DIPLOMACIA CIENTÍFICA: O PAPEL DA SPUTNIK- V COMO INSTRUMENTO DE PODER DA RÚSSIA NA PANDEMIA
Volume 11 | Número 110 | Ago. 2024
Por Rafaella Silva
Introdução
Com o fim da União Soviética (URSS), uma transição político-econômica socialista para uma democracia de mercado foi imposta à Rússia, acarretando em diferentes mazelas ao Estado, que se demonstrava economicamente debilitado no Pós-Guerra Fria. Desse modo, a ascensão de Vladimir Putin ao poder (2000) significou uma mudança significativa na Federação Russa, que passou a reestruturar o país a fim de obter seu status perdido de grande potência (MEDEIROS, 2011).
Dentre as propostas que foram implementadas na Rússia nos anos 2000, direcionar maiores investimentos para ciência e tecnologia a fim de retomar a importância destes setores no Estado, se mostrou essencial. Cabe lembrar que a capacidade científica da URSS foi um fator decisivo para a sua condição de grande potência na Guerra Fria, pois possibilitou ao país criar sua própria bomba nuclear e lançar o primeiro satélite ao espaço, o Sputnik I, iniciando a “corrida espacial” (MEDEIROS, 2011).
Desta forma, já era de se esperar que a Rússia, com o surgimento da pandemia de COVID-19 em 2020, buscasse criar uma possível solução para a doença a fim de salvar vidas e, consequentemente, se tornar bem vista na comunidade internacional, já que a ciência russa sempre se demonstrou atrelada à obtenção de poder. A Sputnik-V foi a primeira vacina registrada de combate a COVID-19, demonstrando que a eficiência científica-tecnológica russa ainda se encontrava intacta mesmo com o fim da URSS.
Neste contexto, o objetivo geral deste artigo é analisar a ciência como ferramenta político-estratégica da Rússia no sistema internacional contemporâneo, por meio do estudo de caso da vacina Sputnik-V. Procura-se responder ao seguinte problema: como a diplomacia científica da vacina Sputnik-V influenciou nas relações internacionais da Rússia? Para tanto, a hipótese que orienta o trabalho é que a Sputnik-V foi utilizada como ferramenta geopolítica russa de estreitamento de relações e de maior aproximação com diferentes países, buscando o aumento da influência de Moscou no sistema internacional.
Este tema torna-se relevante à medida que a Rússia, mesmo sendo uma potência importante, com poder militar e nuclear e assento permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), não consegue ampliar suas capacidades e influência de forma que contraponha a ordem estabelecida pelos Estados Unidos (EUA) como feito pela URSS. Esta dificuldade que Moscou apresenta está diretamente atrelada à política de enquadramento que o Ocidente impõe ao Estado por meio de sanções.
Em relação à metodologia, o presente artigo é um estudo de caso, visto que busca analisar as estratégias geopolíticas da Rússia pautadas em ciência e tecnologia através do uso da vacina Sputnik-V. A pesquisa, a partir da classificação de Gil (2002), é guiada pelo método exploratório, tendo como meio de obtenção de dados, o levantamento bibliográfico (GIL, 2002).
2. A Geopolítica e o desenvolvimento científico da Rússia
Segundo Mackinder, geopolítico clássico, o território pertencente à Rússia é onde está localizado o Heartland, núcleo terrestre de todo o continente euroasiático. O Heartland é considerado o “pivô geográfico da história”, do qual a maioria das civilizações historicamente derivam. Assim, quem o controla, possui a capacidade de controlar as demais regiões do globo, se tornando líder do sistema internacional (MACKINDER, 1904).
O Estado russo, entretanto, não obteve esta noção imediatista sobre a importância de sua territorialidade. A referência do Império Mongol de poder territorial levou o Império Russo a utilizar sua posição geográfica como ferramenta estratégica no século XVIII. Fato que gradualmente fez com que a sociedade russa fosse identificada como a “civilização da Terra”, levando a geopolítica russa a ser a geopolítica do Heartland ou terrestre, condenada a entrar em conflito com a civilização do mar, representada desde o século XX pelos EUA (DUGIN, 2015).
