Edição Especial Diálogos Internacionais: Um novo eixo global em direção à Ásia

Volume 11 | Número 110 | Ago. 2024

Por Leticia Cordeiro Simões e Fernanda Nanci Gonçalves

Todos os continentes são construções políticas e com a Ásia não é diferente. No entanto, o que a difere dos demais é o fato de ser exclusivamente, no sentido geopolítico, um conceito ocidental surgido na Grécia clássica, e não na região propriamente dita. A ideia de ‘Ásia’, é, portanto, europeia, nascida a partir da noção de mundo formado por três continentes – Europa, África e Ásia – sendo esta última definida como tudo aquilo que estivesse à leste da Grécia (MCDOUGALL,2007).

Segundo Emmot (2008), a Ásia não possui sentido étnico, racial ou linguístico. E talvez por falta de uma definição melhor, ou apenas por um costume imposto pela lógica de mundo eurocêntrica, continuamos nos referindo a Ásia da mesma forma como os antigos gregos a ela se referiam: a partir da Europa – Oriente Próximo, Oriente Médio; Extremo Oriente ou Oriente Distante. Contudo, é muito difícil tratar de um conjunto ‘Ásia’ como algo único ou homogêneo, e, mesmo assim, qualquer pessoa interessada por política internacional neste século entende a importância deste continente nas pesquisas e análises dos mais diversos campos que extrapolam a economia ou a política. 

A Ásia, como um todo, pode ser considerada hoje uma das áreas de maior interesse da Comunidade Internacional, não só por ser lar de mais da metade da população mundial, mas por ser formada por players relevantes da política internacional e algumas das maiores potências econômicas e inovativas do cenário global. Conhecida como a área mais dinâmica em termos de capitalismo (ARRIGHI, 1996), torna-se cada vez mais importante que esta parte do globo, suas dinâmicas econômicas e produtivas, seus atores e líderes, sejam conhecidos e analisados. 

E por mais que a centralidade da Ásia em diversos aspectos possa parecer algo novo, inaugurado com a recuperação do Japão durante a Guerra Fria ou com a (re)ascensão da China a partir do final do século XX, por muitos milênios a Ásia foi o centro econômico e comercial do mundo garças, em grande medida, a impérios como o Chinês, o Hindu e o Persa. Berço de grandes civilizações, a China e a Índia contribuem há muitos séculos para avanços importantes da humanidade. Até 1820 a Ásia era responsável por cerca de 2/3 da riqueza mundial sendo superada pelo Ocidente apenas no século XIX em razão da Revolução Industrial, que concentrou o poder e a riqueza na Europa e na América do Norte (ALVES, 2019).

Um relatório de 2012 da McKinsey & Company, empresa norte-americana de consultoria estratégica, apontava que o centro de gravidade econômico se dirigia para o Leste cerca de 140 km por ano e, em 2025, retornaria para o centro do continente asiático. Esta movimentação reflete um encolhimento relativo dos países ocidentais (como Canadá, EUA, países da União Europeia e Reino Unido) e, ao mesmo tempo uma ascensão dos países orientais, de uma Ásia Emergente, onde figuram China e Índia, como era de se esperar, além de países como Laos, Camboja, Vietnã, Filipinas, Bangladesh, Tailândia, Malásia, Indonésia, Mongólia e outros (DOBBS ET AL, 2012). 

Estes dados podem ser resumidos a partir da comparação da participação de países Ocidentais e Orientais no PIB mundial ao longo dos anos. Canadá, EUA, Reino Unido e União Europeia concentravam em 1980 cerca de 54% do PIB mundial. Em 2018, este número caiu para 33% e, em 2023, este valor chegou a 30%. Por outro lado, países emergentes da Ásia, localizados no Leste, Sul e Sudeste do continente, passaram de uma participação de cerca de 9% em 1980 para 33% em 2018, chegando a pouco mais de 37% em 2023 (ALVES, 2019; WORLD BANK OPEN DATA, 2024).

