As contribuições marxistas ao debate teórico das Relações Internacionais
Volume 7 | Número 74 | Ago. 2020
Por Henrique Paiva
O mito fundador das Relações Internacionais como ciência é a aporia diante da questão de como evitar uma nova barbárie da dimensão da I Guerra Mundial. O esforço acadêmico para se responder a esse dilema, particularmente nas universidades britânicas e americanas, resultou em teorias mais interessadas em oferecer soluções convenientes para o projeto de poder das grandes potências no pós-guerra do que refletir sobre as fontes reais da instabilidade sistêmica, como, por exemplo, as desigualdades estruturais decorrentes do imperialismo.[1]
Duas correntes principais surgem desse contexto: o realismo e o institucionalismo. É inegável que ambas apresentam uma relevante construção teórica das dinâmicas do campo internacional, mas não se furtam a proporem estratégias de ação. O realismo concentra-se em estratégias de equilíbrio de poder em um sistema internacional anárquico. O institucionalismo enfatiza a necessidade de elaboração de normas e de criação de instituições que mitigassem os efeitos da anarquia internacional[2]. Esses receituários davam conta das necessidades narrativas e estratégicas do jogo de poder das grandes potências; afinal, toda teoria é interessada, toda mesmo. Como aponta Robert Cox: “Teoria é sempre para alguém e para algum propósito”[3].
Dependendo do contexto geopolítico e do governo da situação, as portas giratórias que unem a alta cúpula estatal e a torre de marfim da academia fizeram com que acadêmicos se tornassem consultores políticos e que estadistas fossem alçados à condição de analistas acadêmicos. Com isso, as teorias obtiveram um viés de confirmação prática expressivo. Por serem teorias portadoras de receituários de ação política, o realismo e o institucionalismo foram elevados à condição de “profecias autorrealizáveis”[4].
Esse condomínio realista-institucionalista dominou amplamente o espectro teórico das Relações Internacionais até o final da Guerra Fria. O que a narrativa anglo-saxã dominante sobre o campo científico das Relações Internacionais não coloca é que o debate a respeito das relações internacionais tem sua cosmogênese nos debates da Segunda Internacional Socialista, com as reflexões de Vladimir Lênin e Karl Kautsky. As contribuições marxistas são fundamentalmente internacionalistas, mas amplamente relegadas nos estudos das Relações Internacionais[5]. A relação entre saber e poder definitivamente não é irrelevante, já alertava Michel Foucault[6].
O fim da Guerra Fria trouxe, tardiamente, para o campo das Relações Internacionais reflexões há muito presentes na Filosofia e nas Ciências Sociais: as contribuições da Escola de Frankfurt, a virada linguística, o pós-modernismo, o pós-estruturalismo, o construtivismo, os estudos de gênero, a sociologia histórica e a teoria crítica. Somente a partir do final do século XX, as Relações Internacionais passaram a discutir sua metateoria, a ponderar sobre sua ontologia, sua metodologia e principalmente sua epistemologia.[7]
É verdade que a sociologia histórica[8] resgatou o materialismo, com autores como Charles Tilly, John Hall, Michael Mann e Theda Skocpol, e que a teoria crítica[9] reuniu as ideias neogramscinianas, a partir das contribuições de Robert Cox, Stephen Gill, Mark Rupert e Andreas Bieler; contudo, as teorias marxistas stricto sensu continuaram sendo silenciadas nos debates teóricos das Relações Internacionais. Desde a ausência de registro nos manuais de RI a cerca dos debates da Segunda Internacional até a virada pós-positivista das RI, o marxismo não recebeu a sistematização necessária, com a notável exceção do excelente trabalho de Fred Halliday[10].
Karl Marx, em “O Capital” e em os “Grundisse”[11], elabora uma profunda análise do funcionamento do sistema e da sociedade capitalista. Marx antecipa a formação do mercado mundial e o perfil cosmopolita de consumo das burguesias nos diferentes Estados. Marx, como analista de conjuntura, também produziu diversos artigos sobre os impérios ultramarinos, a colonização, a imposição de dívida e o protecionismo. Apesar de todas essas contribuições, Marx não sistematizou formalmente uma obra sobre as relações internacionais e o imperialismo[12]. Coube aos pensadores marxistas subsequentes a tarefa de coligir os seus insights sobre a arena interestatal capitalista e, assim, formular teses marxistas sobre as relações internacionais.
A tradição marxista produz, desde o final do século XIX, uma vasta e consistente obra sobre a dinâmica internacional; no entanto, ainda era preciso encontrar os excertos em que realmente se sistematizou uma teoria de Relações Internacionais. Era imperioso para o debate teórico das RI essa tarefa de pesquisa tão hercúlea quanto necessária. Nesse sentido, importante passo na direção do horizonte de análise internacional marxista foi dado com o trabalho realizado brilhantemente por Luiz Felipe Osório, no livro “Imperialismo, Estado e Relações Internacionais”[13].