Este impasse entre potência marítima e terrestre pode ser analisado durante a Guerra Fria, iniciada em 1947. A divisão bipolar durante a Guerra Fria significou, geopoliticamente, o estabelecimento de um equilíbrio mundial entre o Ocidente capitalista talassocrático (marítimo) e o leste comunista telurocrático (terrestre). Assim, a estratégia geopolítica implementada pela URSS foi reunir as terras do ex-Império Russo em torno do Heartland como um núcleo de poder e influência. Enquanto, no Ocidente, Nicholas Spykman, outro geopolítico clássico, elaborava um modelo de configuração de zonas globais, controladas pelos EUA, que conduziria a América ao domínio da Eurásia (DUGIN, 2015). A principal estratégia norte-americana era possuir o controle sobre a zona costeira do Heartland, o Rimland, no entanto, a URSS reagiu a esta estratégia, ocasionando embates como a Guerra da Coreia e a do Vietnã (BARACUHY, 2021).
O fator armas nucleares foi de extrema importância na Guerra Fria, dando um grande destaque à ciência neste período. O armamento inovador dos EUA, implantado com sucesso nos ataques a Hiroshima e Nagasaki, parecia dar-lhes uma vantagem em um possível confronto com a URSS (WEISS, 2015). No entanto, os soviéticos concentraram seus esforços na obtenção da tecnologia nuclear e, para tal, implementaram estratégias fundamentais.
A primeira estratégia para obtenção de armas nucleares foi a realização de mudanças estruturais na área científica iniciadas ainda na Revolução Russa de 1917. Desde a ascensão do governo Bolchevique, foram percebidas modificações nas políticas científicas da Rússia e posteriormente da URSS. Vladimir Lênin, líder bolchevique, acreditava que o desenvolvimento científico soviético dependia de conhecimentos russos e ocidentais. Desse modo, manteve a autonomia do principal centro de pesquisa do país, a Academia de Ciências da Rússia, que passou a se chamar Academia de Ciências Soviética em 1929 (JUNIOR; PINHEIRO, 2009).
Quando Stalin assumiu o poder, o Estado soviético incentivou ainda mais a ciência. O estadista direcionou altos investimentos para a física e a cosmonáutica, utilizando os aliados que a URSS possuía no mundo para coletar informações necessárias ao desenvolvimento científico-tecnológico do país. O compromisso ideológico dos simpatizantes do comunismo fez deles uma rede de agentes, servindo como fonte de informações, que possibilitou o crescimento do poderio soviético (JUNIOR, 2012).
Os dados vitais sobre armas nucleares, por exemplo, foram adquiridos de um cientista americano, o físico Eodore Hall, por intermédio dos informantes soviéticos que compunham a rede de agentes comunistas. Desse modo, as informações obtidas em conjunto com a pesquisa soviética desenvolvida por Igor Kurchatov possibilitaram que, em agosto de 1949, a URSS testasse sua primeira bomba nuclear, dando início à “corrida armamentista” entre a URSS e os EUA (DUGIN, 2015).
O investimento em cosmonáutica realizado por Stalin também trouxe conquistas. A maior atuação de pesquisadores e engenheiros voltados para o desenvolvimento da área cosmonáutica do país conferiu aos soviéticos um papel pioneiro na construção de projetos ligados a mísseis e ogivas. Desse modo, houve uma hegemonia russa na primeira fase da “corrida espacial”, visto que a URSS lançou a primeira viagem ao espaço, com seu satélite Sputnik (1957), além de o primeiro voo com um ser vivo, a cadela Laika (1957), o primeiro voo tripulado por um homem, Yuri Gagarin (1961), o primeiro voo tripulado por uma mulher, Valentina Tereshkova (1963), e a primeira espaçonave não tripulada a realizar uma alunissagem, a Luna 9 (1966) (CARLEIAL, 1999).
No entanto, a manobra norte-americana de estabelecer uma nova corrida armamentista no governo Reagan com o projeto “Guerra nas Estrelas” abalou a economia soviética, que por não acompanhar o dinamismo econômico, precisou adotar políticas de liberalização econômica (TAVARES, 2017). Estas políticas de maior democratização e descentralização do sistema soviético, Glasnost e Perestroika, propostas por Mikhail Gorbatchev, líder do partido comunista soviético, afetariam também a área científica-tecnológica do país.
