A ascensão do Talibã no Afeganistão: perspectivas feministas de resistência e o papel do Ocidente nas transformações políticas no Oriente

Volume 10 | Número 105 | Dez. 2023

Afeganistão – Pixabay

Por Ester Sanglard de Azevedo Mendonça

Introdução

Inicialmente, para compreender a relação entre países do Ocidente e processos de transformações políticas em países do Oriente, é preciso examinar o contexto histórico e político do sistema internacional. Historicamente, a estrutura capitalista hegemônica no sistema internacional propicia a divisão da sociedade em grupos dominantes e grupos dominados. Segundo Karl Marx e Friedrich Engels, “a história da humanidade é a história da luta de classes” (MARX; ENGELS, 1848), ou seja, a exploração do homem pelo próprio homem. A partir dessa máxima, o presente estudo pretende focar sua crítica em duas frentes principais de análise: as opressões relativas ao gênero e a supremacia ocidental em detrimento da cultura, costumes, religião e crenças orientais. Como aponta o filósofo contemporâneo Paul Preciado, “as democracias liberais e patriarcais-coloniais européias do século XIX constroem o ideal do indivíduo moderno não apenas como um agente econômico livre (masculino, branco, heterossexual), mas também como um corpo imune radicalmente separado que não deve nada à comunidade.” (PRECIADO, 2020). 

Nesse contexto, ascende o grupo dos Talibãs – em pashtun, “estudantes”: grupo fundamentalista islâmico sunita, formado em 1994, no Afeganistão, que faz uma interpretação mais radical da Sharia, o sistema jurídico do Islã. Como o objetivo central do grupo é aplicar tal visão da Sharia à toda população afegã, grupos de oposição foram massivamente perseguidos durante o regime, o que intensificou ainda mais a opressão a minorias étnicas e religiosas na região, além, é claro, das mulheres. Ao analisar a situação das mulheres no Afeganistão sob o regime do Talibã, fica nítida a influência de conceitos de subalternidade e submissão feminina; sujeições que também seguem reprimindo as parcelas femininas no Ocidente, por mais “civilizado” e “livre” que clame ser. 

Subsequentemente, é impossível estudar a repressão do Talibã em relação às mulheres sem dar atenção especial ao Feminismo Islâmico, corrente crescente tanto no Oriente, quanto no Ocidente. Assim como o Feminismo Negro, o Feminismo Indígena e o TransFeminismo, o Feminismo Islâmico surge da necessidade de uma visão interseccional das demandas femininas, tendo em vista as restrições do Feminismo Branco e Ocidental nascido nos anos 1960. À época, nos Estados Unidos, as pensadoras feministas em questão reivindicavam o direito ao voto, ao trabalho e à liberdade de ir e vir sem a companhia masculina, por exemplo. Entretanto, ao listarem tais demandas e clamarem lutar pela libertação de “todas as mulheres”, acabaram por discriminar e negligenciar necessidades urgentes de mulheres pretas, por exemplo, que sofrem a opressão em duas frentes: pela cor e pelo gênero. Em seu livro, Quem Tem Medo do Feminismo Negro?, Djamila Ribeiro explicita:

“Existe ainda, por parte de muitas feministas brancas, uma resistência muito grande em perceber que, apesar do gênero nos unir, há outras especificidades que nos separam e afastam. Enquanto feministas brancas tratarem a questão racial como birra e disputa, em vez de reconhecer seus privilégios, o movimento não vai avançar, só reproduzir as velhas e conhecidas lógicas de opressão.”  (2018, p 35).

O pensamento de Djamila pode ser facilmente comparado à reação das mulheres islâmicas frente ao Feminismo mainstream, caracterizadamente branco e ocidental. Dessa forma, também fica clara a interferência de lógicas coloniais e imperialistas, que seguem sobrepondo o pensamento ocidental em detrimento do oriental, além de reforçar estereótipos como a obsessão pelo salvamento das mulheres muçulmanas por parte do feminismo branco – tema que será abordado posteriormente por este estudo. Através de uma análise aprofundada sobre o Talibã, o Feminismo Islâmico e os discursos ocidentais acerca do Orientalismo e do relativismo cultural, espera-se entender, portanto, a responsabilidade e o papel do Ocidente nas transformações políticas do Oriente e como sua influência se dá em termos práticos.

