“Dr Strangelove: or, How I Learned to stop worrying and love the bomb” e sua incumbência na Cultura da Tensão Nuclear.

Volume 10 | Número 102 | Ago. 2023

Por Maria Antônia Neviani Graça

RESUMO

Neste artigo proponho uma análise da causalidade entre a obra cinematográfica “Dr Strangelove: or, How I Learned to stop worrying and love the bomb” de Stanley Kubrick e a cultura da tensão nuclear na primeira metade da década de 60 no cenário de cenário de Guerra Fria. A partir do estudo dos elementos simbólicos da obra, objetivo descrever a relação simbiótica entre o filme e a realidade, a partir da máxima de que o filme surge como reflexo da política externa estadunidense e a posteriori, contribuiu para o debate público sobre a Guerra Fria e a corrida armamentista nuclear. Em conjunto, busco descrever a cultura de tensão nuclear como um fator estruturante e definitivo para o conflito da Guerra Fria. 

1960 A 1964: O BERÇO DA OBRA

“A economia de guerra proporciona abrigos confortáveis para dezenas de milhares de burocratas com e sem uniforme militar que vão para o escritório todo dia construir armas nucleares ou planejar uma guerra nuclear; milhões de trabalhadores cujo emprego depende do sistema de terrorismo nuclear; cientistas e engenheiros contratados para buscar aquela “inovação tecnológica” final que pode oferecer segurança total; fornecedores que não querem abrir mão de lucros fáceis; intelectuais guerreiros que vendem ameaças e bendizem guerras.” BARNET, Richard (1981,p. 97 apud HOBSBAWN, 1995)

Para que seja possível compreender a relevância da obra analisada, é necessário nos debruçarmos sobre o contexto político-histórico em que foi concebida. O ano de 1960 marca quinze anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, que designou o processo de disputa hegemônica no sistema internacional entre os Estados Unidos e a União Soviética, ambas as grandes vitoriosas na Segunda Guerra. A disputa se dava na esfera ideológica, em que os EUA representam a prevalência de sociedades de livre mercado moldadas no sistema capitalista, com o centralismo da cristandade e a propriedade privada, ao passo que a União Soviética representa a socialização dos meios de produção, a economia planejada, o ateísmo e aos moldes comunistas, a universalização do sistema. 

A partir desse momento ambas as potências passam a disputar por zonas hegemônicas ao redor do globo, os Estados Unidos iniciam políticas externas intervencionistas que fomentam a instauração de regimes militares nos países da América Latina1. Em 1961, é construído o maior símbolo materializado da Guerra Fria, o Muro de Berlim, na cidade repartida entre os aliados após a Segunda Grande Guerra. A disputa orbita ao redor do campo científico-tecnológico, se estendendo à corrida espacial. Em abril de 1960, os Estados Unidos lançam o primeiro satélite meteorológico e em abril de 1961 o soviético Yuri Gagarin tornou-se o primeiro ser humano a viajar ao espaço sideral. Apenas em 1964 os Estados Unidos intervêm no Vietnã, tornando-se protagonistas da guerra de escala global mais longa do século XX 2.

No entanto, a corrida armamentista foi o principal conflito tecnológico responsável pela construção e manutenção do conflito, além de ser o precursor da cultura da tensão nuclear. As armas tinham potencial de danos inimagináveis, a radiação liberada pelas explosões poderia impactar distâncias longínquas do foco de ataque, e se produzidas em grande escala, poderiam significar a extinção de todas as formas de vida no planeta terra. A primeira demonstração empírica do poderio nuclear estadunidense foi no ataque ao Japão em 1945, entretanto a ameaça se tornava cada vez mais palpável ao passo que no ano de 19623 foi o com mais registros de ensaios nucleares. Nos anos seguintes se sucederam centenas de testes em ilhas inóspitas do pacífico, em estados interioranos, na Sibéria, Cazaquistão, Ucrânia, entre outros.