A maior descentralização de recursos e a democratização implementada nas instituições científicas deram margem para questionamentos em relação à intervenção estatal. A reorganização dos postos de poder dentro das instituições ocasionou um embate entre os novos cientistas e os antigos acadêmicos, que antes detinham o poder de decisão e se opuseram às mudanças. A partir de 1989, protestos começaram a eclodir na Academia de Ciências Soviética, tornando o clima no instituto instável, situação que piorou com o fim da URSS (JUNIOR, 2012).
A dissolução do bloco soviético em 1991 representou uma vitória da civilização do mar, na qual o Ocidente fortaleceu sua ideologia, expandindo-se cada vez mais ao se aproveitar do vácuo ideológico deixado pelos soviéticos. Esta expansão configurou-se através da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que passou a ter influência nas zonas antes controladas pelos soviéticos (DEUTSCHE WELLE, 2016).
Em relação à geopolítica, duas correntes de pensamento ganharam força na Rússia recém independente. Os internacionalistas liberais, como Gorbachev e Yeltsin, ex-presidentes, acreditavam que os valores ocidentais do pluralismo e da democracia seriam universais, logo, poderiam ser aplicados na Rússia. Enquanto os eurasianistas, como Zyuganov, presidente do Partido Comunista, e Dugin, cientista político, defendiam uma vertente mais nacionalista, identificando a Rússia como um Estado forte e dominante na região da Eurásia. Dugin (2000), assim como Mackinder, considerava a Eurásia o centro do mundo e Zyuganov (1997) afirmava que Moscou poderia se utilizar da sua herança eurasiana para promover seus interesses, podendo assim obter controle sobre o Heartland novamente (BLUM; JACICHEN, 2015).
No entanto, no primeiro momento os internacionalistas liberais obtiveram espaço com Yeltsin no poder (1991-1999). A ilusão liberal vivenciada pela Rússia pró-Ocidente obteve reflexos sobre o campo científico do país. A adoção do Consenso de Washington resultou em uma drástica contração dos setores que não estavam ligados à exportação (FLORES, 2016). Assim, considerando-se apenas o ano de 1992, a ciência russa sofreu um corte de 20% em sua estrutura devido à falta de investimentos. A crise financeira russa de 1998 só intensificou a situação (JUNIOR, 2012).
Quando Putin assumiu a presidência em 2000, inclinou-se à onda geopolítica mais eurasianista, buscando um viés mais autônomo e pragmático, a partir da defesa da retomada do país a sua posição de grande potência (BLUM; JACICHEN, 2015). O presidente iniciou sua política externa realizando visitas aos países do Extremo Oriente.
A percepção governamental era de que a única chance da Rússia de permanecer na história seria construindo uma aliança estratégica de longo prazo com grandes nações eurasianas. Assim, Putin buscou a revitalização das relações com Alemanha, Irã, Índia, China e Japão (DUGIN, 2014).
A nível interno foi implementada uma proposta econômica de maior controle estatal na área de energia, maior presença das empresas estatais em infraestrutura e bens de capital e reorganização do complexo industrial-militar, com o intuito de desfazer o atraso vindo das políticas do governo Yeltsin. A administração de Putin buscou também direcionar maiores investimentos para ciência e tecnologia a fim de retomar a importância destes setores no país (MEDEIROS, 2011).
O governo russo passou a organizar seus centros científicos e tecnológicos, criando e consolidando organismos e políticas que estimulassem a criação intelectual científica no país. Assim, a Academia de Ciências da Rússia passou por uma série de reformas ao longo dos anos a fim de voltar a ser uma referência científica (DEZHINA, 2014).
Uma das políticas adotadas pela administração Putin visava fornecer um apoio maior ao ensino superior, assim, foi direcionado um fundo adicional federal para melhorar a qualidade da educação e impulsionar a ciência. Moscou passou também a obter um maior número de registro de patentes a partir dos anos 2000, que até meados da década de 1990, praticamente não existiam (JUNIOR, 2012).
