Dinâmicas Internacionais e Domésticas na Política Externa do Irã: Uma Perspectiva Neoclássica
Volume 11 | Número 110 | Ago. 2024
Por Marcos André Costa Fortunato
INTRODUÇÃO
O regime teocrático islâmico, que atualmente detém as rédeas do país, ascendeu ao poder em 1979 com a Revolução Iraniana, derrubando o regime pró-ocidental e secular liderado por Mohammed Reza Shah Pahlavi. Este regime havia conseguido, em meados da década de 1950, a aquisição de tecnologia nuclear através do programa estadunidense Atoms for Peace. Em 1973, o Shah instituiu a Organização de Energia Atômica do Irã (AEOI), visando supervisionar a implementação do programa nuclear, investindo nos anos subsequentes na aquisição de mais materiais e equipamentos, bem como na formação de técnicos especializados (NUCLEAR THREAT INITIATIVE, 2010, S/P).
O principal ímpeto da política externa do Líder religioso islâmico Ruhollah Khomeini (1979-1989), após a Revolução, foi o total abandono da orientação pró-ocidental do Shah Pahlavi e a adoção de uma postura de hostilidade em relação às duas superpotências, os Estados Unidos (EUA) e a União Soviética (RAMAZANI, 2013). Assim, como argumenta Patrikarakos (2020), o programa nuclear evoluiu em paralelo ao próprio Estado. Observa-se, portanto, que a Revolução contribuiu de maneira significativa para moldar os objetivos da política externa do país. As Reformas Constitucionais de 1989 estabeleceram o Conselho Supremo de Segurança Nacional, cujo chefe é nomeado pelo presidente. Ao longo dos anos, o Conselho tem afirmado gradativamente sua posição como órgão responsável por debater a política externa do Irã (RAMAZANI, 2013).
O intento deste artigo é analisar a política externa do Irã à luz do arcabouço teórico do Realismo Neoclássico, ressaltando, em particular, a relevância do programa nuclear iraniano entre 1979 e 2004. Para tal, traça-se brevemente a trajetória política do país desde a Revolução Islâmica em 1979 até 2004, com ênfase especial na gênese e motivação da criação do programa nuclear. Ao empregar-se a perspectiva do Realismo Neoclássico, este artigo avalia a interconexão entre o âmbito internacional e o doméstico na formulação da política exterior iraniana, examinando o impacto de variáveis sistêmicas e internas no processo de tomada de decisão. Sendo assim, a pergunta que guia este artigo é: de que forma o sistema internacional e o cenário doméstico influenciaram a política externa iraniana e a retomada do seu programa nuclear? Como hipótese, sustenta-se que ao longo dos anos, a República Islâmica experimentou flutuações drásticas nos objetivos de política externa, que giram em torno da noção de que existem interesses concorrentes entre os do clero islâmico e os da nação em geral.
Nos primeiros anos da Revolução, a liderança do Irã sob a influência do aiatolá Khomeini procurou, por razões e vantagens ideológicas, perseguir o isolacionismo e reduzir o poder dos militares. No entanto, esses prismas ideológicos logo foram desafiados pelos proponentes do interesse nacional e, por vezes, estes últimos triunfaram sobre os clérigos ideológicos na formulação da política externa (KRUSE, 1994, p. 10). Compreender a política externa do Irã é a chave para elaborar políticas sensatas e eficazes em relação ao Irã e requer, acima de tudo, uma análise atenta dos profundos contextos culturais e psicológicos do comportamento da política externa iraniana (MEI, 2009). Para o Irã, o passado está sempre presente. Concomitantemente, uma combinação paradoxal de orgulho pela cultura iraniana e um sentimento de ‘vitimização’ criaram um sentimento feroz de independência e uma cultura de resistência ao ditado e dominação por qualquer potência estrangeira entre o povo iraniano. A política externa iraniana está enraizada neste sentimento amplamente difundido (MEI, 2009).
Acerca deste artigo, constitui-se como um estudo de caso e apresenta, para além desta introdução, uma revisão dos pressupostos centrais do Realismo Neoclássico e, em seguida, uma visão geral da história da política iraniana após os acontecimentos da Revolução de 1979 a partir de uma análise baseada na visão da corrente realista neoclássica. Por fim, é apresentada uma conclusão.