As demonstrações ostensivas do poderio nuclear por ambas as potências instalam nas populações de ambos os países, porém de maior envergadura nos Estados Unidos e no mundo ocidental, a cultura da tensão nuclear. A população se vê constantemente sob o risco de um iminente ataque. O departamento de defesa estadunidense fomentava políticas públicas de conscientização sobre como agir sobre um ataque nuclear, dentre as quais o famoso vídeo institucional “Duck and Cover” de 1951 foi um exemplo. Tal confluência de fatores contribui para o sentimento de insegurança, que alimentava os discursos nacionalistas e ideológicos, com a relevante perpetuação do anticomunismo no mundo ocidental, fenômeno que remonta a Doutrina Truman de 1947. 

A cultura da tensão nuclear tem sua origem no medo da “destruição mútua inevitável” (MAD), caso ambas as potências concretizassem os ataques nucleares. O conceito é descrito por Hobsbawm no seguinte trecho: 

À medida que o tempo passava, mais e mais coisas podiam dar errado, política e tecnologicamente, num confronto nuclear permanente baseado na suposição de que só o medo da “destruição mútua inevitável” (adequadamente expresso na sigla MAD, das iniciais da expressão em inglês — mutually assured destruction) impediria um lado ou outro de dar o sempre pronto sinal para o planejado suicídio da civilização. Não aconteceu, mas por cerca de quarenta anos pareceu uma possibilidade diária. (HOBSBAWM, 1995, p.224)

DR STRANGELOVE E SEUS SÍMBOLOS

Dado o entrecho de Guerra Fria, no início dos anos 1960, o cineasta nova-iorquino Stanley Kubrick interessa-se por criar um filme de terror a respeito do conflito. Em seu processo de pesquisa, opta pelo romance “Red Alert” de autoria de Peter George (1958), ex-oficial da Força Aérea estadunidense. O romance aborda a ameaça apocalíptica da guerra nuclear e a facilidade em que uma destruição em massa poderia ser desencadeada naquele momento. Kubrick, ao adaptar a obra para roteiro, considera toda a construção da tensão nuclear como irrisória, e as atitudes militares de ambos os oponentes como fruto de um delírio político. Isso faz com que o diretor decida transformar a obra em um filme de humor ácido, uma sátira e crítica ao temor nuclear e à possibilidade indecomponível de aniquilação de tudo que constitui vida no planeta terra. Dessa visão do diretor, nasce o personagem central, o excêntrico Dr. Strangelove, que não existia no universo original do romance. 

No documentário “Stanley Kubrick Considers the Bomb” de 2019, o diretor britânico Matthew Wells reúne uma curadoria de entrevistas do cineasta e depoimentos de amigos próximos e familiares. Em suas entrevistas, demonstra uma despreocupação em relação a bomba atômica, afirmando que era “o máximo de abstração que se poderia ter”4. Todavia, sua enteada Katharina Kubrick no mesmo documentário esclarece que ele verdadeiramente a temia tanto quanto todos que viviam o contexto5 e essa tinha sido sua motivação em transformar em uma obra de comédia.

Em 29 de Janeiro de 1964, estreia “Dr Strangelove: or, How I Learned to stop worrying and love the bomb”. Foi o décimo filme do diretor, e a comédia satírica conta com um dos mais influentes artistas da época, Peter Sellers, que interpretou três papéis diferentes. O filme se trata de um longa de 102 minutos de duração, em preto e branco, e discorre em 3 diferentes ambientes: 

  1. O avião Airborne B-52, em que se encontram os soldados e o Major ‘King’ Kong, integrantes da força aérea estadunidense. O personagem do Major Kong é incorporado como uma caricata representação do red neck6 americano, se mostrando ao longo do filme muito fiel a causa nacionalista no contexto de conflito. 
  2. A sala de guerra do Pentágono americano, em que se reúnem os principais estadistas e oficiais do governo americano, com a presença do burlesco presidente americano, chamado de Merkin Muffley, o General americano ‘Buck’ Turgidson, o embaixador russo Alexei de Sadesky e o cientista gêrmanico Dr. Strangelove 
  3. A base militar em que se encontram o capitão de grupo Lionel Mandrake e o General Brigadeiro Jack Ripper, responsável pelo ponto central da trama, a bomba. 