Desse modo, a reorganização científica do governo Putin contribuiu para que a Rússia retomasse sua alta capacitação científica advinda dos tempos da URSS. A utilização da ciência como mecanismo político de aumento de influência, deu tão certo em tempos de Guerra Fria, na “corrida espacial”, que levou Moscou a direcionar maiores investimentos à ciência, contribuindo para que o Estado fosse pioneiro na criação da vacina de combate a COVID-19 em 2020, na chamada “corrida da vacina”.
3. A Sputnik-V como um instrumento geopolítico da Rússia
Com o contexto de crise na saúde global houve a necessidade por parte dos Estados de direcionar recursos para salvar a população da COVID-19. Desse modo, a Rússia passou a concentrar esforços para criar um possível imunizante, já que a antiga URSS apresentava um histórico positivo na erradicação de doenças e criação de vacinas. A diplomacia científica soviética foi muito bem-vista nas décadas de 1960 e 1970, uma vez que a URSS foi protagonista no combate à varíola ao solicitar à Organização Mundial da Saúde (OMS) a criação de um programa mundial de erradicação da doença (JUNIOR, 2004).
Desse modo, é perceptível que a fim de retomar o sucesso científico soviético, a Rússia se estruturou para que no dia 11 de agosto de 2020, se tornasse o primeiro país do mundo a aprovar uma vacina contra o coronavírus. A vacina foi desenvolvida pelo Centro Nacional de Epidemiologia e Microbiologia Gamaleya em parceria com o Ministério da Saúde, tendo todo o seu desenvolvimento – em torno de R$ 300 milhões – financiado pelo Fundo Russo de Investimento Direto (RDIF, sigla em inglês) (ARAGÃO, 2020).
A denominação da vacina como “Sputnik-V” foi pautada pela vontade de uma boa aceitação do imunizante no âmbito internacional. Segundo Kirill Dmitriev, líder do RDIF, os russos entendiam que haveria muito ceticismo e resistência à vacina da Rússia; portanto, era necessário chamá-la de um nome russo reconhecível internacionalmente (BALAKRISHNAN, 2020). A escolha do nome também expôs o interesse russo de fazer da vacina um instrumento de poder e influência a nível mundial, como ocorrido com o primeiro membro Sputnik, o satélite Sputnik I. A Rússia buscou transmitir com a vacina o “momento Sputnik”, que nada mais é do que um momento de resgate da capacidade russa de contribuir para os avanços científicos mundiais, resolver grandes questões globais e liderar agendas (PONTES, 2021).
No entanto, esta decisão de nomenclatura não obteve o resultado esperado inicialmente, já que a falta de dados e a rapidez no qual a vacina foi criada levou ao questionamento de que a Rússia não havia realizado todas as etapas para salvaguardar se a vacina era segura e combatia a COVID-19. A ausência de relatórios científicos oficiais acerca dos ensaios clínicos e o fato de que a fase três dos testes ainda não tinha sido concluída contribuíram para que a OMS não pudesse dar a sua chancela, dificultando a disseminação da vacina pelo mundo (PONTES, 2021).
Entretanto, a publicação de um relatório na revista científica The Lancet em fevereiro de 2021 contribuiu de forma positiva para uma melhor aceitação da vacina. O relatório que já incluía resultados da terceira fase de testes apontou que o imunizante é seguro e que o mesmo apresentava cerca de 91,6% de eficácia, levando diferentes países a negociarem a compra da Sputnik-V, fomentando a sua disseminação pelo globo e fazendo a Rússia entrar de vez na geopolítica da vacina, que consistiu em uma análise sobre o jogo de poder entre as potências globais e os demais Estados que puderam assumir papéis estratégicos no combate à pandemia (JONES; ROY, 2021).
Uma zona sensível à geopolítica russa é a Europa Oriental e Ásia Central. Devido ao histórico cultural de aproximação, relações econômicas herdadas do período soviético, elementos culturais semelhantes, existência de recursos naturais e posição geográfica próxima, a Rússia sempre quis manter influência sobre os Estados que compunham a antiga União Soviética, temendo muitas vezes as intervenções ocidentais nesta região. Desta forma, a aceitação da vacina russa em Belarus, Turcomenistão, Armênia, Cazaquistão, Uzbequistão, Quirguistão, Moldávia e Azerbaijão representou uma manutenção do poder que Moscou exerce nestes Estados e contribuiu para a geopolítica eurasianista empregada no governo Putin (RUSSIAN NEWS AGENCY, 2021).