Mas, não são só as questões econômicas que colocam a Ásia como uma região que se destaca nas relações internacionais. Spektor (2016) afirma que além do dados econômicos, o eixo da geopolítica mundial também se move a passos acelerados do Atlântico Norte para o Leste Asiático, onde se concentram as principais e mais importantes transformações deste século. As mudanças pelas quais passa o continente asiático não são recentes e se avolumam a partir da segunda metade do século XX. Se iniciam com o Milagre Japonês no pós-Segunda Guerra, passam pelo engrandecimento dos Tigres Asiáticos a partir da década de 1960, avançam com a reabertura da China com Deng Xiaoping no final da década de 1970. E, não param.

Desde o final do século XX, a Rússia procura se recuperar do fim da União Soviética e se posiciona de forma cada vez mais central na política internacional, principalmente na Eurásia, buscando estabelecer parcerias importantes frente ao Ocidente. Desde o início do século XXI, já com Putin no poder, o Estado russo vem buscando uma inserção própria nos arranjos e ambientes internacionais, sejam eles globais ou regionais. A Índia, apesar dos problemas característicos de um gigante emergente, vem se posicionando como um país que se destaca no desenvolvimento e aperfeiçoamento de novas tecnologias. Exemplo disso são os avanços do país no Espaço Sideral. A Organização Indiana de Investigação Espacial (ISRO) criada em 1969 já conduziu até o momento 124 missões espaciais e vem se preparando para o primeiro voo espacial tripulado do país, o Missão Gaganyaan, previsto para 2025 (INDIAN EXPRESS, 2024). 

A China, de forma cada vez mais interessante, vem ocupando ou reocupando um espaço de centralidade tanto em seu entorno estratégico quanto no cenário internacional, se destacando seja na construção de parcerias intercontinentais, com a Belt and Road Initiative, na produção de tecnologias disruptivas, no desenvolvimento acelerado de suas forças armadas ou na sua contínua centralidade enquanto importante produtor e consumidor de bens duráveis e não duráveis no mundo. A China é hoje a principal parceira comercial de cerca de 120 Estados de um total de ao menos 193 reconhecidos pelas Nações Unidas (YING SHAN, 2024). O Japão, por sua vez, deixou de ser o país mais importante do Leste Asiático, o que não significa dizer que deixou para trás sua importância tecnológica, econômica ou de soft power, que passou a ser contabilizado em seu PIB anos atrás e, hoje, além de ajudar a justificar suas posturas mais assertivas no Indo-Pacífico, também influencia o ‘fazer’ da política externa de outros países, como a vizinha Coreia do Sul. O Estado sul-coreano é, inclusive, um dos países que mais lucra com seus produtos culturais e com sua diplomacia pública, que se expandem para muito além da Ásia.

Diversos são os pensadores que afirmam que a ordem liberal multilateral norte-americana, sustentada por instituições do pós-Guerra, por alianças e por aliados ao redor do globo, está, atualmente, em questionamento e que novas formas de se fazer política internacional se apresentam e se engrandecem (LEITE; RAMOS, 2016). Muitas dessas afirmativas se apoiam no aumento da importância dos países asiáticos na política internacional e de sua maciça presença na construção e manutenção de fóruns internacionais, como o G-20 ou o BRICS, que ganham cada vez mais espaço nos debates internacionais. 

A emergência de países como China e Índia e seus vizinhos, quase como um efeito de transbordamento, e a busca por ressignificação da inserção de outros atores asiáticos na política internacional, como é o caso de países da Eurásia, do Leste e Sudeste Asiáticos e da Ásia Central, nos faz ter certeza de que falar sobre este continente e sobre suas diversas particularidades é urgente. E, mais urgente ainda, é construir uma visão endógena e própria sobre as dinâmicas da Ásia por uma perspectiva fundamentalmente brasileira, sem deixar de dialogar com as produções que se acumulam sobre o continente asiático mundo a fora.