REALISMO NEOCLÁSSICO E SEUS PRESSUPOSTOS CENTRAIS
Como arcabouço teórico para este artigo, utiliza-se a corrente teórica do Realismo Neoclássico, tendo como base os textos de Rose (1998), Schweller (1994) e Ripsman et al (2016). Unir acima A previsão central do realismo neoclássico é que, a longo prazo, a quantidade relativa de recursos de poder material que os países possuem moldará a magnitude e a ambição de suas políticas externas. Destarte, à medida que seu poder relativo aumenta, os Estados buscarão mais influência no exterior e, à medida que cai, suas ações e ambições serão reduzidas de acordo (ROSE, 1998). No entanto, Rose (1998) explica que uma teoria de política externa limitada apenas a fatores sistêmicos está fadada a ser imprecisa na maior parte do tempo. Complementando, Schweller (1994) afirma que um dos maiores problemas de autores que escrevem sob o signo do realismo estrutural é o fato de olhar o mundo apenas da perspectiva de Estados satisfeitos com o status quo. Para o autor, não pode ser entendido como verdadeiro que o objetivo primordial de todo Estado é a sua segurança. Segundo ele, esta seria uma perspectiva típica de Estados pro-status quo, uma vez que apenas Estados já satisfeitos teriam como objetivo manter suas posições no sistema internacional.
Embora os neoclássicos concordem com os neorrealistas de que a política deve se adequar ao ambiente estratégico internacional, os realistas neoclássicos observam que os Estados nem sempre podem adaptar suas políticas às circunstâncias internacionais devido a percepções equivocadas dos estímulos sistêmicos, procedimentos de tomada de decisão que estão aquém do racional ou obstáculos à implementação de políticas causados pela falta de mobilização de recursos sociais (RIPSMAN et al., 2016). Essas falhas são frequentemente influenciadas por: imagens de líderes que interferem com percepções precisas; cultura estratégica, que molda as respostas do Estado; relações Estado-sociedade, que afetam a capacidade do Estado de promulgar e implementar decisões; e instituições políticas internas, que podem permitir ou restringir os líderes estatais quando enfrentam a oposição social (RIPSMAN et al., 2016). Como resultado, esse ambiente de tomada de decisão doméstica mais complexo implica que os Estados não selecionam necessariamente a resposta política ideal para satisfazer restrições sistêmicas; em vez disso, escolhem entre uma série de alternativas políticas para navegar entre restrições sistêmicas e imperativos políticos domésticos (RIPSMAN et al., 2016).
Segundo Lobell, Ripsman e Taliaferro (2016), o primeiro elemento do modelo realista neoclássico de política externa diz respeito às opiniões de um tomador de decisão individual que ocupa uma posição elevada na administração central de um Estado, também chamado por Imagem dos Líderes[1]. O segundo fator é a Cultura Estratégica. A Cultura Estratégica refere-se a um conjunto de crenças, suposições e normas interconectadas que moldam a compreensão estratégica dos tomadores de decisão, das massas e da elite social[2]. Um terceiro fator aborda a relação Estado-Sociedade, e como seus cidadãos podem afetar a quantidade de poder que os tomadores de decisão ou os estados têm. As relações Estado-Sociedade são analisadas a partir de dois conceitos: grau de harmonia e tomada de decisão na resolução de conflitos[3]. O quarto elemento, versa sobre as Instituições Domésticas[4], relacionados com as agências do governo nacional, seus respectivos poderes e os interesses de sua própria agência particular, buscando influenciar em favor da formulação e implementação de políticas dentro do governo central do estado. (LOBELL; RIPSMAN; TALIAFERRO, 2016).
Figura 1 – O Modelo Realista Neoclássico de Política Externa
O governo estabelecido após a Revolução de 1979 promoveu um afastamento radical do governo ocidentalizado de Mohammed Reza Shah Pahlavi[5]. Sendo assim, todos os atributos internos que os neoclássicos argumentam serem decisivos na formulação da política externa mudaram: a política interna mudou, a liderança política mudou e a ideologia do regime também.