A trama se inicia na base militar, com o General Ripper notificando Mandrake que havia recebido o informe pelo Telefone Vermelho 7 de que estavam sob conduta do “Plano R”. A partir desse momento, os aviões B-52 se posicionam a duas horas de distância de seu alvo, a URSS, cada um deles com bombas nucleares de rendimento de “50 megatoneladas, 16 vezes o total da capacidade de todos os explosivos utilizados por todos os exércitos na Segunda Guerra Mundial”. Isso significaria a chegada do temido estopim da guerra nuclear mundial.  Logo Ripper solicita que todos os rádios sejam interceptados e transformam a sala de comando em um bunker para se defenderem das iminentes investidas. Entretanto, havia sido o próprio General o responsável por acionar o Plano R. 

No Airborne B-52, após um primeiro momento de espanto com as ordens de ataque, os soldados se entusiasmam com a enorme honra e dever a pátria que significaria o ataque nuclear pelo qual estariam responsáveis. Major Kong discursa: “If this thing turns out to be half as important as I figure it just might be, I’d say that you’re all in line for some important promotions and personal citations when this thing’s over with.” 8. Em seguida, em seu chapéu de cowboy texano, se põe a ler simbólico kit de sobrevivência equipado na aeronave, que conta com uma bíblia em miniatura, sendo assim mais uma alusão satírica aos padrões culturais americanos e ao centralismo do cristianismo. 

Então os estadistas se reúnem na sala de guerra do Pentágono para discutir a crise. O presidente Muffley e o General Turgidson debatem sobre as alternativas, já que o comando do Plano R era impossível de ser desativado devido ao rompimento de linhas de comunicação com as aeronaves e com a base militar de Ripper. O presidente afirma que a política estadunidense era de nunca atacar primeiro com armas nucleares, o que pode ser interpretado como mais uma frase de cunho humorístico, considerando os bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki em 1945. 

Através de um telefone, notificam o chefe de estado da URSS “Dimitri”, e o diálogo que o telespectador obtém é unilateral, apenas as falas do presidente Muffley são inteligíveis e percebe-se que a comunicação se constrói em um tom apaziguante e cauteloso, como se fossem dois amigos de longa data, mas que a relação se situasse em um verdadeiro campo minado, que qualquer passo incerto levaria a conflito. Mais uma alusão a situação real entre URSS e EUA no momento. Para Hobsbawn, até 1970 o conflito patinava sobre o gelo fino, em que “na hora da decisão, ambas confiavam na moderação uma da outra” (1995, p. 225) 

Entra em cena o embaixador soviético Sadesky, informando a todos presentes que haviam acabado de engatilhar a “Arma do Apocalipse” (Doomsday Machine), um dispositivo soviético programado para o momento que o país estivesse sob ataque nuclear. O acionamento da arma era automático e programado para explodir a partir de qualquer tentativa de desarma-lo. A arma significaria o fim de toda a vida humana e animal na terra e os efeitos radioativos só desvaneceriam após 93 anos, devido ao seu componente “cobalt thorium G”.

