedimento no rechaço às violações frequentes. Haviam limitações, mas o caminho foi pavimentado para que outros dispositivos extraconvencionais obtivessem espaço (BELLI, 2009).

Alston (2006) demarca que, a partir de 1998, questionamentos acerca da efetividade do órgão passaram a prejudicar o seu funcionamento. A Comissão foi alvo de críticas por não ser capaz de acolher denúncias de violação à pessoa humana de forma imediata, o que de acordo com Short (2008), permitia que Estados violassem direitos sem serem alvo de escrutínio no âmbito da Comissão. O órgão sofreu com a polarização da Guerra Fria e resistiu múltiplos percalços em sua vigência. Porém perdeu credibilidade quando passou a comportar ações que rompiam com suas premissas, dentre elas, a presença de notáveis violadores como o Sudão (BELLI, 2009).

No entanto, deve-se reconhecer os avanços que a Comissão promoveu no Direito Internacional dos Direitos Humanos, como o estabelecimento da Carta Internacional de Direitos Humanos, fundamental para o Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos. O órgão permitiu que a proteção humana fosse colocada em um lugar de destaque, atuou na denúncia de grandes violações e foi pioneiro em reunir Estados em prol dos direitos humanos. Também é notável a inclusão promovida pelo órgão, que contava com a participação de entidades não-estatais, como organizações não governamentais (SHORT, 2008).

A dificuldade de implementar ações efetivas para proteger os direitos humanos, a impunidade dos membros violadores e a excessiva politização do órgão culminou em sua decadência. A sua subordinação ao ECOSOC é um dos fatores que minaram a credibilidade da Comissão, pois a impediu de obter um lugar de destaque dentro da ONU (SHORT, 2008).

Após a extinção da Comissão de Direitos Humanos em 2006, foi instaurado em caráter temporário, o Conselho de Direitos Humanos. Kofi Annan, secretário-geral da Organização à época, reconheceu que, para colocar os direitos humanos como prioridade, era essencial a fundação de um órgão reduzido. Hoje, em seu quarto mandato, o Conselho de Direitos Humanos conta com 47 membros eleitos e é a principal entidade para a proteção dos direitos humanos dentro da organização internacional, diretamente vinculado à Assembleia Geral da ONU (DURAN, 2006; NADER, 2007; SHORT, 2008).

Os critérios de qualificação como membro do Conselho foram reformulados. Ao reduzir o número de Estados membros, o Conselho conseguiu estabelecer parâmetros mais contundentes acerca do controle exercido sobre os Estados parte, podendo inclusive removê-los de seu âmbito. Por outro lado, é questionável a exclusão dos países que mais violam, pois perde-se a oportunidade de induzir a apreciação e o respeito do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Porém, incluir sem exigir mudanças foi o erro cometido pela Comissão que o Conselho procura não repetir. Portanto, apenas se tornam membros os países que cumprem a normativa referente à proteção humana no âmbito internacional (DURAN, 2006; SHORT, 2008).

O Conselho conta com alguns mecanismos de controle extraconvencionais. Os procedimentos especiais são compostos por especialistas que atuam como agentes de proteção dos direitos humanos, recebendo denúncias e oferecendo recomendações; e o procedimento de denúncias, implementado pela resolução 5/1, se configura como uma atualização do procedimento 1503. (DURAN, 2006; ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2021a, 2021b; SHORT, 2008; SILVA, 2013).

Atualmente, o principal e mais efetivo mecanismo de controle das Nações Unidas é a Revisão Periódica Universal (RPU). O instrumento, de acordo com a resolução 60/251, traria equidade na averiguação do cumprimento da proteção dos direitos humanos. Ao longo de seu funcionamento, o RPU obteve êxito em promover uma análise participativa do status dos direitos humanos pelos Estados membros (ALSTON, 2006). O mecanismo funcionaria, em um primeiro momento, anualmente, a partir da observação do histórico e dos obstáculos que impedem a integral proteção dos direitos humanos de 28 membros efetivos do organismo, dois Estados em regime de voluntariedade e 18 Estados membros escolhidos de forma aleatória. (BELLI, 2009; SHORT, 2008; SEN, 2011)

A Revisão não possui intenção de substituir nenhum órgão de fiscalização dos direitos humanos, como os que averiguam o cumprimento dos tratados e convenções. Para além, seu propósito é de se debruçar sobre dados claros e verídicos que reflitam a real situação dos direitos humanos no âmbito de cada Estado analisado. Short (2008, p. 181) pontua que não se trata apenas de “um mecanismo de revisões periódicas, mas também um sistema de monitoramento que compreende a dinâmica entre pares.” (ALSTON, 2006; SHORT, 2008).