Para a Rússia, o espaço pós-soviético é a zona de influência natural do país, sendo-lhe, por tal motivo, essencial, já que mantém a Federação Russa segura de invasões. O histórico de guerras e invasões sedimentou na Rússia a necessidade de contar com uma esfera de proteção que ultrapassasse as suas fronteiras a fim de manter a segurança. Desse modo, para os russos, esta região é primordial, pois exerce esta função como há tempos vinha fazendo no período soviético. A Rússia também depende do acesso a estes países para escoar sua exportação, principalmente seus recursos energéticos para a Europa (ADAM, 2011). Assim, a vacina russa emergiu na pandemia como um novo instrumento de influência de Moscou na região, contribuindo para o fortalecimento de laços antigos com os países pós-soviéticos que compraram a Sputnik-V.
A possível viabilização da vacina russa para a União Europeia (UE), região de grande importância geopolítica para o país devido à venda de gás natural, significou para os russos uma melhora nas relações entre Moscou e o bloco regional. A UE vem implementando diferentes rodadas de sanções contra a Rússia desde a anexação da Crimeia, intensificando esta política com o lançamento da “Operação Militar Especial” pelo governo russo no leste da Ucrânia, em fevereiro de 2022, que deu início à Guerra na Ucrânia (EUROPA, 2024).
Assim, o interesse inicial de países europeus em comprar a vacina russa deu esperança de que as relações pudessem melhorar, já que a Hungria e a Eslováquia utilizaram a vacina russa para imunizar seus cidadãos, enquanto a Itália seria o primeiro país europeu a fabricar a vacina (G1, 2021). Entretanto, a Sputnik-V sofreu diferentes dificuldades de inserção na UE devido à demora da aprovação da Agência Europeia de medicamentos para a compra da vacina russa, além da não aceitação de turistas vacinados com este imunizante. Desse modo, a maioria dos países europeus ficaram impossibilitados de comprar a vacina russa, fazendo com que a UE tenha recebido somente 1,85 milhão de doses da Sputnik-V até junho de 2024 (OUR WORLD IN DATA, 2024).
Na América Latina, diferentemente da Europa, a Sputnik-V foi bem-vista. Desde a criação dos BRICS, a Rússia vem se pondo como um Estado opositor da hegemonia estadunidense e da ordem global pós-Guerra Fria, se aliando aos países do Sul Global (PONTES, 2021). Desse modo, o fato de a vacina russa ter sido aceita na maior parte dos Estados latino-americanos foi uma vitória de manutenção e possível ampliação das relações com o Sul Global. No Brasil, a vacina russa havia sido barrada pela ANVISA, que alegava falhas no desenvolvimento do produto, entretanto a agência brasileira reconsiderou a decisão, liberando sob condições controladas a importação da Sputnik-V (BRASIL, 2021).
O Estado russo tem se aproximado cada vez mais da América Latina investindo bilhões de dólares em contratos e projetos (PANIEV, 2012). A aquisição da vacina russa por estes países fomentou uma melhora nas relações comerciais. O impacto da pandemia nas relações comerciais dos países latino-americanos contribuiu para uma queda nas exportações e importações destes países. Assim, a recuperação econômica pós-pandêmica da região criou novas condições para a retomada do crescimento do comércio exterior, dando brecha para o surgimento de novos parceiros fornecedores de bens e de serviços, algo que beneficiou a Rússia que busca ampliar sua pauta de comércio com a região (SHKOLYAR, 2021).
No Sudeste Asiático, a Rússia promoveu sua vacina primeiramente com modestas doações de ajuda contra a COVID-19, porém estas doações rapidamente se tornaram vendas maiores tendo como principal objetivo a busca de retomada de influência na região. O Estado russo começou sua campanha de vacinação com algumas doações[1] da Sputnik-V. A ação foi bem-vista, resultando em rápidas negociações para venda e produção da vacina na região. Estados como Vietnã, Laos, Filipinas, Mianmar, Malásia, Indonésia e Tailândia compraram Sputnik-V diretamente do governo russo. Além disso, houve a assinatura de acordos para produção da vacina no Vietnã, Malásia e Indonésia (MURPHY, 2021).