Outra cena emblemática do filme se dá no diálogo entre o presidente estadunidense Muffley, o Dr: Strangelove, diretor de pesquisa e desenvolvimento em armamentos, e o embaixador Sadesky. O presidente questiona ao Dr. Strangelove, como é possível uma arma ser acionada automaticamente e ao mesmo tempo, ser impossível de desativar. Strangelove responde que não é só possível, como essencial: “Deterrence is the art of producing in the mind of the enemy..the fear to attack. And so, because of the automated and irrevocable decision making process which rules out human meddling, the doomsday machine is terrifying. It’s simple to understand. And completely credible, and convincing”9. Nesta mesma cena, Strangelove questiona ao embaixador o porquê de terem optado por não contar ao mundo sobre a Arma do Apocalipse: “The whole point of the doomsday machine is lost if you keep it a secret!”10. Esse trecho mostra uma referência clara ao conceito de MAD e a cultura de tensão nuclear, em que uma arma de destruição em massa só cumpre o seu objetivo de dissuasão do inimigo a partir do momento que este tenha conhecimento da existência da ameaça. 

O único comunicado de Ripper ao Pentágono se deu da seguinte forma: “There’s no other choice. God willing, we will prevail in peace and freedom from fear and in true health through the purity and essence of our natural fluids. God bless you all.”11.  Na cena de retorno a base, Mandrake tenta persuadir Ripper de enviar um cessar-fogo aos aviões nucleares, e Ripper elucida suas motivações. Primeiramente afirma que a guerra era importante demais para ser deixada nas mãos dos políticos, como General, via a necessidade de agir pessoalmente. Com a incapacidade de parar os aviões, só haveria uma saída “total commitment.”.

Em seguida, discursa sobre os “fluidos corporais” que faziam parte da conspiração comunista. “I will not sit back and allow Communist infiltration, Communist indoctrination, communist subversion, and the international Communist conspiracy to sap and impurify all of our precious bodily fluids.”12 A conspiração comunista aludida por Ripper se encontrava no imaginário de um grande contingente dos estadunidenses e do mundo ocidental no período, sendo os “fluídos corporais” inspirados em eventos verídicos, descritos a seguir. 

A partir de 1945 nos Estados Unidos surge a discussão sobre a fluoretação da água como política pública sanitária, para impedir o desenvolvimento de cáries e demais complicações dentárias. Entretanto, foi motivo de um longo debate político e científico em torno da medida. O grupo conservador anticomunista “John Birch Church” havia teorizado que a fluoretação se tratava de um plano subversivo de corrupção da população estadunidense, afirmando que a ingestão da água pública estaria corrompendo os “flúidos corporais” e ameaçando a integridade física e psicológica da população, com a risco final de conversão das “vítimas” em comunistas. Em diversas regiões do país, a água fluoretada foi banida e os defensores da prática ameaçados de encarceramento. 

Nesse momento do filme, a interrupção do Plano R é dada como uma opção obsoleta a partir do suícidio do General Ripper. As tentativas de decodificação de Mandrake são falhas, seu palpite era que o código surgiria a partir de anagramas das expressões “Peace On Earth”, e “Purity Of Essence”. Após cogitadas as alternativas de destruição dos aviões, o Airborne B-42 permanece em sua rota, com o alvo sendo o complexo de  ICBM em Kodlosk. As bombas levam o nome de “Hi there” e “Dear John” e no momento de liberação, Major Kong monta em uma das bombas fazendo alusão a um rodeio, e desce em queda livre com seu chapéu de cowboy estendido ao ar. 

Na sala de guerra, o personagem Dr.Strangelove surge sentado em uma cadeira de rodas, em sua mão direita porta uma luva negra, e tem sua fala marcada pelo sotaque alemão e constantes tentativas de conter movimentos involuntários, com uma particular dificuldade em manter a mão enluvada em repouso. Ele sugere sua solução final à trama: um bunker subterrâneo para que se preservasse a raça humana nos 100 anos em que a vida na superfície estaria impossibilitada pela radiação da bomba. Quando confrontado com dilema de quem seriam os selecionados para sobrevivência, ele sugere uma programação informática que determinaria os fatores de juventude, saúde, fertilidade, inteligência e habilidades necessárias, com os cargos altos do governo e militares incluídos para que sejam mantidas as noções de “liderança e tradição”. Nesse momento é possível observar a alusão a eugenia nazista, política racial formulada por Hitler na Segunda Guerra mundial, objetivando a supremacia da raça ariana. 