Este número especial da revista Diálogos Internacionais procura lançar luz sobre alguns dos temas que tornam a Ásia tão central para as Relações Internacionais, sem nenhuma pretensão de esgotar o tema, mas com o desejo de fomentar o debate de alto nível entre os entusiastas da região e dos estudos da Política Internacional.

NOTA DOS EDITORES: A edição especial da Diálogos Internacionais, com o dossiê “Um novo eixo global em direção à Ásia” é composta pela apresentação das professoras Fernanda Nanci e Letícia Simões e por 12 artigos relacionados ao tema. Os artigos serão publicados durante o mês de agosto, às segundas, quartas e sextas. Agradecemos as professoras pela organização da Edição Especial e aos autores pelos debates promovidos.

Referências:

ALVES, José Estáquio Diniz. O centro da economia global está voltando para a Ásia. Eco Debate. 18 março 2019. Disponível em: https://www.ecodebate.com.br/2019/03/18/o-centro-da-economia-global-esta-voltando-para-a-asia-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/

ARRIGHI, Giovanni. O Longo Século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso

tempo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

DOBBS, R.; REMES, J.; MANYIKA, J.; ROXBURGH, C.; SMIT, S.; SCHAER, F. Urban world: Cities and the rise of the consuming class. McKinsey Global Institute. 2012. Disponível em: https://www.mckinsey.com/featured-insights/urbanization/urban-world-cities-and-the-rise-of-the-consuming-class

EMMOTT, Bill. Rivalshow the power struggle between China, India and Japan will shape our next decade. Orlando: Harcourt, 2008.

INDIAN EXPRESS. Indian Space Missions 2024: Full list of significant space missions by ISRO. The Indian Express. 28 fev. 2024. Disponível em: https://indianexpress.com/article/trending/isro-india-space-missions-full-list-9183521/#:~:text=The%20Indian%20Space%20Research%20Organisation%20(ISRO)%20has%20been%20at%20the,and%20432%20foreign%20satellites%20launched.

LEITE, A. C. C; RAMOS, L. Potências tradicionais, potências emergentes e a ordem mundial contemporânea: dilemas, tensões e possibilidades. Conjuntura Internacional, 13(1) 2016. Disponível em: https://periodicos.pucminas.br/index.php/conjuntura/article/view/13049

MCDOUGALL, Derek. Asia Pacific in World PoliticsBolder: Lynne Rienner

Publishers,2007.

SPEKTOR, Matias. Livros analisam mudança de centro geopolítico para a Ásia. Folha de São Paulo. 10 set. 2016.  Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/09/1811961-livros-analisam-mudanca-de-centro-geopolitico-para-a-asia.shtml

WORLD BANK OPEN DATA. GDP (constant LCU) 2023. World Bank Open Data. 2024 Disponível em: https://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.KN?cid=ECR_GA_worldbank_EN_EXTP_search&gad_source=1&gclid=CjwKCAjwqMO0BhA8EiwAFTLgIO7gN_K8jnjhSog_SBkEVfXQkdnBtNKPeYL4SPwB_gsDW4YLSepsRRoCeIYQAvD_BwE&s_kwcid=AL!18468!3!704632427243!b!!g!!what%20does%20the%20world%20bank%20do&skipRedirection=true&view=map

YING SHAN, LEE. China de-linking talk is overdone and it’s still key to the global economy, Asian Development Bank says. CNBC. 25 fev. 2024. Disponível em: https://www.cnbc.com/2024/02/26/china-still-top-trading-partner-for-many-countries-says-adb.html#:~:text=However%2C%20the%20economic%20powerhouse%20remains,U.S.%20think%20tank%20Wilson%20Center.

Leticia Cordeiro Simões é Doutora em Relações Internacionais pelo PPGRI-UERJ. Professora de Relações Internacionais do Unilasalle-RJ e professora substituta do INEST-UFF

Fernanda Nanci Gonçalves é Doutora em Ciência Política pelo IESP-UERJ. Professora de Relações Internacionais do DRI-UERJ e PPGRI-UERJ.

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353