Politica Externa e Desenvolvimento: acordo para garantir o contrato entre a “Fábrica Nacional De Motores” do Rio De Janeiro e a “Alfa Romeo” entre Brasil e Itália

Volume 9 | Número 91 | Jun. 2022

Por Brenda de Carvalho Lima Rocha

Este artigo se propõe a analisar o Acordo para Garantir o Contrato entre a “Fábrica Nacional de Motores” do Rio de Janeiro e a “Alfa Romeo”, assinado entre Brasil e Itália no ano de 1950, em sua relação com a política externa brasileira do período.

Tendo como temática a cooperação industrial entre Brasil e a Itália, é possível examinar a inserção deste tratado tanto no âmbito específico da política externa do governo Dutra, durante o qual se deu sua celebração, quanto no âmbito mais amplo da política externa brasileira de 1930 até 1985.

Para tanto, o presente trabalho divide-se em três seções, além desta introdução. A primeira discorrerá sobre o período que vai do início da Era Vargas até o fim da ditadura militar, abordando as características gerais da política externa do Brasil que atravessaram este longo período mas, também, algumas particularidades atribuídas pelos diferentes governos. A segunda seção abordará especificamente o contexto no qual o tratado entre Brasil e Itália foi assinado, apresentando a política externa brasileira nos anos em que Dutra assumiu o poder e qual relevância a Itália poderia ter neste cenário. Por último, será analisado o acordo em questão e a sua importância para a política externa da época, conjugando, para isso, as ideias desenvolvidas nas seções anteriores.

  1.  POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA DE 1930 A 1985

A política externa brasileira do período entre 1930 e 1985 encaixa-se, dentro da classificação proposta por Amado Cervo (2003, p. 11), no “paradigma do Estado desenvolvimentista”. Trata-se de um período durante o qual a condução das relações exteriores do Brasil estava orientada para a obtenção dos meios e recursos necessários ao projeto nacional de desenvolvimento do país. Essa nova orientação da política externa iniciada em 1930 marcou o rompimento com a “diplomacia da agroexportação”, impulsionado pela ideologia desenvolvimentista que foi ganhando força no pensamento político, intelectual e da opinião pública, sobretudo a partir dos anos 1950 (CERVO, 2003, p. 12). Conforme aponta Cervo, “os homens de Estado mais contaminados por essa ideologia foram Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Ernesto Geisel” (2003, p. 12). Outro fator que compôs esse paradigma foi o objetivo de superar a assimetria capitalista por meio do desenvolvimento, utilizando-se, idealmente, de uma política externa com autonomia decisória (CERVO, 2003).

Ainda segundo o autor, ao longo do período discutido, foram adotadas diferentes estratégias para realizar o desenvolvimento: ora mais associado ao capitalismo internacional — e especialmente ao centro do sistema capitalista, os Estados Unidos — , ora mais nacionalizado e autônomo (CERVO, 2003). A concepção de desenvolvimento adotada correspondia ao avanço da industrialização e ao crescimento econômico, de modo que “a política exterior destinava-se a preencher requisitos desse desenvolvimento assim concebido, trazendo de fora três insumos em apoio aos esforços internos: capital complementar à poupança nacional, ciência e tecnologia e mercados externos” (CERVO, 2013, p. 14).

Além da sua relação com o desenvolvimento, outro elemento fundamental para a compreensão da política externa brasileira entre 1930 e 1985 é o tradicional relacionamento do Brasil com os Estados Unidos e seus reflexos sobre os demais relacionamentos do país. Ao analisar a construção das parcerias brasileiras, Antônio Carlos Lessa (1998, p. 32), referindo-se ao momento pós-Segunda Guerra até o início da década de 1990, constata que o país procurou diversificar seus parceiros como uma “válvula de escape”, ou um “movimento reativo”, na medida em que as expectativas criadas pelas “relações especiais” com os Estados Unidos eram ou não concretizadas. Ainda assim, conforme o autor:

Oscilando entre o alinhamento automático e o alinhamento pragmático, as relações com os EUA constituem vetor dos mais importantes da Política Exterior do Brasil, uma vez que contingenciava, em grandes linhas, a obtenção de respostas mais efetivas aos problemas financeiros, comerciais, tecnológicos e energéticos que estrangulavam o desenvolvimento econômico. (LESSA, 1998, p. 32)