Figura 1: Dr. Strangelove na Sala de Guerra 

(Fonte: DR. STRANGELOVE: or, How I stopped Worrying and Love the Bomb, 1964)

No momento em que os movimentos involuntários de Strangelove não conseguem mais ser reprimidos, ele levanta de sua cadeira de rodas estendendo o braço direito com a mão enluvada em uma saudação nazista, exclamando “Mein Fuhrer, I can walk!13. Em seguida, a “Arma do Apocalipse” soviética é acionada, e o filme termina com diversas imagens de explosões nucleares, coreografadas ao som de “We’ll Meet Again.”14

No geral, todos os personagens estadunidenses são dotados de personalidades que glorificam à virilidade, a defesa militar dos Estados Unidos, e apresentam desconfiança característica em relação ao personagem russo e ao emblemático personagem germânico. É possível notar diversos elementos na construção caricata dos personagens, moldada em cima dos estereótipos atrelados às nacionalidades no contexto analisado. Um exemplo é a recusa do embaixador soviético Sadesky aos charutos jamaicanos que lhe foram oferecidos na Sala de Guerra, afirmando que não apoia o trabalho de “fantoches imperialistas”. Essa cena em seguida leva a uma discussão e embate físico entre este e o Gen. Turgidson, que o chama de “comunista, ateísta, degenerado!”. Esse momento rende a uma das mais célebres falas do filme: “You can’t fight in here, this is the war room!15

Uma das informações que ilustra a translação entre a linha tênue que divide a ficção da realidade, é a participação do ator Slim Pickens. Intérprete do personagem Major ‘King’ Kong, Pickens não havia sido informado de que o roteiro se tratava de uma comédia de satírica política, e sua construção como personagem não se distanciou de como ele era pessoalmente e de como se posicionava na Guerra Fria como cidadão, de tal forma que Slim Pickens e Major Kong eram ambos dotados do nacionalismo, temor nuclear e o espírito persecutório ao comunismo.

Figura 2 e 3: Imagem da explosão e Major Kong sobre a bomba 

(Fontes: DR. STRANGELOVE: or, How I stopped Worrying and Love the Bomb, 1964)

A REALIDADE PÓS-ESTREIA

Com uma bilheteria de 9,4 milhões de dólares, ‘Dr: Strangelove’ tornou-se um dos maiores clássicos do cinema americano do século XX, sendo indicado ao Oscar nas categorias de melhor filme, melhor direção, melhor ator e melhor roteiro adaptado no ano seguinte da estreia. Entretanto, sua recepção não foi positiva em todos os setores da sociedade estadunidense. Críticos, políticos e militares ufanistas da causa estadunidense na Guerra Fria afirmavam que o enredo era falso e falacioso. O Instituto de Estudos Estratégico manifestou que os eventos do filme seriam impraticáveis, enfatizando a impossibilidade de acionamento de tais armas sem a aprovação do presidente. Entretanto, a repercussão do filme levanta novos questionamentos no âmbito da cultura de tensão nuclear. Seria possível que uma falha de fiscalização militar levasse ao ataque à URSS? Se sim, ocorreria uma retaliação soviética através de algo semelhante a “Arma do Apocalipse”?  

Inicialmente, durante o governo Eisenhower (1953-1961), os oficiais americanos tinham o acesso ao disparo de armas nucleares em casos de emergência, caso não conseguissem contatar ao Presidente. No governo Kennedy (1961-1963), é determinado através do National Security Action Memorandum (1963) que todas as armas nucleares da OTAN deveriam ter Permissive Action Links (PALS), códigos para acionamento em que seriam necessários no mínimo dois oficiais para obter o código completo. Em conjunto, foi criado o Human Reliability Program, para evitar que pessoas com “intempéries psicológicas” e abuso de substâncias tivessem contato com as armas nucleares. Também em 1963, após a Crise dos Mísseis Cubana e a Crise de Berlim, o secretário Robert S. McNamara argumenta que o presidente deveria ser a única pessoa com autoridade, receoso da falibilidade de outros oficiais militares, sendo este mais um elemento abordado na obra de Kubrick.