1. Talibã: Origem e Doutrinas

“Minha primeira mensagem à nação é para que não se preocupe. Fiquem e vivam em sua nação e em suas casas. Sua nação precisa de vocês, e nós vamos protegê-los.” (SAMIULLAH, Qari). É sob a premissa de paz, proteção e ordem que Qari Samiullah, comandante do Talibã, anuncia a uma TV afegã a reascensão do grupo ao poder no Afeganistão, em agosto de 2021. Em contrapartida à fala, à primeira vista, positiva, porém, se esconde um enorme passado de violência, repressão e perseguição a minorias sociais e étnicas dentro do país por parte do Talibã. O histórico fez com que grande parte da população afegã, principalmente as mulheres, ficasse atemorizada e se sentisse forçada a migrar para outros locais, fora do domínio do Talibã. 

Para compreender a origem de tamanho receio da população em relação ao grupo dos Talibãs, é necessário retroceder à década de 1990. No contexto da Guerra Civil Afegã, a guerrilha local dos Mujahedins resistia ao avanço da União Soviética dentro do território afegão, com apoio bélico de países como os Estados Unidos. Frente a isso, Mohammed Omar, também conhecido como Mulá Omar – ao lado de outros combatentes de milícias armadas e dissidentes de outros grupos – promove a formação do grupo dos Talibãs em 1994. Entre outros ideais, seu intento central era a afirmação e propagação de sua leitura da Sharia, a lei islâmica. O grupo fundamentalista sunita, que também se reconhece como Emirado Islâmico do Afeganistão, consolidou seu poder no país no ano de 1996 e, dessa forma, prosseguiu governando até o ano de 2001, quando os Estados Unidos invadiram o país e militarizaram a região – subsequentemente ao atentado terrorista de 11 de Setembro.[1]

Durante a estadia dos Talibãs no poder do Afeganistão (1996-2001), inúmeras violações dos direitos humanos foram registradas. No Relatório do Afeganistão sobre as Práticas de Direitos Humanos[2] de 1996 do Departamento de Estado dos Estados Unidos, estão expressas como violações do Talibã: a) assassinatos políticos e outros extrajudiciais; b) desaparecimento: raptos, sequestros, ou tomada de reféns para resgate ou por razões políticas ocorreram em áreas não pertencentes ao Talibã; c) tortura e outros tratamentos ou punições cruéis, desumanos ou degradantes; d) prisão arbitrária, detenção ou exílio; e) negação de julgamento público justo; f) interferência arbitrária à privacidade, família, casa ou correspondência; g) uso de força excessiva e violações do direito humanitário em conflitos internos. Diante disso, torna-se compreensível o temor e apreensão instaurados na sociedade afegã após a retomada de poder pelo Talibã em agosto de 2021. 

Figura 1: A Aquisição do Afeganistão pelo Talibã

Fonte: SILVA, Rodrigo et al. El País, 17 de agosto de 2021.

Recentemente, no ano de 2021, o Talibã conseguiu orquestrar sua retomada ao poder, posteriormente ao anúncio da saída dos militares estadunidenses. Em poucos meses, como demonstrado na Figura 1, o grupo passou a controlar diversas regiões do país, até que, finalmente, chega à capital – Cabul – e consolida sua hegemonia.  