Delineados esses vetores comuns da política externa brasileira do período, vale destacar, de maneira breve e sintetizada, as particularidades que ela assumiu com os principais governos que se sucederam. Com a Revolução de 1930, que inicia a Era Vargas, ascende ao poder um grupo político preocupado com a industrialização do Brasil. A política externa durante os primeiros 15 anos em que Vargas assumiu o poder pode ser divida em dois momentos. O primeiro, de 1930 até o abandono da neutralidade brasileira na Segunda Guerra, foi o momento da “equidistância pragmática”, no qual “o Brasil fez “jogo duplo” em relação aos Estados Unidos e à Alemanha […] com a finalidade de barganhar” (CERVO; BUENO, 2002, p. 234). O segundo, a partir da opção pelo lado Aliado na guerra, é de alinhamento aos EUA, colhendo benefícios dessa aliança. Em seguida, durante o governo Dutra, verifica-se o que Gerson Moura (1991, p. 59) chama de “alinhamento sem recompensa”: o Brasil continua estritamente alinhado aos EUA, sem obter, no entanto, os mesmos resultados.

Avançando no tempo, no governo de Juscelino Kubitschek a política externa foi melhor instrumentalizada para promover desenvolvimento e modernização no país. Para esse fim, como o apoio norte-americano não foi o esperado, o resultado foi a busca por auxílio dos governos capitalistas europeus e aproximação com os países da América Latina (PENNA FILHO, 2002). Nos governos de Jânio Quadros e João Goulart, foi realizada uma política externa independente, marcada pelo resfriamento das relações com os EUA e por mudanças da posição brasileira em questões relativas ao colonialismo e aos países do Leste (JAGUARIBE, 1996). Por fim, a política externa ao longo da ditadura militar perseguiu um objetivo adicional: transformar o Brasil em grande potência mundial. Segundo Gonçalves e Miyamoto (1993), ela também pode ser dividida em dois momentos: um marcado pela “ideologia das fronteiras ideológicas”, de alinhamento irrestrito aos EUA, do governo Castelo Branco até Médici; outro de maior pragmatismo, durante os governos Geisel e Figueiredo.

  1. CONTEXTO DO ACORDO ASSINADO ENTRE BRASIL E ITÁLIA

A assinatura do Acordo para Garantir o Contrato entre a “Fábrica Nacional de Motores” do Rio de Janeiro e a “Alfa Romeo” com a Itália ocorreu durante o governo Dutra, que durou de 31 de janeiro de 1946 a 31 de janeiro de 1951. O general Eurico Gaspar Dutra foi vitorioso nas primeiras eleições gerais realizadas após a queda de Vargas em 1945, assumindo, portanto, a presidência no momento de redemocratização do país. Segundo Moura (1991), a linha-mestra da política externa do governo Dutra era formada pelo combate ao comunismo internacional e pelo alinhamento aos Estados Unidos.

Quanto à orientação anti-comunista, vale destacar a deterioração do relacionamento do Brasil com a União Soviética, que culminou na ruptura de relações diplomáticas entre os dois países em 1947 (CERVO; BUENO, 2002). Quanto ao alinhamento à política internacional dos EUA, este se deu de modo automático, com poucos retornos significativos para os interesses nacionais. Após lutar ao lado dos Aliados na guerra, “o Brasil se julgava intitulado a receber dos Estados Unidos uma importante assistência econômico-tecnológica, sob a forma de empréstimos a longo prazo e de transferência de know-how industrial” (JAGUARIBE, 1996, p. 34). Havia também a expectativa brasileira de manter sua superioridade militar na América do Sul e de participar ativamente das negociações pós-guerra com as grandes potências (MOURA, 1991). A realidade, no entanto, foi que, com a hegemonia norte-americana consolidada no continente americano, não havia mais motivos para o Brasil receber um tratamento especial dos EUA e a política externa não serviu como instrumento de barganha, em contraste com o que se verificou anteriormente no governo Vargas.