Já em 1983, o então presidente estadunidense Ronald Reagan (1981-1989) a partir do Strategic Defense Initiative (SDI) lançou o infame “Projeto Guerra nas Estrelas”, que objetivava, entre outras medidas, a instalação de satélites que interceptariam possíveis mísseis soviéticos. Isso desestabilizou o conceito de MAD elucidado anteriormente, já que significaria uma capacidade suprema de destruição e ataque pelo lado estadunidense. Entretanto, tais satélites nunca chegaram à órbita. Um segredo soviético como a “Arma do Apocalipse” chegou a existir na realidade. A “Mão da Morte” Mertvaya Ruka, criada em 1985, poderia ser ativada sem o mando oficial do líder soviético, lançando mísseis de longo alcance em território americano. Os EUA só tomaram conhecimento da existência de tal dispositivo anos após o fim da Guerra Fria.

A CULTURA DE TENSÃO DE GUERRA

A Guerra Fria baseava-se em uma crença ocidental, em que gerações inteiras se criaram à sombra de batalhas nucleares globais que, acreditava-se firmemente, podiam estourar a qualquer momento e devastar a humanidade (HOBSBAWM, 1995). É possível então tecer uma relação entre a cultura de tensão nuclear e os fenômenos que se desencadeiam no Sistema Internacional. 

Uma lente analítica construtivista oferece a perspectiva de que as dinâmicas no Sistema Internacional se originam de forma significativa nas ideologias e no conceito consciência coletiva compartilhada. A cultura e a identidade são fatores de extrema relevância na definição de interesses e constituição dos atores que moldam políticas de segurança e inseguranças globais (KATZENSTEIN, 1996).

Partindo do pressuposto de que tudo que envolve o mundo social da humanidade é criado pela mesma, o Sistema Internacional de segurança e defesa se constitui materialmente de populações, armas (no contexto analisado, as nucleares) e outros aspectos físicos. Mas são as ideias e os entendimentos que levam à criação, uso e organização de tais elementos que têm maior relevância (JACKSON e SØRENSEN, 2015). Neste contexto, é possível afirmar que a cultura de tensão nuclear se mostra ainda mais poderosa que a bomba de forma material, sendo fabricada a partir de entendimentos coletivos que podem corresponder ou não à uma ameaça real. Nesse sentido, é possível perceber que a noção de MAD foi um fator definitivo para a constituição da Guerra Fria, e foi representada de forma precisa no universo cinematográfico de Kubrick. 

É a interação com os demais em um contexto internacional que cria e instaura uma estrutura de identidades e interesses em vez de outra; a estrutura não tem existência ou poderes causais para além do processo (WENDT, 1992: 394). Dessa forma, é possível deliberar que a crença coletiva da ameaça nuclear fabricou nas populações e nos estadistas a própria legitimidade do conflito. Portanto, nota-se que a crítica de Kubrick atingiu um aspecto central das políticas de guerra, ao abordar as diferentes percepções das nações de forma caricata nos personagens do filme, e a forma que as decisões são tomadas em cadeia – os agentes, URSS e EUA, agem em resposta às suas próprias interações que estão mergulhadas na cultura de tensão nuclear. 