POLÍTICA EXTERNA IRANIANA À LUZ DO REALISMO NEOCLÁSSICO
A política externa do Irã é influenciada e moldada pelo poder que possui. Como citado na seção anterior, alguns neoclássicos como Rose (1998) e Schweller (1994) definem o poder como o principal determinante da política externa, pois molda os incentivos e as restrições impostas aos Estados. A política externa do Irã é influenciada e moldada pelo poder que possui. O poder no contexto deste trabalho é basicamente a capacidade de forçar outros países a agir consoante os interesses do Irã, a partir da extração dos recursos totais da sociedade, ou seja, do poder nacional (RIPSMAN et al., 2016). Para os neoclássicos, o poder molda a gama de escolhas, mas não explica por que escolhas específicas são feitas. Logo, essa é a tarefa das variáveis intervenientes: elas explicam escolhas dentro desses parâmetros, especificando estratégias, táticas e explicando o conteúdo, o momento e as consequências das políticas.
O programa nuclear iraniano foi lançado em 1957 com um acordo entre o Irã e os EUA sobre o uso pacífico da energia nuclear no âmbito do programa Átomos para Paz. O apoio de Washington surgiu em um contexto de crescentes laços com Teerã, que via o país como um baluarte contra o radicalismo árabe e os projetos soviéticos no Oriente Médio (BURR, 2009). O Irã assinou o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) em 1968 e o ratificou em 1970. O poder, em suma, é uma causa necessária, mas insuficiente: as variáveis intervenientes são explicações próximas necessárias para explicar como e por que as posições contrárias foram adotadas (ROSE, 1998). No contexto mencionado acima, havia um escopo significativo para o país: as pressões estruturais eram fortes, mas indeterminadas, portanto, não empurravam o Irã em direções específicas de forma tão convincente. Inicialmente, foi em busca de poder, segurança e influência que o Shah lançou o programa. Sob a República Islâmica, o Irã se considerava uma grande potência; tem, portanto, perseguido a tecnologia nuclear consistente com esta autoimagem (GAIETTA, 2015).
O poder crescente do Irã o leva a uma maior autoconfiança no impasse nuclear com os Estados Unidos e as potências regionais. Por esse motivo, a discrepância de status quo muda então os parâmetros nos quais sua política externa opera, impulsionando seu revisionismo ao eliminar de consideração opções moderadas ou conciliatórias e aumentar a probabilidade de políticas de confronto e agressão serem adotadas (SCHWELLER, 1994). E em um ambiente altamente inseguro, não é de surpreender que o Irã considere a possibilidade de desenvolver um programa nuclear. A barganha no centro do TNP exige que os Estados não nucleares renunciem à aquisição de armas nucleares; em troca, os que têm energia nuclear se comprometem a apoiar os que não têm esforços para desenvolver a energia nuclear para fins pacíficos. Para Teerã, os EUA não respeitaram essa barganha. Em vez disso, os EUA intimidam o Irã negando-lhe tecnologia e prendendo-o com um regime de sanções cada vez mais paralisante para mantê-lo fraco, enquanto Israel e Paquistão, não signatários do TNP, adquiriram armas nucleares (GAIETTA, 2015). A República Islâmica vê-se assim como vítima de dois pesos e duas medidas. A busca da autossuficiência também foi importante para o programa nuclear do Irã (CHUBIN, 2006). O Irã insiste em alcançar autonomia no domínio do ciclo do combustível, como testemunham seus esforços para desenvolver uma indústria de mineração de urânio nativa e a infraestrutura necessária para treinar seu próprio quadro de engenheiros e cientistas (BOURESTON; FERGUSON, 2004). O regime também descreve o programa como essencial para o desenvolvimento econômico do país e seus esforços para alcançar a autossuficiência científica (BAKTIARI, 2010).
Antes de ir direto à análise, faz-se necessário identificar os atores que afetam a política doméstica do Irã, portanto, a figura abaixo se propõe a apresentar uma breve explicação da estrutura política do país.
