O Smart Power Japonês na Pós-Modernidade

Volume 11 | Número 110 | Ago. 2024

Por Maria Luisa Maia Medeiros

INTRODUÇÃO

O Japão é cool e o Japão é pop. É dessa maneira que o país é enxergado na Pós-Modernidade, a partir do fim dos anos 1980 com a globalização e homogeneização do modelo de produção e crescimento capitalista. O país é conhecido internacionalmente por ser a casa dos samurais, da culinária de qualidade, dos desenhos animados, da tradição xintoísta, das novidades tecnológicas, dentre muitos outros elementos que pertencem à esfera cultural. Desde o século XX, o país é definido como uma potência (regional e, mais tarde, internacional) que se diferencia daquelas do chamado Ocidente e, desse modo, se destaca por sua originalidade – conhecida também como Nihonjinron[1], ou seja, “japonicidade/japonesidade”[2] (SASAKI, 2011). Ao mesmo tempo que o país cresceu no imaginário das demais pessoas pela sua influência no âmbito cultural, decorrente de investidas na área, o mesmo perpassou por momentos decisivos em anos mais recentes referente à releitura da sua própria Constituição de 1947 e seu nono artigo[3] (que define a renúncia japonesa de guerrear) com aprovações cada vez maiores de inversões na área militar. 

Este trabalho tem como intuito analisar como o Japão desenvolveu seu poder inteligente (smart power) através de suas táticas não-bélicas (estratégias nas quais as forças empregadas não são de natureza coercitiva) nos últimos dez anos (entre 2013 e 2023), caracterizado pela promoção cultural do país e simultaneamente pelo crescimento nos seus investimentos no campo bélico. Este mostra-se relevante, já que o país é uma das potências mais influentes no mundo desde a década de 1980, de modos econômico, político e cultural, e pelo êxito do país em conseguir difundir seu modo de ser e viver em países que pouco possuem similaridades. Além disso, é um dos países que ampliou de modo significativo seus investimentos militares nos últimos anos e pretende alcançar metas de investimentos em defesa como países-membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) (FOLHA DE SÃO PAULO, 2023).

Sendo assim, este estudo será realizado principalmente a partir da discussão e análise da construção de algo que se mostra importante para a imagem mundial do país: a recente estratégia do smart power nacional, dirigido pelo plano político e cultural nacional contemporâneo conhecida como “Cool Japan” e ao mesmo tempo pelas Forças de Autodefesa do Japão (JSDF). A primeira foi desenvolvida e institucionalizada nos últimos anos pelo Estado japonês para que o país pudesse disseminar a sua cultura e atratividade pelo mundo e, como consequência, conquistar olhares para o país de modo positivo e que permitissem o seu crescimento econômico e sua projeção cultural e política (COOL JAPAN STRATEGY PROMOTION COUNCIL, 2015). Nesse sentido, a pesquisa enfatiza principalmente a última década, entre 2013 e 2023, já que a política estatal do Cool Japan foi criada com a Lei nº 51 de 2013 – que determinou a criação de um fundo próprio para o desenvolvimento da estratégia, chamado “Cool Japan Fund”. A segunda estratégia demonstra como o país, mesmo com suas limitações militares devido ao nono artigo de sua constituição, consegue estabelecer uma estratégia de smart power, que envolve o hard soft power, através da sua força militar de defesa e as relações diplomáticas e culturais.

1 A ESTRATÉGIA “COOL JAPAN”

Em 2002, o jornalista estadunidense Douglas McGray escreveu uma matéria na revista Foreign Policy intitulada “Japan’s Gross National Cool”, que abordava o aumento da popularidade e sucesso cultural do Japão no globo, chamando essa potente produção cultural de “national cool” – algo imensurável e que pode servir para fins políticos e econômicos (MCGRAY, 2002). E em um momento no qual as esferas econômica e política do país não eram favoráveis[4], pois ainda sofriam com as casualidades da longa recessão da década anterior, ele aponta o impacto do sucesso da influência cultural criado por essas produções, que puderam trazer ganhos para a economia, e como esta visão remodelada pode contribuir com a atuação política internacional (ARAÚJO; OLIVEIRA, 2020, p. 171):

Instead of collapsing beneath its political and economic misfortunes, Japan’s global cultural influence has only grown. In fact, from pop music to consumer electronics, architecture to fashion, and food to art, Japan has far greater cultural influence now than it did in the 1980s, when it was an economic superpower (MCGRAY, 2002, p. 46).

A partir disso, o então primeiro-ministro Koizumi cria a o Conselho de Promoção da Diplomacia Cultural e a Estratégia da Diplomacia Cultural e das Relações Públicas no Exterior em conjunto com o Ministério das Relações Exteriores do Japão (MOFA), em 2004, a fim de fortalecer a diplomacia cultural nacional e promover a compreensão e confiança do público estrangeiro com o Japão (BELINI, 2019). Tal estratégia foi criada principalmente para ser direcionada aos países com quem não possuem uma relação estável, ou seja, os que foram mais afetados pelo imperialismo japonês no passado, como a China e a Coreia do Sul (considerando-se que não há contato direto significativo com a Coreia do Norte), e também devido às decisões, discursos e disputas políticas e territoriais controversas contemporâneas (IBID.). Em face desse impulso tomado para fortalecer a imagem do Japão, foi recomendado em 2005, em uma reunião do Conselho citado, que o país utilizasse o interesse da cultura pop japonesa no mundo como uma oportunidade para encorajar o interesse em demais pontos da cultura do Japão (OGAWA, 2009, apud TRAVASSOS; LIMA, 2022).