Nesse contexto, para um artigo da E-International Relations, Grant Farr disserta sobre Quem são os Talibãs? e, quando enfoca na questão feminina, escreve: 

Embora o Taleban esteja no poder há apenas alguns dias em Cabul, já temos uma ideia de como as mulheres serão tratadas. Uma âncora de TV em Cabul não teve permissão para trabalhar. O Talibã disse a ela: “Você não tem permissão para trabalhar, vá para casa”. Na universidade feminina de Herat, alunas e docentes foram mandadas para casa. Há relatos de talibãs indo de porta em porta à procura de mulheres solteiras entre 14 e 45 anos para se casarem com soldados talibãs. O tempo dirá como as mulheres se sairão sob o governo do Taleban. Mas os primeiros sinais não são bons. (FARR, 2021)

Frente aos recentes acontecimentos, a comunidade internacional também se manifestou, majoritariamente, mostrando preocupação em relação à situação das mulheres e a ascensão do Talibã no Afeganistão. O Porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Rupert Colville, publicou em uma Nota Informativa sobre o Afeganistão a seguinte questão: 

“Porta-vozes do Taleban fizeram várias declarações nos últimos dias, inclusive prometendo anistia para aqueles que trabalhavam para o governo. Eles também se comprometeram a ser inclusivos. Eles disseram que as mulheres podem trabalhar e as meninas podem ir à escola. Essas promessas precisarão ser honradas e, por enquanto – mais uma vez, de forma compreensível, dada a história passada – essas declarações foram recebidas com algum ceticismo. (…) Como o Alto Comissário observou há uma semana, e o Secretário-Geral também apontou ontem, tem havido relatos assustadores de abusos de direitos humanos e de restrições aos direitos de indivíduos, especialmente mulheres e meninas, em algumas partes do país capturado nas últimas semanas. Esses relatórios continuam a ser recebidos.” (COLVILLE, 2021)

 Fica perceptível, portanto, a preocupação de organismos internacionais com a crescente retirada de direitos e práticas repressivas direcionadas às mulheres por parte do Talibã. O cenário remete à famosa frase de Simone de Beauvoir acerca dos direitos femininos, que expressa: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.” (BEAUVOIR, 1949). Resta, porém, analisar e questionar até que ponto práticas ditas opressivas por analistas ocidentais são, de fato, opressivas para as afegãs e qual seria o papel da comunidade internacional e do pensamento feminista da atualidade em relação a essa problemática. Para isso, tais pontos serão abordados no próximo capítulo deste estudo.

2. Feminismo Islâmico

2.1. Origem e Resistência na Atualidade

            Destarte, tratando-se do Feminismo Islâmico, a vertente surge para suprir a necessidade de vozes ativas em relação a transformações urgentes no âmbito religioso. Apesar do termo ser cunhado tardiamente, nos anos 1990, o movimento e a reivindicação das mulheres se iniciou bem anteriormente, há alguns séculos atrás. Já no século XIX, a poetisa iraniana Táhirih, de origem familiar muçulmana, se transformou em mártir após questionar o matrimônio do homem com mais de uma esposa, o uso do véu e limitações vivenciadas pelas mulheres islâmicas. Antes de sua condenação, teria exclamado: “Podem matar-me assim que quiserem, mas não podeis deter a emancipação das mulheres”.[3]

Por conseguinte, no século XX, outras mulheres islâmicas também começaram a reivindicar seu protagonismo, como Aisha Abdul-Rahman, Riffat Hassan e Leila Ahmed. Além destas, é possível destacar o trabalho de Fátima Mernissi – socióloga natural de Fez, no Marrocos – que, a partir de um prisma contrário à ocidentalização, construiu críticas duras ao patriarcalismo dentro da religião islâmica e se tornou um expoente significativo da luta feminista africana e na segunda onda do feminismo islâmico. Segundo Mernissi, “o verdadeiro erro das mulheres foi deixar a memória, o coletivo, a história, o espaço de produção da história – deixá-los nas mãos dos homens.” (MERNISSI, 1993). Dessa forma, em seu primeiro livro, Mernissi[4] defende que a construção de uma mulher árabe passiva e obediente não tem relação com a mensagem original do Islã e foi uma distorção masculina feita por teólogos interessados em reforçar o sistema patriarcal.

Segundo María Lugones, da Universidade de Nova Iorque, em seu artigo Rumo a um Feminismo Decolonial, “descolonizar o gênero é necessariamente uma práxis” (LUGONES, 2014) e, frente a isso, tanto no contexto atual como na história, destaca-se a resistência da RAWA, Revolutionary Association of the Women of Afghanistan (em português, Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão). 