Durante os 5 anos em que Dutra assumiu a presidência, o Itamaraty foi chefiado brevemente por João Neves da Fontoura, no ano de 1946, e por Raul Fernandes, de 1947 a 1951. Conforme aponta Moura (1991, p. 62), a política externa anti-soviética e de alinhamento aos EUA foi, em grande medida, sustentada pelas percepções de Raul Fernandes de que, frente à inevitabilidade do conflito Leste e Oeste, “o Brasil deveria integrar uma “frente ocidental unida” em torno dos EUA”. Essa posição do Ministro das Relações Exteriores, e do Itamaraty, entrava em conflito com a posição mais pragmática e independente que a delegação brasileira na ONU, então chefiada por Osvaldo Aranha, desejava adotar. Nesse sentido,

A delegação brasileira advertia que solidariedade não é servidão ao governo americano, enquanto o Itamaraty considerava dever da delegação brasileira “ajustar-se aos Estados Unidos sem qualquer indecisão”. (MOURA, 1991, p. 63)

Quanto às relações entre Brasil e Itália neste período, um primeiro ponto a ser destacado é que a política externa brasileira prezava o relacionamento com os países europeus ocidentais. Exemplo disso é que o Ministério das Relações Exteriores empenhou-se em apoiar a Itália em suas reivindicações coloniais na Conferência de Paris e nas Nações Unidas, apesar da recomendação dos representantes brasileiros na ONU de que o Brasil deveria se posicionar contra o prolongamento do regime colonial (MOURA, 2012). Ademais, retomando o argumento de Lessa (1998) de que, a partir do pós-guerra, a construção de parcerias estratégicas funcionou como válvula de escape à excessiva dependência em relação aos EUA, a Itália também ganha importância para o Brasil nesse contexto, como uma das alternativas para obter os insumos para o seu desenvolvimento. De fato, durante o governo Dutra, são assinados 13 acordos bilaterais com a Itália — incluindo aquele que é objeto deste trabalho —, que fortalecem os vínculos ítalo-brasileiros em diversas matérias, entre elas, a cooperação financeira e industrial.

  1. O ACORDO PARA GARANTIR O CONTRATO ENTRE A “FÁBRICA NACIONAL DE MOTORES” E A “ALFA ROMEO” NA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA DO GOVERNO DUTRA

O Acordo para Garantir o Contrato entre a “Fábrica Nacional de Motores” do Rio de Janeiro e a “Alfa Romeo” entre Brasil e Itália foi celebrado em 05 de julho de 1950. O tratado, voltado para a cooperação industrial, foi assinado por Raul Fernandes, Ministro das Relações Exteriores do Brasil durante quase todo o governo Dutra, pelo lado brasileiro, e por Mario Augusto Martini, Embaixador da Itália no Brasil de 1945 a 1953, pelo lado italiano[1].

Por meio deste tratado, o governo brasileiro e italiano reconhecem a assinatura do contrato de fornecimento de veículos automóveis à Fábrica Nacional de Motores do Rio de Janeiro pela empresa italiana Alfa Romeo. É destacado no acordo que a Alfa Romeo era inteiramente controlada pela Finmeccanica, que responderia pelos compromissos assumidos pela empresa. A Finmeccanica, por sua vez, era um órgão financeiro do “Istituto di Ricostruzione Industriale”, instituto estatal da Itália criado em 1933 e que, no pós-guerra, expandiu progressivamente sua intervenção na economia italiana, e deixou de existir em 2002. Do outro lado, a Fábrica Nacional de Motores (FNM) foi fundada para a produção de motores de avião em 1942 pelo governo federal, mas sua função inicial foi abandonada com o término da Segunda Guerra. Em 1949, após alguns anos de indefinição, a FNM se voltou para a fabricação de caminhões e, a partir do referido contrato com a Alfa Romeo em 1950, a empresa brasileira consolida sua nova função, que viria a marcar a história nacional com o simbólico caminhão “Fenemê”.