Figura 2 – A estrutura política do Irã
Consoante ao que foi debatido sobre o Realismo Neoclássico, existem quatro fatores que explicam a política externa de um país segundo o modelo realista neoclássico de Lobell, Ripsman e Taliaferro (2016). Para analisar o caso do Irã, a imagem dos líderes pode ser utilizada sob o líder supremo do Irã, Ali Khamenei (1989 – 2024) e o ex-presidente Hassan Rouhani (2013 – 2021). Sobretudo, o ex-presidente Hassan Rouhani, percebe que os estímulos sistêmicos postulam a política externa da República Islâmica, para que o país se envolva em relações diplomáticas construtivas e em jogos de soma positiva de construção de confiança, a fim de reduzir as pressões externas sobre o Irã (HAFEZI, 2014). Além disso, a identidade iraniana é importante para entender suas demandas por uma maior posição de poder no mundo. A identidade nacional e a história do país são percebidas como uma importante justificativa para sua posição insatisfeita na região. O mesmo raciocínio é usado em relação ao programa nuclear iraniano, que, segundo Rouhani (2013), é um projeto pacífico que busca diversificar sua economia. Sendo assim, ele argumenta que a independência de um Estado é uma parte essencial da identidade nacional, onde ele enfatiza que a soberania iraniana deve ser respeitada e a intromissão estrangeira deve ser uma prioridade a ser evitada (ROUHANI, 2013).
No geral, os valores centrais islâmicos tradicionalistas de Rouhani moldam a sua relação internacional. Ele percebe os estímulos sistêmicos como exigindo uma cooperação com potências regionais e ocidentais, uma reaproximação com o Ocidente e um apelo mais amplo para com seus países vizinhos. Por outra perspectiva, Khamenei ocupa o cargo de Líder Supremo do Irã, e seu poder de decisão anula todos os outros tomadores de decisão governamentais. Naturalmente, dedicado ao Islã e tradicionalmente conservador, buscando garantir a sobrevivência de seu estilo islâmico de governo (SHANAHAN, 2015). No entanto, a necessidade de diversificação e percepção nos atores de política externa é altamente necessária para a República Islâmica. Sendo assim, Khamenei se vê insatisfeito com a posição do Irã no Oriente Médio e percebe que o sistema internacional nega as oportunidades de crescimento da República Islâmica, já que as intenções do país são avaliadas por meio de uma percepção de soma zero (TABATABAI, 2019). Por um lado, o aiatolá percebe as pressões externas como vindas principalmente dos países ocidentais. Suas percepções sobre um acordo nuclear multilateral mostraram reconhecimento dos esforços moderados de Rouhani para uma reaproximação ocidental ligeiramente aumentada e algumas de suas declarações sobre o acordo consistiam em uma promessa de que seu país manteria seu compromisso (AKBARZADEH; CONDUIT 2016).
Contudo, o Líder Supremo é visto, como um forte opositor do mundo ocidental e percebe com grande hesitação qualquer tipo de aproximação. Seus valores centrais consistem em princípios islâmicos e nas percepções negativas do Ocidente que existem desde a revolução de 1979 (RAMAZANI, 2001). Além disso, quando confrontado com uma oportunidade de reintegrar o Irã ao sistema internacional (a partir de um acordo nuclear), ele parece manter uma posição bilateral, possivelmente para remover a probabilidade de ele perder prestígio caso a oportunidade e sua confiança no Ocidente sejam em vão e com o equilíbrio da cena política interna, de modo que sua República Islâmica pareça unida a atores estrangeiros e domésticos. Sendo assim, a incoerência da política externa iraniana está na abordagem ambígua dos seus líderes à política externa, a fim de diminuir as pressões sistêmicas sobre o país (CLIFTON, 2014). Por fim, mesmo que seus valores centrais consistam em visões conservadoras antiocidentais, o apoio ao acordo nuclear e a confiança em sua reaproximação ocidental mantém a política externa do país bastante inconclusiva.
O segundo fator do modelo realista neoclássico, a cultura estratégica, no caso do Irã, tem suas raízes em crenças arraigadas da independência histórica do império persa de potências estrangeiras, por volta de 1979 (RAMAZANI, 2001). Nesse contexto, uma parte cada vez maior da população compartilhava da opinião das elites clérigos de que o Shah e o Irã estavam sob controle estrangeiro e que o interesse nacional iraniano e a política externa eram dirigidos pelas potências ocidentais (ABRAHAMIAN, 2007). Logo, essa consciência coletiva evoluiu para crenças comuns e inter-relacionadas sobre anti-imperialismo e antiamericanismo, fortemente apoiadas pela elite clerical. Além disso, estes viram uma demanda generalizada por independência nos processos de tomada de decisão da administração central e um desejo de interesse nacional definido por sua longa história, experiências e percepções culturais persas e islâmicas (KURZMAN, 2004). O estilo islâmico de governança, sua constituição e aspectos revolucionários ainda definem o nacionalismo, a independência e a desconfiança de potências estrangeiras como o núcleo de como os tomadores de decisão e líderes iranianos percebem o sistema internacional e as ameaças ao país atualmente.