“Desde da tomada soviética do Governo em 1992, o foco da luta política da RAWA está centrado na oposição contra os fundamentalistas, contra as políticas criminais ultra fundamentalistas e contra as atrocidades cometidas contra o povo afegão em geral pelo Taliban e sua orientação ultra machista e contra as mulheres em particular. (…) Enquanto o fundamentalismo existir como força política e militar na nossa terra ferida, o problema do Afeganistão não será resolvido. Hoje a missão da RAWA pelos direitos das mulheres está longe de terminar, e nós temos que trabalhar duro para estabelecer um Afeganistão livre, democratico e secular. Nós precisamos da solidariedade e apoio das pessoas de todo o mundo.” (RAWA, 2021)

Durante a Guerra Civil no país, a RAWA foi responsável por estabelecer escolas, acomodações e hospitais a mulheres e crianças afegãs refugiadas, além de enfermagem, alfabetização e treinamentos vocacionais para mulheres.[5]Atualmente, com a ascensão do Talibã no Afeganistão, a RAWA adotou outros instrumentos de veiculação de informações, como a criação de seu site oficial e perfis em redes sociais, em uma tentativa de encurtar distâncias pela internet e fazer com que cada vez mais pessoas conheçam, se engajem na luta das mulheres afegãs e denunciem as problemáticas relatadas por elas. Em seu site, as mulheres do grupo realizam um trabalho extremamente necessário e completo, explicitando seu engajamento teórico com textos e entrevistas, além de destinar um espaço às recentes notícias que concernem o Afeganistão e a luta feminina. Desse modo, é possível tomar conhecimento de denúncias de estupros, abusos sexuais, violência doméstica e repressões do governo a manifestações – denúncias costumeiramente ignoradas pela justiça patriarcal tanto no Ocidente como no Oriente. 

Evidentemente, porém, a luta que se faz nas ruas permanece essencial. Por esse motivo, as manifestantes do RAWA, mesmo face ao regime do Talibã, seguem demonstrando, também nas ruas, sua força, resistência e compromisso com os ideais que defendem. Recentemente, por exemplo, a RAWA publicou em seu site oficial que, no dia 30 de Setembro de 2021, em protesto pelo direito das meninas afegãs retornarem ao estudo no Ensino Médio, combatentes do Talibã as dispersaram forçadamente, utilizando-se de violência física e inclusive disparando para o ar. Tal violência foi relatada pelo grupo em diversos outros casos.

Por fim, ao analisar lutas feministas islâmicas – como a atuação da RAWA – é possível compreender a complexidade de tal corrente de pensamento. Há, por um lado, a resistência a um patriarcalismo imposto através da religião – que deveria ser igualitária – e, por outro, a colonialidade entrelaçada ao feminismo – que deveria ser libertador.

2.2. Crítica ao Feminismo Ocidental Colonial

“Patricia Hill Collins, intelectual estadunidense, afirma que o local que as mulheres negras ocupam dentro do movimento feminista é o de “forasteira de dentro”. Por estar e ao mesmo tempo não estar, entende esse lugar como um espaço de fronteira ocupado por grupos com poder desigual, pois, ainda que estejam dentro de algumas instituições, essas mulheres não são tratadas como iguais. Collins aponta, porém, a necessidade de se tirar proveito desse lugar. O fato de sermos estrangeiras nos possibilita estar num espaço de fronteira, num “não lugar” que pode ser doloroso, mas também um lugar de potência. Reconfigurar o mundo por meio de outros olhares pode ser uma perspectiva poderosa, já que é capaz de gerar algum pertencimento que não seja a uma sociedade doente e desigual”. (RIBEIRO, 2018)

 No relato, contido no livro Quem Tem Medo do Feminismo Negro?, a escritora Djamila Ribeiro sinaliza uma questão fundamental para a compreensão de feminismos plurais: a necessidade do pensamento interseccional. Ao aplicar o termo “forasteira de dentro” em sua fala, Patricia Collins descreve um sentimento comum a muitas outras mulheres ao redor do mundo – tanto negras, como também indígenas, pobres, portadoras de deficiência, lésbicas, transsexuais e islâmicas – que não se identificam como sujeitos efetivos e pertencentes às pautas abordadas pelo feminismo branco ocidental. Diante disso, urge a criação de correntes teóricas alternativas que incluam os grupos de mulheres segregadas dentro do próprio feminismo, não sendo diferente, portanto, com as mulheres muçulmanas. 