O primeiro grande debate, que se estende de 1870 a 1945[14], reúne os intérpretes pioneiros de Marx: Rudolf Hilferding, Rosa Luxemburgo, Karl Kautsky, Nikolai Bukharin e Vladimir Lênin. É importante ressaltar que, se é possível criticar o binômio teórico realismo-institucionalismo como estratégias de ação, também não se pode deixar de reconhecer, conforme Osório o fez, que esses autores precursores carregavam “em uma mão a caneta dos estudos e na outra o rifle da batalha”. Todavia, o sucesso teórico e prático conquistado pelo binômio anglo-saxão só teve equivalência para as teses formuladas por Lênin, ainda assim, por um período curto de tempo.
O segundo debate ocorre durante a Guerra Fria, de 1945 a 1991[15], e apresenta um grupo amplo de escolas que podem ser chamadas de neomarxistas: a corrente do capital monopolista (Paul Baran e Paul Sweezy), os teóricos da dependência (Andre Gunder Frank, Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra), e os pensadores do sistema-mundo e das trocas desiguais (Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi e Samir Amin). As contribuições teóricas refletem as questões desse período que caracterizou-se pela ascensão hegemônica dos Estados Unidos; pela polarização com a União Soviética; por outras experiências de comunismo real; pela conciliação em torno do Estado de bem-estar social no centro capitalista; e pela industrialização tardia e seletiva na periferia.
Por fim, o terceiro debate, que se inicia em meio as decisões unilaterais estadunidenses a partir da década de 1970; passando pela intensificação da globalização financeira nos anos 1990 e pelo colapso do regime soviético; até o momento atual de decomposição do acordo social-democrata de bem-estar social[16]. Esse debate contemporâneo foi dividido em três campos: o politicismo, o parcial politicismo e a plena crítica. Na vertente politicista, apresenta-se os autores Michael Hardt, Antonio Negri, Leo Panitch, Sam Gindin e Ellen Wood; na parcial politicista, David Harvey e Alex Callinicos; na plena crítica, Evgeni Pachukanis, Christel Neusüss, Klaus Busch, Claudia von Braunmühl, Joachim Hirsch, Alysson Mascaro e China Miéville.
O pensamento marxista revela a natureza expansiva do capitalismo e suas contradições, como as disputas entre as burguesias nacionais e suas concorrentes estrangeiras, a tendência à oligopolização dos mercados, a submissão da periferia pela exportação dos capitais, a sujeição da atividade produtiva à lógica financeira e, assim, a concentração de riqueza, o aumento da desigualdade de renda, a eclosão de distúrbios sociais, a intensificação da violência internamente e o recurso à guerra como resultante da crise e como portadora do resultado almejado pelas potências capitalistas que se sagrarem vitoriosas. A crise é parte estrutural e definidora do capitalismo, assim como a guerra é o motor de reprodução da crise.
O marxismo relembra que o sistema capitalista funciona em um ambiente comum a todos os operadores: o mercado mundial; e que os operadores desse sistema são os Estados com suas economias nacionais. O mercado mundial seria, portanto, uma forma universal e o Estado, a forma política, onde se desenvolvem as relações complexas e contraditórias entre os atores sociais nas condições materiais existentes. A conversão do Estado moderno em Estado nacional se processa em torno da lógica capitalista. E, embora, o modo de produção capitalista se realize dentro dos Estados, é somente no âmbito internacional que se tem a dimensão da hierarquização dos espaços políticos e econômicos em torno dos centros dinâmicos do capitalismo.
As diferentes contribuições marxistas resgatam a noção perdida de que o Estado capitalista não é uma experiência de organização política que surge de modo espontâneo e isolado. O Estado capitalista surgiu coletivamente como um sistema de Estados, em um contexto geográfico muito específico de disputas territoriais, de circulação comercial, de imposição de tributos e de incipiente produção industrial em uma Europa dividida, mas que foi capaz de produzir um sistema de acomodação (ao menos temporariamente e sempre com altos e baixos) das disputas intraeuropeias pela expansão dos interesses do capital nos projetos ultramarinos. O sistema interestatal é constituinte do capitalismo.
As reflexões marxistas destacam que a dominação capitalista se processa por meio das relações entre Estados. A hierarquização do espaço de sociabilidade capitalista obedece ao nexo do imperialismo. O imperialismo é o vínculo que confere liga às relações que de fato existem no campo internacional. Compreender o imperialismo é conhecer as entranhas que dão organicidade ao capitalismo. Por sua vez, compreender o capitalismo é a chave analítica que revela o jogo geopolítico por trás da acumulação de riqueza e de poder no sistema interestatal. Portanto, para conhecer todas essas estruturas profundas das relações internacionais, é imperioso conhecer as contribuições marxistas ao debate teórico das Relações Internacionais, seja qual for sua matriz de pensamento teórico.