A maneira comum de pensar sobre o ambiente de segurança é fortemente influenciada pelo Exército dos Guardiães da Revolução Islâmica (IRGC). Isso mudou algumas das percepções dos iranianos sobre os ambientes de segurança externa e doméstica e os oponentes da cultura estratégica revolucionária estão lentamente acumulando apoio (HASHEMI, 2014).
O terceiro fator, aborda as Relações Estado-Sociedade que pode exemplificado a partir do baixo grau de harmonia durante a Dinastia Pahlavi, ocasionando a revolução de 1979, que, em contrapartida, trouxe um alto grau de harmonia nesta relação. No entanto, as lideranças políticas exploraram esse ambiente de interesses harmoniosos entre as vontades do Estado e da sociedade; assumiram o controle da criação do novo contrato social e deram a si direitos exclusivos e monopólio sobre a tomada de decisões e implementação de políticas no Irã (HASHEMI, 2014).
Em síntese, isso gerou uma mutação de uma política externa inspirada e favorável ao Ocidente, para uma política externa que consiste em princípios e ideias islâmicas, revolucionárias e antiocidentais. A população insatisfeita com as pressões sistêmicas descontruiu a harmonia estabelecida anteriormente, o que obrigou os líderes iranianos a responderem às pressões domésticas elegendo um dirigente moderado como Rouhani. Sob ele, a política externa viu mais aproximação ocidental que satisfez as pressões domésticas e aumentou a harmonia (HASHEMI, 2014). Contudo, Rouhani conseguiu trazer um alto grau de harmonia e reduzir a pressão interna conduzindo uma reaproximação com o Ocidente; melhorando a economia e abrindo o Irã ao sistema internacional sem ameaçar o poder da liderança clerical (ROSS, 2018).
O quarto e último fator do modelo realista neoclássico, são as instituições domésticas. Primeiro, desde o estabelecimento da República Islâmica do Irã, a liderança política iraniana precisava do IRGC para reduzir as pressões domésticas e estrangeiras sobre o país. Os Guardiões, portanto, mantêm a responsabilidade de proteger o país contra ameaças internas e externas (BOROUJERDI; RAHIMKANI, 2011). Ao longo dos anos, o IRGC usou a constituição e o apoio à liderança da República Islâmica para legitimar e expandir seu papel de segurança amplamente definido na República Islâmica e acumular excesso de poder que os incorporam nas principais áreas de onde o país extrai seu poder e segurança (ALFONEH, 2011).
Sendo assim, o poder do IRGC tem dois aspectos no Irã contemporâneo. Seu poder econômico decorre da reconstrução do país após a guerra Irã-Iraque e aumentou constantemente a um nível que faz com que eles controlem um vasto império comercial. Até agora, os membros da IRGC usam seu imenso poder militar em conjunto com seu poder econômico para salvaguardar seus interesses comerciais (ALEMZADEH, 2018). Semelhantemente, o vasto poder que o grupo ganhou ao longo dos anos protegendo a integridade da República Islâmica e sua liderança clerical, incorporou-o na implementação de políticas e na tomada de decisões no Irã. Os Guardas podem dirigir grande parte da política interna e externa da República Islâmica e são capazes de ditar o que são considerados interesses e ameaças nacionais (RAHIMI, 2009). Além disso, este papel embutido, os torna um ator indispensável na formulação de políticas da República Islâmica.