Porém, como seu antecessor, o órgão que abriga o RPU depende da iniciativa de seus membros para lidar com os problemas que abrange, questão que pode ser alvo sistemático de politização (DURAN, 2006; SHORT, 2008). Alston (2006) aponta quatro lições que podem ajudar a Revisão a ser longeva e efetiva: implementar um sistema claro e justo para todos os Estados participantes; alimentar o mecanismo com informações confiáveis e contínuas sobre o status dos direitos humanos; solucionar as questões que o tornam moroso e ineficiente, como seu custo e a obrigatoriedade de iniciar o processo a partir de um relatório produzido pelo Estado monitorado; e que a Revisão Periódica Universal sempre emita um resultado concreto, que permita mudanças efetivas na realidade de cada país. Alston defende que, assim como ocorreu com a Comissão, “a não ser que o Conselho faça recomendações específicas, bem formuladas e possíveis baseadas na sua revisão da performance de cada país, o processo irá perder credibilidade e brevemente cairá em descrédito e desuso.” (2006, p. 30, tradução nossa).

CONCLUSÃO

A partir de uma reflexão sobre o Sistema Internacional de Direitos Humanos, observando como se estabeleceu o arcabouço de proteção e os órgãos de monitoramento no âmbito da Organização das Nações Unidas para estimular extra convencionalmente a cultura da proteção, podemos apontar um esforço significativo em busca do fomento e do respeito à proteção dos direitos humanos. Isso é demonstrado por meio da tentativa de solucionar questões específicas que venham à tona, ou pela elaboração de um mecanismo sofisticado de acompanhamento e interação entre países, como a Revisão Periódica Universal.

Desde sua criação, a ONU promoveu a criação do Sistema Universal de Direitos Humanos, fomentando a adoção de tratados internacionais em conjunto com seus respectivos organismos de monitoramento, em prol de promover e averiguar a temática dos direitos humanos no âmbito internacional. Todos os órgãos criados são abrigados pelo Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, que guia os esforços da organização na matéria. Nitidamente, os mecanismos de averiguação são falhos e enfrentarão dificuldades na abordagem de todos os problemas identificados, mas como Short (2008) pontua, mecanismos de controle do status dos direitos humanos só serão efetivos a partir do comprometimento dos Estados com seu devido funcionamento.

É de suma importância reconhecer o empenho das Nações Unidas na proteção dos direitos humanos e o destaque que a Revisão Periódica Universal tem entregado à temática. Porém, ao mesmo passo que avanços significativos são observados, as violações dos direitos humanos são reincidentes. A contínua evolução dos direitos humanos dentro da ONU é essencial para que o Sistema Internacional dos Direitos Humanos seja capaz de resguardar os indivíduos em todas as possibilidades de violação. O desenvolvimento e a criação de novos tratados deve ser fomentado assim como as normas existentes devem ser fortalecidas. Para que a proteção seja efetiva, a responsabilização internacional e a atuação dos mecanismos de monitoramento devem ser cada vez mais eficientes e capazes de impor obrigações para os Estados.

REFERÊNCIAS

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Eduarda Lopes de Souza é mestranda no Programa de Pós Graduação do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio). Pesquisadora assistente do Núcleo Democracia e Forças Armadas (NEDEFA/PUC-Rio). Bacharel em Defesa e Gestão Estratégica Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do Laboratório de Estudos de Segurança e Defesa (LESD/UFRJ). E-mail: eduarda.azuos@gmail.com

Como citar:
SOUZA, Eduarda Lopes de. A evolução do arcabouço jurídico dos Direitos Humanos no âmbito das Nações Unidas. Diálogos Internacionais, vol. 10, n. 99, Mai. 2023. Disponível em: https://dialogosinternacionais.com.br/?p=2869

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