Segundo Edward Said, em sua famigerada obra Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente, o termo Orientalismo seria um produto do discurso gerado pelo Ocidente acerca do Oriente.[6] Dessa forma, ao caracterizar o “outro” como fonte de exotismo e barbárie, ocorre a autoafirmação do “eu” ocidental, que corresponderia a um lugar de superioridade cultural. Assim, moldar tal imagem de inferioridade, significa, na verdade, criar formas de justificar intervenções, além da dominação e da colonização de outros povos.

De acordo com a professora indiana Chandra Talpade Mohanty, que também é ativista feminista, em seu ensaio Bajo los ojos de occidente: academia feminista y discurso colonial, “o feminismo ocidental representa um feminismo essencialista que tenta se passar por universal, dentro de uma instância colonial.” (MOHANTY, 1988). No caso das muçulmanas, especificamente, esse feminismo colonial do Ocidente não só excluiu as verdadeiras demandas do grupo, como também, em uma prática orientalista, apontou a própria religião islâmica como fonte de opressão feminina. Em um dos exemplos mais famosos, está a demonização do hijab, da burqa, entre outras vestimentas que mulheres ocidentais tendem a encarar como um mecanismo de repressão, que serviria de instrumento para cercear as liberdades individuais das muçulmanas. Ao fazer isso, as feministas ocidentais ignoram, paradoxalmente, a liberdade de escolha e de credo das mulheres islâmicas, que não enxergam no véu uma opressão, mas uma expressão de sua fé. 

Contrariamente ao que o imaginário ocidental propõe, entretanto, o livro sagrado do Islã, o Alcorão, prega intensamente a igualdade de gênero. Sobre o assunto, o sociólogo e professor porto-riquenho da Universidade da Califórnia, Ramón Grosfoguel, escreve em seu artigo Breves notas acerca del Islam y los Feminismos Islámicos o seguinte: 

“A mensagem do Alcorão tem um princípio mais radical de igualdade de gênero. O Alcorão sempre fala sobre os humanos e estabelece direitos e deveres iguais para homens e mulheres. (…) para as feministas islâmicas, a mensagem do Alcorão oferece possibilidades de críticas à dominação patriarcal muito mais radicais do que a tradição bíblica (judaica ou cristã), onde existem inúmeras passagens de conteúdo abertamente patriarcal. Não nos esqueçamos de que o Islã reconheceu o direito ao divórcio, propriedade e herança das mulheres por mais de 1.400 anos. O mundo da cultura cristã passou a reconhecer esses direitos no século vinte e ainda religiões cristãs institucionalizadas, como a Igreja Católica, não reconhecem o direito ao divórcio. (GROSFOGUEL, 2014)           

De acordo com Lila Abu-Lughod, antropóloga palestino-ameircana, o ponto de partida para a reivindicação dos direitos das mulheres estaria no Islã e, por isso, ao contrário do que pregam as feministas ocidentais, a libertação não estaria no rompimento com a religião, mas na própria religião.[7] Dessa maneira, tendo em vista a permanência de interpretações patriarcais dos livros religiosos, emerge como um dos principais objetivos do grupo a releitura de tais escrituras sob uma perspectiva de igualdade entre homens e mulheres. 