No entanto, sugere-se que o restante do corpo político iraniano vê provavelmente o poder dos Guardiões como um jogo de soma zero, onde Hassan Rouhani foi eleito para garantir que o poder de tomada de decisão no Irã permaneça nas mãos dos clérigos (RAHIMI, 2009). De fato, Rouhani reduziu o poder e a influência do IRGC na tomada de decisões no Irã por meio da política externa moderada que conduziu: reaproximação com o Ocidente, uma política externa diplomática e menos conflituosa com os países vizinhos e o mundo ocidental e, o mais importante; seu apoio à liberalização da economia do país diminuiu coletivamente o poder do IRGC (HASHEMI, 2014). No entanto, como o IRGC conseguiu se inserir na República Islâmica, sua existência não está ameaçada (AKBARZADEH; CONDUIT 2016).
Em suma, a diplomacia iraniana se distingue por uma complicada interação entre os valores islâmicos ancestrais, a necessidade imperativa de diversificação econômica e as pressões sistêmicas tanto regionais quanto globais. A liderança do Irã, fracionada entre figuras como Rouhani e Khamenei, espelha enfoques divergentes que englobam a busca por soberania e autonomia com um esforço adaptativo ao cenário mundial. Rouhani tem adotado uma atitude mais conciliatória, almejando reaproximação com o Ocidente e melhorias econômicas, enquanto Khamenei sustenta uma postura mais conservadora e antagônica ao Ocidente, moldada por uma longa história de desconfiança e resistência às potências estrangeiras.
O IRGC desempenha um papel preponderante, exercendo enorme influência tanto na segurança quanto na economia nacional. A dinâmica entre a liderança política e o IRGC molda a formulação de políticas internas e externas, revelando um equilíbrio delicado entre manter a integridade da República Islâmica e responder às demandas de modernização e abertura internacional (ALEMZADEH, 2018). Todavia, a diplomacia iraniana permanece marcada por incoerências e desafios, com suas instituições domésticas desempenhando um papel crucial na manutenção da estabilidade e no direcionamento das relações internacionais.
CONCLUSÕES
Conforme apresentado, este artigo teve como propósito analisar a política externa do Irã de 1979 a 2004 com ênfase em seu programa nuclear, por meio da ótica do Realismo Neoclássico. O caso do Irã demonstra a complexidade e a multidimensionalidade de sua política externa. Em primeiro lugar, os fatores apresentados por Ripsman, Lobell e Taliaferro (2016) — imagem dos líderes, cultura estratégica, relações estado-sociedade e instituições domésticas — oferecem uma compreensão aprofundada das decisões e das estratégias adotadas pelo país. A liderança iraniana, dividida entre figuras como Hassan Rouhani e Ali Khamenei, refletem abordagens contrastantes. Podemos ver que enquanto Rouhani buscou uma maior aproximação com o Ocidente e melhorias econômicas, Khamenei manteve uma postura conservadora e desconfiada em relação às potências ocidentais. Frequentemente, essa dicotomia resulta em uma política externa ambígua e incoerente, que busca equilibrar a soberania nacional com a necessidade de adaptação ao cenário internacional.
Da mesma forma, a cultura estratégica do Irã, enraizada em sua história de resistência ao imperialismo e ao controle estrangeiro, continua a influenciar significativamente suas decisões. Também a Revolução Islâmica de 1979 e a subsequente desconfiança em relação ao Ocidente moldaram a percepção iraniana de ameaças e oportunidades no sistema internacional. Em virtude disso, as relações estado-sociedade no Irã passaram por transformações significativas desde a Revolução de 1979. Por conseguinte, a harmonia inicial, baseada em interesses comuns entre o Estado e a sociedade, foi corroída por pressões sistêmicas e internas, levando à eleição de líderes mais moderados como Rouhani, que tentou satisfazer essas pressões por meio de uma política externa mais conciliatória.
Por fim, as instituições domésticas, particularmente o Exército dos Guardiães da Revolução Islâmica (IRGC), desempenham um papel crucial na definição da política externa iraniana. Logo, o poder econômico e militar do IRGC, juntamente com seu apoio à liderança clerical, lhe confere uma influência substancial na tomada de decisões políticas e de segurança. Contudo, embora Rouhani tenha tentado reduzir essa influência por meio de políticas de reaproximação e liberalização econômica, o IRGC continua sendo um ator fundamental na política iraniana.