Figura 1 – Caminhão FNM-Alfa Romeo em anúncio de jornal de 1953

Fonte: LEXICAR Brasil[2]

Pode-se inferir, portanto, que o acordo entre Brasil e Itália foi um exemplo bem-sucedido de instrumentalização da política externa brasileira para fazer avançar o desenvolvimento do país, cuja concepção estava diretamente ligada à industrialização, dentro dos parâmetros do paradigma do Estado desenvolvimentista de Amado Cervo (2003). Além disso, a parceria com a Itália representava uma alternativa ao relacionamento com os Estados Unidos, em um momento em que o Brasil recebia poucos retornos da “aliança especial” que ainda acreditava ter com o país; mas ainda condizente com a “perspectiva político-ideológica bastante rígida do Itamaraty” (MOURA, 2012, p. 191) de alinhamento ao bloco ocidental. 

REFERÊNCIAS

ACORDO para Garantir o Contrato entre a “Fábrica Nacional de Motores” do Rio de Janeiro e a “Alfa Romeo”. 05/07/1950. Disponível em: https://concordia.itamaraty.gov.br/detalhamento-acordo/837?TituloAcordo=Acordo%20para%20Garantir%20o%20Contrato%20entre%20a%20%22Fabrica%20Nacional%20de%20Motores%22%20do%20Rio%20de%20Janeiro%20e%20a%20%22Alfa%20Romeo%22.&tipoPesquisa=1&TipoAcordo=BL,TL,ML. Acesso em: 03 jan. 2022.

CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. 2. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2002.

CERVO, Amado Luiz. Política exterior e relações internacionais do Brasil: enfoque paradigmático. Rev. bras. polít. int. [online]. 2003, vol.46, n.2, pp.5-25.

GONÇALVES, William da Silva; MIYAMOTO, Shiguenoli. Os militares na política externa brasileira: 1964-1984. In: GOMES, Angela de Castro; LOVISOLO, Hugo; FERREIRA, Marieta de Moraes (ed.). Estudos Históricos: globalização. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1993. p. 211-246.

JAGUARIBE, Hélio. Evolução da Política Externa. In: ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon (org.). Sessenta Anos de Política Externa Brasileira (1930-1990): prioridades, atores e políticas. São Paulo: Cultura Editores/Nupri/Usp, 1996. p. 30-45.

LESSA, Antônio Carlos. A diplomacia universalista do Brasil: a construção do sistema contemporâneo de relações bilaterais. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, n.41, 1998, pp.29-41.

MOURA, Gerson. Relações Exteriores do Brasil 1939-1950: mudanças na natureza das relações Brasil-Estados Unidos durante e após a segunda guerra mundial. Brasília: Funag, 2012.

MOURA, Gerson. Sucessos e ilusões: relações internacionais do brasil durante e após a segunda guerra mundial. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991.

PENNA FILHO, Pio. Política Externa e Desenvolvimento: o Brasil de JK. Cena Internacional: Revista de Análise em Política Internacional, Brasília, p. 189-206, jul. 2002.

SCHARINGER, João F. FNM. Disponível em: http://www.lexicarbrasil.com.br/fnm/ . Acesso em: 06 jan. 2022. 


[1] Apesar do Acordo para Garantir o Contrato entre a “Fábrica Nacional de Motores” do Rio de Janeiro e a “Alfa Romeo” nunca ter sido denunciado— estando, tecnicamente, em vigor —, ele já não possui nenhuma operabilidade: além de uma série de mudanças ocorridas com o passar das décadas, inclusive com a sua venda para a Alfa Romeo em 1968, a FNM encerrou suas atividades em 1985.

[2] Disponível em: http://www.lexicarbrasil.com.br/fnm/. Acesso em: 28 jan. 2022.

Brenda de Carvalho Lima Rocha é Graduanda em Relações Internacionais pela UFRJ e membro do grupo de pesquisa “Relações Bilaterais do Brasil”, pertencente ao Laboratório de Estudos de Segurança e Defesa do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ.

Como citar esse artigo:

ROCHA, Brenda de Carvalho Lima. Politica Externa e Desenvolvimento: acordo para garantir o contrato entre a “Fábrica Nacional De Motores” do Rio De Janeiro e a “Alfa Romeo” entre Brasil e Itália. Diálogos Internacionais, vol.9, n.91, jun.2022. Disponível em: https://dialogosinternacionais.com.br/?p=26https://dialogosinternacionais.com.br/?p=2686

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353