3. Discursos Ocidentais: Orientalismo e Colonialidade

Em novembro de 2001, Laura Bush, Primeira Dama dos Estados Unidos à época, vai à imprensa declarar seu apoio à luta das mulheres afegãs, utilizando-se da premissa de ser um povo necessitado da luz da civilização – que, claramente, só poderia ser oferecida pelo Ocidente – e gira em torno da argumentação de que as vestimentas islâmicas seriam um sinal de opressão feminina. O discurso, é claro, foi amplamente colocado como justificativa para a intervenção estadunidense no Afeganistão – mais uma ação pela “Guerra contra o Terror”. Diante disso, Lila Abu-Lughod tece críticas extremamente importantes acerca da obsessão ocidental com um projeto de salvação das mulheres muçulmanas e sinaliza:

“A Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão (RAWA) se opôs ao bombardeio americano desde o começo. Não veem nisso a salvação das mulheres afegãs, e sim um aumento do sofrimento e da perda. Por muito tempo clamaram pelo desarmamento e por forças de manutenção da paz. Suas porta-vozes apontam para os perigos de se confundirem governos com pessoas, o Talibã com afegãos inocentes que serão mais prejudicados. Consistentemente lembram às audiências que observem atentamente a forma como as políticas estão sendo organizadas em torno de interesses petrolíferos, da indústria armamentista e do comércio internacional de drogas. Não estão obcecadas com o véu, mesmo sendo as feministas mais radicais que têm trabalhado por um Afeganistão secular e democrático. Infelizmente, apenas as suas mensagens sobre os excessos do Talibã foram ouvidas.” (ABU-LUGHOD, 2012)

Na obra Os Condenados da Terra, Frantz Fanon argumenta: “Como que para ilustrar o caráter totalitário da exploração colonial, o colono faz do colonizado uma espécie de quintessência do mal.” (FANON, 1961). Dessa forma, qualquer tipo de abstração referente ao “outro” é tida como válida, se assim for suficiente para justificar uma intervenção que sirva aos interesses econômicos e políticos dos países imperialistas. Nesse sentido, Fanon continua: “Não basta ao colono afirmar que os valores desertaram, ou melhor, jamais habitaram o mundo colonizado. O indígena é declarado impermeável à ética, ausência de valores. (…) É, ousemos confessá-lo, o inimigo dos valores. (…) É o mal absoluto.” (FANON, 1961). Aplicando essa lógica ao contexto de Laura Bush e as mulheres muçulmanas, fica claro que a propagação de tais orientalismos não possui compromisso com a igualdade nem com a liberdade, senão com a autoafirmação da cultura e princípios ocidentais e com a manutenção de uma hegemonia de poder liderada pelos Estados Unidos.

Outra evidência da construção de um ideário oriental distorcido por parte do Ocidente está presente na história das mesquitas marroquinas. De acordo com Ramón Grosfoguel, esses locais sempre foram abertos à comunidade: tanto aos muçulmanos quanto aos não-muçulmanos. Entretanto, em uma viagem ao Marrocos com Asma Lamrabet, do Centro de Estudos da Mulher no Islã, o professor descobriu a proibição da entrada de não-islâmicos nas mesquitas do país. Segundo ele, para sua surpresa, “isso foi institucionalizado a partir do colonialismo francês, quando um general chamado Louis Hubert Lyautey passou um decreto proibindo a entrada de não-muçulmanos nas mesquitas como uma estratégia de ‘divide e reinarás’ ou ‘divide e vencerás’.” (GROSFOGUEL, 2014). Mesmo atualmente, porém, o decreto segue institucionalizado e considerado como uma prática autêntica do Islã, o que serve para reforçar estereótipos, a segregação e a distorção da imagem islâmica.[8]

Nesse cenário, ascendem, por consequência, discursos que não fazem jus à realidade dos povos colonizados. Assim, seu protagonismo em sua própria história se perde e é silenciada em contraponto à veiculação midiática de pautas secundárias ou inexistentes na luta verdadeira. Tudo isso, em nome de um ideal de salvação já explicitado na história dos Estados Unidos, como a Doutrina Truman, “o fardo do homem branco” e o Destino Manifesto – todas justificativas para intervir, colonizar e explorar. Como disse Edward Said, “Reflexão, debate, argumentação racional, princípios morais baseados na noção secular de que o ser humano deve criar sua própria história – tudo isso foi substituído por ideias abstratas que celebram a excepcionalidade americana ou ocidental (…)” (SAID, 2007). 