O programa nuclear do Irã, originalmente apoiado pelos Estados Unidos, evoluiu para uma manifestação de autossuficiência e resistência contra pressões externas. A autoimagem do Irã como uma grande potência e a busca por segurança e influência na região impulsionaram seu desenvolvimento nuclear. Assim, sob a República Islâmica, a retórica antiocidental e a necessidade de autonomia tecnológica consolidaram o programa como um elemento central de sua política externa. Embora apresentado como uma iniciativa pacífica para diversificar a economia, o programa nuclear iraniano é também uma resposta às percepções de ameaças e pressões sistêmicas. Logo, a insistência do Irã em desenvolver autonomia no ciclo do combustível nuclear e a busca por autossuficiência científica são reflexos de uma política externa que equilibra a busca por segurança e soberania com as complexas dinâmicas regionais e globais.
Em conclusão, a diplomacia iraniana é caracterizada por uma interação complexa entre valores islâmicos tradicionais, a necessidade de diversificação econômica e as pressões sistêmicas regionais e globais. Com efeito, a liderança fracionada e as instituições domésticas desempenham papéis cruciais na formulação de políticas, refletindo um equilíbrio delicado entre a manutenção da integridade da República Islâmica e a resposta às demandas de modernização e abertura internacional.
REFERÊNCIAS
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[1] Essa variável pode ter uma influência significativa na política externa de um Estado, pois é capaz de impactar um dos três processos intervenientes críticos: a percepção de estímulos sistêmicos. Sendo os outros: a tomada de decisão e a implementação da política (LOBELL; RIPSMAN; TALIAFERRO, 2016)
[2] Essas suposições e crenças conjuntas se tornam uma maneira coletiva de pensar em uma cultura estratégica arraigada, restringindo possivelmente o comportamento e a liberdade de ação de um estado, tornando-o propenso a falhar na adoção de sua política externa para responder adequadamente às pressões sistêmicas (LOBELL; RIPSMAN; TALIAFERRO, p.66-70, 2016).
[3] Um alto grau de harmonia é percebido quando o povo, de modo geral, apoia a administração central e concorda com a direção geral da política externa do país, dando ao Estado mais liberdade para conduzir a política externa que julgar mais adequada para reduzir ou se adequar às pressões sistêmicas. Um baixo grau de harmonia é visto como, por exemplo, quando há falta de confiança na administração central e falta de apoio às suas políticas interna e externa, o que gera o risco de as políticas conduzidas pelo governo responderem às necessidades domésticas e não às sistêmicas, colocando o Estado em desvantagem estratégica. (LOBELL; RIPSMAN; TALIAFERRO, p. 61-71, 2016)
[4] Além disso, entende-se que as instituições domésticas determinam a autoridade da administração e o grau em que os principais tomadores de decisão, os líderes estaduais ou os executivos de política externa devem consultar e seguir os requisitos dos principais atores sociais, que podem ser militares, governantes clericais ou poderosas elites empresariais (LOBELL; RIPSMAN; TALIAFERRO, p. 75, 2016)
[5] Monarca derrubado pela Revolução Islâmica, foi criado por seu pai para ser o primeiro e principal comandante-em-chefe das forças armadas. Ascendendo ao trono em 1941, ele repeliu com sucesso generais que tentaram ganhar o controle das forças. Consolidando o poder após o golpe da CIA de 1953, ele governou como seu pai, usando as receitas do petróleo para expandir drasticamente o Estado. Ele morreu logo após a Revolução – do câncer que ele manteve em segredo até mesmo de sua própria família para não pôr em perigo o seu regime (ABRAHAMIAN, 2008).
Marcos André Costa Fortuna tem interesse em política externa de defesa, programa nuclear brasileiro e realismo nas Relações Internacionais. Bacharel em Relações Internacionais pela Unilasalle-RJ e atualmente realizando Mestrado em Ciências Militares na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). Entre as disciplinas já cursadas durante o Mestrado, destacam-se: Fundamentos de Pesquisa Científica, Estudos de Segurança e Defesa, Logística de Defesa, Economia de Defesa, Tópicos Introdutórios nas Ciências Militares (TICM), Teoria das Relações Internacionais e Defesa em Desastres Químicos, Biológicos, Radiológicos e Nucleares.Lattes: https://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do;jsessionid=A2F658477C65533A1835F0FEBBFBA1A2.buscatextual_0