Dessa forma, a cultura de tensão nuclear se mostra não só como um produto da Guerra Fria, mas como um fator edificante da mesma. A partir do projeto Guerra nas Estrelas, elucidado no tópico anterior, o conflito passa a caminhar para seu fim. A mudança no imaginário da ameaça nuclear a partir da destituição do conceito de MAD, impacta significativamente a configuração da disputa. Em síntese, o fim do conflito nos anos seguintes não se daria apenas pelas crises materiais ligadas à administração pública e econômica da URSS, mas pelo fato de que a credibilidade coletiva na tensão nuclear havia se esvaziado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os elementos simbólicos da obra, a relação do seu criador com ela e a recepção do público estabelecem uma interdependência notável entre o universo ficcional retratado e a realidade. Stanley Kubrick materializa a cultura de tensão nuclear em sua obra, ao concentrar as interações entre os principais estadistas no conflito ao redor da “Arma do Apocalipse” e traz diversos elementos característicos e construtores desta cultura no contexto do conflito. 

Após a estreia, a repercussão do filme despertou receios nos militares estadunidenses pela sua possibilidade de influência à opinião pública, e possivelmente, contribuiu para um ambiente mais cauteloso em relação à corrida armamentista. Esses elementos podem ser considerados comprovações empíricas dos efeitos da cultura de tensão nuclear. 

Ao considerar a cultura de tensão nuclear como um componente fundamental, percebe-se que sua influência vai além dos fatores puramente materiais e abrange as dinâmicas sociais e psicológicas que moldam as relações internacionais. Assim, compreende-se que a cultura de tensão nuclear e a MAD não apenas contribuíram para a perpetuação do conflito, mas também desempenharam um papel na sua determinação periódica.

REFERÊNCIAS:

DALL’AGNOL, Gustavo. A Economia Política da Guerra nas Estrelas: As Elites Econômicas e a Elite Governamental na Definição da Agenda de Segurança Sob o Governo Ronald Reagan. PEPI, Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: <https://www.ie.ufrj.br/images/IE/PEPI/disserta%C3%A7%C3%B5es/2017/Gustavo%20Fornari%20Dall%20Agnol.pdf> Acesso em Junho de 2021. 

DR. STRANGELOVE: or, How I stopped Worrying and Love the Bomb. Stanley Kubrick. Estados Unidos: Hawk Films e Columbia Pictures, 1964.

DUCK AND COVER. US Federal Civil Defense Administration. Raymond J. Mauer e Anthony Rizzo. Archer Productions, 1951.

HICKS, Jesse. Pipe Dreams: America ‘s Fluoride Controversy. Science History Institute. 2011. Disponível em: <https://www.sciencehistory.org/distillations/pipe-dreams-americas-fluoride-controversy>  Acesso em: Junho, 2021. 

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: O breve século XX. 1914-1991. Editora Companhia das Letras, 2a edição, São Paulo 1995.

JACKSON, Robert e SøRENSEN, Georg. Introduction to International Relations: Theories and Approaches. Oxford University Pressprint, 6ª edição, 2015. 

KATZENSTEIN, Peter J. The Culture of National Security. Editora Columbia Press, Nova York, 1996. 

RIBEIRA, Ricardo “A guerra fria: breves notas para um debate” Novos Rumos, Marília, v.49, n 1, p 87-106, 2012. Disponível em: <https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/novosrumos/article/view/2374/1934> Acesso em Junho de 2021. 

MAUERS, Raymond J e RIZZO, Anthony. Archer Productions, Estados Unidos, 1951. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=IKqXu-5jw60

MCNEIL, Donald R. The Wilson Quarterly (1976-) Vol. 9, No. 3, Wilson Quarterly 1985., pp. 140-153. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/40256913?seq=1>   Acesso em: Junho, 2021. 

RIBEIRA, Ricardo “A guerra fria: breves notas para um debate” 2012, p 87-106)

STANLEY KUBRICK CONSIDERS THE BOMB. Matt Wells. Reino Unido: Park Circus e Sony Pictures Entertainment, 2019.

SCHLOSSER, Eric. Command and Control: Nuclear Weapons, the Damascus Accident, and the Illusion of Safety. Penguin Press, 2013.

THOMSON, Nicholas. Inside the Apocalyptic Soviet Doomsday Machine. Wired, 2009. Disponível em: <https://www.wired.com/2009/09/mf-deadhand/?currentPage=all> Acesso em: Junho, 2021. 