Conclusão

“Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo.” (FREUD, 1930).

 Mediante à realização desta análise, é possível concluir que, com a recente ascensão do Talibã no Afeganistão, é imensurável a importância de movimentos feministas na região, que atuem em prol da igualdade de gênero e pela libertação feminina local. Com seus direitos ameaçados, as mulheres afegãs se mobilizaram e formaram inúmeras frentes de luta, através de protestos nas ruas, da circulação de informações e denúncias sobre a violência do regime.

Vale ressaltar que é inconteste a necessidade da formação de novas correntes de feminismo que sejam plurais, interseccionais e decoloniais, além do seu incentivo e aprofundamento. Como exposto, a libertação das mulheres islâmicas não pode ser protagonizada ou compreendida pelo feminismo branco ocidental. Entretanto, não liderar ou protagonizar uma luta não significa que se deva esquecê-la ou negligenciá-la. Pelo contrário, “(…) cada campo individual está ligado a todos os outros, nada do que acontece em nosso mundo se dá isoladamente e isento de influências externas” (SAID, 2007). Portanto, como ocidental e também fonte de discriminação, o feminismo branco tem a responsabilidade de, antes de tudo, se propor a escutar o que as feministas islâmicas têm a dizer: o que demandam, quais são suas necessidades e pautas verdadeiras; e de ir além, demonstrar suporte prático às lutas das mulheres muçulmanas e combater orientalismos característicos dos movimentos ocidentais. Como expressa a Associação Revolucionária de Mulheres do Afeganistão, “a liberdade e a democracia não podem ser doadas, é obrigação do povo de um país lutar e conquistar seus valores.” (RAWA, 2021). Por fim, todas as lutas de emancipação e libertação estão, na verdade, interconectadas; sob a perspectiva de dominadores e dominados, exploradores e explorados, colonizadores e colonizados. Nesse sentido, não pode haver descolonização sem despatriarcalização nem despatriarcalização sem descolonização. 

Referências Bibliográficas

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SILVA, Ana Flávia Nunes da. A Influência da Religião no Crescimento do Movimento Talibã no Afeganistão (1989 a 1996). 2014. 60 p. TCC (Graduação em Relações Internacionais) – UFPB, João Pessoa, PB, 2015. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/1476/1/AFNS251016.pdf . Acesso em: 28 set. 2021.


[1] THE AFGHAN Taliban: Organizational Overview, 2018. Disponível em: https://cisac.fsi.stanford.edu/mappingmilitants/profiles/afghan-taliban#text_block_16833 . Acesso em: 3 out. 2021.

[2] AFGHANISTAN Report on Human Rights Practices for 1996. U.S. Department of State. Bureau of Democracy, Human Rights and Labour, 30 jan. 1997. Disponível em: https://1997-2001.state.gov/global/human_rights/1996_hrp_report/afghanis.html . Acesso em: 3 out. 2021.

[3] AFAQI, Sabir (editor) (2004). Táhirih in History: Perspectives on Qurratu’l-‘Ayn from East and West. [S.l.]: Kalimát Press. pp. 185–201.

[4] MERNISSI, Fátima. The Veil and the Male Elite: A Feminist Interpretation of Women’s Rights in Islam. December 1992.

[5] AFGHANISTAN, Revolutionary Association of the Women of. About RAWA. 2021. Disponível em: http://www.rawa.org/rawa.html . Acesso em: 5 out. 2021.

[6] SAID, Edward W. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

[7] ABU-LUGHOD, Lila. As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Reflexões antropológicas sobre o relativismo cultural e seus Outros. Estudos Femininos, Florianópolis, maio-agosto/2012, p. 451-469.

[8] GROSFOGUEL, Ramón. Breves notas acerca del Islam y los Feminismos Islámicos. Tabula Rasa, Bogotá, Colombia, no 21: 11-29, julho-dezembro de 2014.

Ester Sanglard de Azevedo Mendonça é graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Este trabalho foi feito com a supervisão do professor Fernando Brancoli (IRID/UFRJ).

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353