A Rússia possui uma relação econômica limitada com a região asiática. Assim, a venda da vacina russa na região foi uma prerrogativa a fim de contribuir para um alargamento das relações, uma vez que a Rússia se colocou na pandemia em um lugar de uma potência asiática com um papel importante em questões regionais como a saúde pública (MURPHY, 2021).
Em relação ao Oriente Médio, países como Irã, Iraque, Jordânia, Bahrein, Líbano, Síria, Emirados Árabes Unidos e territórios palestinos utilizaram a vacina russa. A relação da Rússia com a região vem desde a URSS e com a entrada de Putin no poder tem se intensificado, visto que o estadista tem buscado construir relações equilibradas e estáveis com todos os governos e atores do Oriente Médio (JOMEHZADEH; ROSTAMJABRI; GOODARZI, 2021).
A presença russa na localidade baseia-se na manutenção do status quo, aumento de influência, além de assegurar os interesses russos em recursos energéticos e exportação de armas. Assim, a venda da vacina contribuiu para que a Rússia ampliasse ainda mais suas relações com o território. Um ponto importante que a guerra civil síria mostrou foi que a lealdade de Moscou para com seus aliados é mais forte do que a de Washington. Desta forma, a vacina se colocou como um fator significativo para que os russos ocupassem um grande espaço do vácuo de poder deixado pelos norte-americanos ao saírem da área.
Na África a vacina obteve um espaço limitado. A Argélia foi o primeiro país africano a utilizar a vacina russa, seguido por Guiné, Gana, Egito, Angola, Djibouti, Congo, Mali, Camarões, Namíbia, Quénia, Seychelles, Maurício, Gabão e Nigéria. Entretanto, a declaração da África do Sul de que a Sputnik-V pudesse vir a contribuir para o contágio do HIV levou os demais países do continente a deixarem de utilizar a vacina. Segundo a Autoridade Reguladora de Produtos de Saúde da África do Sul algumas vacinas contra o HIV que utilizaram o Adenovírus Tipo 5, também presente na Sputnik-V, já haviam sido barradas devido ao fato de apresentarem um maior risco de infecção pelo HIV, assim, seriam necessários mais testes para averiguar a segurança da vacina russa (AFRICANEWS, 2020).
A Rússia tem se voltado cada vez mais para o continente africano, muito por conta das sanções ocidentais que isolam o país. Desse modo, o Estado russo vem construindo infraestruturas e fazendo investimentos em alguns países africanos a fim de aumentar sua influência na região que a tempos foi deixada de lado pelos EUA e Europa. A estratégia de Moscou consiste na combinação entre cooperação militar, investimentos e diplomacia energética/econômica, e a partir desta estratégia a Rússia já conseguiu o apoio dos Estados africanos em diferentes questões internacionais, como na da anexação da Crimeia, onde países africanos se abstiveram em 2014 de votar uma resolução da ONU que condenava a Rússia por ter anexado a região antes pertencente à Ucrânia (SAHUQUILLO, 2019). Entretanto, em relação à vacina os russos não demonstraram a mesma eficácia, o que contribuiu na perda de influência de Moscou nos Estados que rejeitaram a vacina russa.
Independente da contestação que a vacina russa sofreu no mundo, da baixa aceitação em alguns Estados, a Sputnik-V foi utilizada, ao todo, em 71 países, ajudando na imunização de 4 bilhões de pessoas. Desse modo, a projeção da vacina russa, mesmo com dificuldades, conseguiu atingir diferentes nações que reconhecem a importância da Rússia na contenção da COVID-19.