A propósito, se toda teoria é interessada, então seria determinante se escolhêssemos nossa matriz teórica a partir de uma perspectiva ética de emancipação intelectual crítica e de promoção de uma sociedade mais justa, democrática, popular, respeitadora da diversidade, e comprometida com a solidariedade entre os povos.
Henrique Paiva é Henrique Paiva é professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Este artigo foi originalmente apresentado como resenha do livro Imperialismo, Estado e Relações Internacionais, de Luiz Felipe Osório, e posteriormente adaptado e convertido em artigo para a revista Diálogos Internacionais.
Referências:
[1] Sobre a gênese e a autoimagem das Relações Internacionais, sugere-se a leitura de mais dois textos: HOFFMANN, Stanley. An American Social Science: International Relations. Dedalous, 1977, v. 106, n. 3; e SMITH, Steve. The self-images of a discipline: a genealogy of International Relations theory. In: BOOTH, Ken; SMITH, Steve. International Relations theory today. Cambridge: Polity Press, 1995.
[2] Sobre o domínio realista e institucionalista e sua síntese neorrealismo-institucionalismo neoliberal, sugere-se a leitura dos seguintes textos: BALDWIN, David. Neoliberalism, neorealism, and world politics. In: BALDWIN, David. Neorealism and neoliberalism: the contemporary debate. Nova York: Columbia University Press; e BUZAN, Barry. The timeless wisdom of realism? In: SMITH, Steve; BOOTH, Ken; ZALEWSKI, Marysia. International theory: positivism & beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
[3] COX, Robert. Social forces, states and world orders: beyond International Relations theory. In: KEOHANE, Robert. The neorealism and its critics. New York: Columbia, 1986.
[4] Conceito desenvolvido por Merton em MERTON, Robert. Social theory and social structure. New York: Free Press, 1968.
[5] Sobre a presença do Marxismo no debate teórico das Relações Internacionais, sugere-se a leitura de OLE, Woever. The rise and fall of interparadigm debate. In: SMITH, Steve; BOOTH, Ken; ZALEWSKI, Marysia. International theory: positivism and beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 1996; e HALLIDAY, Fred. Um encontro necessário: o materialismo histórico e as Relações Internacionais. In: HALLIDAY, Fred. Repensando as relações internacionais. Porto Alegre: Ed UFRGS, 2007.
[6] FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989; e FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2014.
[7] Sobre o debate pós-positivista, sugere-se a leitura de VASQUEZ, John. The post-positivist debate: reconstructing scientific inquiry and International Relations theory after enlightment’s fall. In: BOOTH, Ken; SMITH, Steve. International Relations theory today. Cambridge: Polity Press, 2004; e SMITH, Steve. Positivism and beyond. In: SMITH, Steve; BOOTH, Ken; ZALEWSKI, Marysia. International theory: positivism & beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
[8] Sobre a Sociologia Histórica nas Relações Internacionais, recomenda-se HOBDEN, Stephen; HOBSON, John. Historical Sociology of International Relations. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
[9] Sobre a Teoria Crítica nas Relações Internacionais, recomenda-se GILL, Stephen. Gramsci, materialismo histórico e relações internacionais. Rio de Janeiro: Ed UFRJ, 2007.
[10] HALLIDAY, Fred. Repensando as relações internacionais. Porto Alegre: Ed UFRGS, 2007.
[11] MARX, Karl. O capital. Crítica da Economia Política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo, Boitempo, 2013; MARX, Karl. O capital. Crítica da Economia Política. Livro II: o processo de circulação do capital. São Paulo, Boitempo, 2014; MARX, Karl. O capital. Crítica da Economia Política. Livro III: o processo global da produção capitalista. São Paulo, Boitempo, 2017; e MARX, Karl. Grundisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo, Boitempo, 2011.
[12] Para uma leitura com ênfase na longa duração do processo de consolidação do capitalismo, sugere-se BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987; BEAUD, Michel. História do capitalismo: de 1500 até nossos dias. São Paulo: Brasiliense, 2004; e DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.
[13] OSÓRIO, Luiz Felipe. Imperialismo, Estado e Relações Internacionais. São Paulo: Ideias & Letras, 2018.
[14] Quem se interessar por resgatar raízes mais profundas na antropologia econômica, recomenda-se GRAEBER, David. Dívida: os primeiros 5.000 anos. São Paulo: Três Estrelas, 2016; e POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.
[15] Para aprofundar as reflexões contemporâneas sobre as consequências da difusão do liberalismo que somente liberaliza o que interessa ao centro capitalista, sugere-se CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica; e BENSAÏD, Daniel. Os irredutíveis: teoremas da resistência para o tempo presente. São Paulo: Boitempo, 2008.
[16] Para se conhecer melhor a dimensão do capitalismo financeiro na atualidade, recomenda-se a leitura de PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014; e de FERGUSON, Niall. A ascensão do dinheiro: a história financeira do mundo. São Paulo: Planeta, 2017. Ambos os autores apresentam uma consistente base de dados, embora Ferguson faça uma leitura mais metalista da moeda e Piketty, mais cartalista.