WENDT, Alexander (1992) ‘Anarchy is What States Make of It: The Social Construction of Power Politics’. International Organization 2.

WENDT, Alexander (1999) Social Theory of International Politics First Edition. Cambridge: Cambridge University Press.

WENTWORTH, Harold; FLEXNER, Stuart Berg. Dictionary of American Slang. 3. ed. New York: HarperCollins, 2000.

Como citar:
GRAÇA, Maria Antônia Neviani. Dr Strangelove: or, How I Learned to stop worrying and love the bomb” e sua incubência na Cultura da Tensão Nuclear. Diálogos Internacionais, vol. 10, n. 102, Ago. 2023. Disponível em: https://dialogosinternacionais.com.br/?p=2869

Notas de rodapé

  1. Nos anos seguintes, a intervenção americana se materializou na Operação Condor (1968-1989).
  2. “Depois que este, por sua vez, pareceu à beira do colapso, os EUA travaram dez anos de uma grande guerra, até serem por fim derrotados e obrigados a retirar-se em 1975, depois de lançar sobre o infeliz país um volume de explosivos maior do que o empregado em toda a Segunda Guerra Mundial.” (Hobsbawm, 1995, p. 215).
  3. “A crise dos mísseis cubanos de 1962, um exercício de força desse tipo inteiramente supérfluo, por alguns dias deixou o mundo à beira de uma guerra desnecessária, e na verdade o susto trouxe à razão por algum tempo até mesmo os mais altos formuladores de decisões” (Hobsbawm, 1995, p. 227).
  4. “The atomic bomb is as much of an abstraction as you can possibly have” (Kubrick, Stanley 1960) .
  5. “He was terrified like everybody was, which was why he chose to make a movie about this very terrifying subject which is a threat still,”  (Kubrick, Katharina 2016).
  6. Gíria popular norte-americana que faz referência ao estereótipo dos estadunidenses brancos oriundos do interior e da região sul dos Estados Unidos. Em maioria de baixa renda, conservadores e usualmente republicanos. (WENTWORTH, 1975, p. 424.)
  7. Comunicação direta entre a Casa Branca e o Kremlin, seria o instrumento utilizado em caso de emergência nuclear. (RIBEIRA, 2012, p 87-106).
  8. “Se isso se mostrar ter metade da importância que eu imagino, eu diria que vocês todos estão direcionados para algumas promoções e citações pessoais importantes quando isto acabar” (Strangelove, 1964. Tradução própria).
  9. “A dissuasão é a arte de produzir na mente do inimigo o medo de atacar. Assim, devido ao processo automatizado e irrevogável de tomada de decisões que exclui a interferência humana, a máquina do juízo final é aterrorizante. É simples de entender. E totalmente confiável e convincente” (Strangelove, 1964. Tradução própria).
  10. Todo o objetivo da Arma do Apocalipse é perdido se você a mantêm sem segredo!”(Strangelove, 1964. Tradução própria).
  11. “Não há outra escolha. Se Deus quiser, prevaleceremos em paz e liberdade do medo e em verdadeira saúde através da pureza e essência dos nossos fluidos naturais. Deus vos abençoe a todos”.(Strangelove, 1964. Tradução própria)
  12. Não me sentarei e permitirei a infiltração comunista, a doutrinação comunista, a subversão comunista, e a conspiração comunista internacional para sugar e impurificar todos os nossos preciosos fluidos corporais”. (Strangelove, 1964. Tradução própria).
  13. Meu Fuhrer, eu posso andar!” (Strangelove, 1964. Tradução própria).
  14. Interpretada por Dame Vera Lynn, lançada em 1939 e escrita por Ross Parker and Hughie Charles.
  15.  “Vocês não podem brigar aqui, esta é a sala de guerra!” (Strangelove, 1964. Tradução própria).

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353