Mapa 1 – Países que reconhecem a Sputnik-V
A inovação científica russa caracterizada pela Sputnik-V tirou a economia do país de um momento de estagnação oriundo do baixo comércio internacional com a pandemia. No ano de 2020, a Rússia obteve uma retração de 3% em seu PIB, no entanto, em 2021, ano de maiores vendas da vacina, o país possuiu uma projeção de 4,3% de crescimento, obtendo um superávit de US $80 Bilhões em setembro (THE WORLD BANK, 2021). Assim, a utilização da diplomacia científica russa contribuiu para que o Kremlin conseguisse se desenvolver economicamente mesmo em um cenário global caótico, já que seu imunizante foi posto como mais barato e acessível principalmente a Estados do Sul Global, que não tinham tecnologia própria para desenvolver suas vacinas e nem dinheiro para comprar as vacinas particulares aprovadas. Assim, por ser uma vacina estatal, a Rússia possui o controle total sobre quantas doses dar, a que preço e para quem e isso é condicionado aos interesses do país que busca parceria a longo prazo com os Estados do Sul, conseguindo exercer influência sobre eles.
No entanto, no cenário atual de uma Rússia em guerra contra a Ucrânia, a venda da Sputnik-V encontra diferentes obstáculos. Com os esforços do país direcionados ao conflito militar, a fabricação da vacina russa desacelerou, pesquisas adicionais estagnaram e a visita da OMS às fábricas da Sputnik-V, para a última etapa de aprovação internacional, foi adiada por tempo indeterminado. Estes fatores somados as novas rodadas de sanções aplicadas à Rússia pelos EUA e pela UE, que atingiram diretamente o RDIF, financiador do imunizante, fez com que a diplomacia da vacina russa perdesse sua força (HOFFMAN, 2022).
Considerações Finais
A disseminação pelo mundo da Sputnik-V contribuiu para o desenvolvimento do Estado russo na pandemia que, com a venda da vacina, passou a ter ainda mais influência dentro do Sul Global.
Como demonstrado neste artigo, o imunizante russo foi utilizado como uma ferramenta geopolítica de estreitamento de relações e obtenção de maior aproximação com os países que compraram a vacina. No entanto, contrariando as pretensões do Kremlin, a vacina ao ser nomeada “Sputnik-V” passou a ser vista não como um imunizante que auxilia na contenção do coronavírus, mas como um mecanismo de dominação, levando a diversas contestações da vacina, que dificultaram na obtenção de aumento de influência da Rússia no sistema internacional. Esta visão que o Ocidente possuiu do imunizante russo contribuiu significativamente para a dificuldade de aceitação da Sputnik-V, afirmando de certa forma as medidas de enquadramento que o Ocidente tem imposto à Rússia, que só agravaram com o início da guerra.
A política de países como EUA e até mesmo da UE, de não aceitarem a entrada de pessoas vacinadas com a Sputnik-V, só reafirmou o boicote que a Rússia vem sofrendo desde o fim da URSS. Desse modo, a aplicação de sanções, assim como a não aceitação da Sputnik-V influenciaram negativamente as pretensões russas de obter maior poder dentro da ordem internacional. As únicas opções que restaram para o governo russo ao longo dos anos foram: se aliar a países do Sul Global na busca por reformas no processo decisório das instituições financeiras internacionais desde os anos 2000; e se aproximar do governo chinês, Estado que cada vez mais tem ganhado importância no sistema internacional, fazendo com que o Ocidente tenha que negociar e lidar com dois polos emergentes unidos que constantemente procuram contestar a supremacia norte-americana.
Soma-se aos desafios de projeção internacional da Rússia seu recente envolvimento na Guerra da Ucrânia, que acarretou diferentes tentativas de isolamento do Estado russo, principalmente nos foros internacionais, mas que não obteve tanto êxito devido ao estreitamento das relações de Moscou com seus aliados do BRICS. Com a entrada de mais cinco novos membros – Irã, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos e Etiópia -, o bloco representa uma alternativa, já que não compactua com o isolamento e às sanções ocidentais impostas ao país.
Referências
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[1] 80.000 para as Filipinas, 1.000 para o Vietnã e um montante não especificado para o Laos (MURPHY, 2021).
Rafaella Silva é Graduada em Relações Internacionais pela UniLaSalle – RJ, com experiência acadêmica em estudos voltados para geopolítica e política externa da Rússia. Uma das autoras do livro Relações Internacionais em Perspectiva. Atualmente, atua como Chefe de Divisão na Prefeitura de Niterói. Link do Lattes: https://lattes.cnpq.br/5136763295504750