Araújo (2020, p. 106) afirma que “a cooptação da diplomacia cultural como ferramenta de soft power vis-à-vis ao pop japonês foi produto somente da estratégia japonesa no século XXI” e foi só a partir desse século que o governo japonês identificou que era necessário investir mais na exportação da sua indústria cultural e tecnológica (considerados estratégicos para diplomacia) para que pudesse ascender no seu status mundial. À vista disso, em 2006, o MOFA lança oficialmente a diplomacia pop cultural, cujo propósito é “promover a compreensão e confiança do Japão através da utilização da cultura pop e artes tradicionais como suas principais ferramentas para a diplomacia cultural” (MOFA, 2017,sd). Esse movimento ocorreu graças à alta aceitação de produtos midiáticos japoneses no mundo e à indústria cultural, que fomenta essa aceitação. Ademais, também ocorreu uma movimentação midiática na Ásia contra a inserção de conteúdo “ocidental” nos países, já que era vista como uma forma de imperialismo, o que possibilitou ao Japão conduzir essa tendência e exportar seus conteúdos midiáticos nacionais, com apelo regional – expandindo sua economia e seu soft power (ARAÚJO, 2020).

A institucionalização desse movimento alcançou o nível estatal ao ponto de não depender de governos, visto que essas decisões foram tomadas em governos diferentes ao longo do tempo e se tornaram uma ideia de estratégia intrínseca ao Estado nacional japonês contemporâneo e à sua diplomacia. Os esforços iniciados na década de 2000 se estenderam até a fundação oficial de instituições na década de 2010. No documento nomeado Cool Japan Strategy, de 2012, é possível perceber a preocupação estatal em relação à economia do país, visto que a população idosa cresce desde os anos 1990 cada vez mais em comparação à natalidade doméstica, o que causa um desequilíbrio no país e na sua contribuição no mercado de trabalho, que perderá gradativamente mais trabalhadores. A estratégia instituída, seria capaz de atrair turistas, garantir o emprego e revitalizar comunidades locais nacionais através no seu nível atrativo e propagandístico (METI, 2012). Além disso, no documento oficial “Declaration of Cool Japan’s Mission”, do Ministério da Estratégia do Cool Japan de agosto de 2014, é afirmado que a missão do Cool Japan é tornar o Japão um líder mundial, capaz de prover soluções criativas aos desafios globais. 

Nos anos seguintes, foram criadas outras iniciativas e instituições culturais sob o governo de Shinzo Abe e seu financiamento, como o Projeto “WA” (2013), a “Japan House” (2014), a “Japan Brand” (2015), e o “Japonismes” (2018). Segundo o MOFA (2016; 2023), os projetos foram elaborados a fim de estabelecer a projeção cultural japonesa e taymbém a troca cultural entre os países para promover melhor entendimento entre os países e a fim de alimentar a compreensão e o interesse pelo Japão (MOFA, 2016). Os projetos foram iniciativas para difundir elementos da cultura japonesa e sua diversidade na comunidade internacional através de diversas exposições (THE JAPAN FOUNDATION, 2016).

Apesar dos esforços, a estratégia estatal do Cool Japan, que impulsionaria o soft power japonês, demonstra ter falhas. Alguns estudiosos da área, como o escritor e tradutor Matt Alt (2023), criticam que, nos dez anos de implementação da estratégia, os resultados ainda não são tão expressivos quanto poderiam ser pelo fato de o projeto não aparentar ter objetivos específicos traçados, além do fato de existirem problemas de legitimidade e moral ao Estado se envolver na produção da cultura. No entanto, os produtos japoneses e a imagem do país não parecem ser prejudicados por isso, visto que possuem resultados e projeção satisfatórios, respectivamente.

2 SMART POWER JAPONÊS

            Criado por Joseph Nye, o conceito do “smart power” (poder inteligente) combina o uso de hard e soft power(poder duro e poder brando) na mesma estratégia. Nesse contexto, cita-se o fato de que, ao mesmo tempo que o Japão investe massivamente na sua projeção cultural para que obtenha uma imagem positiva no exterior, o país vem realizando maiores investimentos militares e um revisionismo histórico acerca do nono artigo de sua constituição nos últimos anos. Dados do World Bank Open Data (2022) apontam que os gastos militares do Japão desde os anos 1960 representam algo em torno de 1% do PIB, variando entre 0,8% e 1%. Os investimentos militares, direcionados ao setor de defesa do país, correspondiam a cerca de meio bilhão de dólares americanos no início da década de 1960 e no fim da mesma já havia crescido para um bilhão. Os valores saltaram nos anos seguintes de acordo com o crescimento econômico do país: em 1971, os investimentos totais na área eram de US$ 1,9 bilhões, e antes mesmo de adentrar uma nova década, já correspondiam a US$ 9,1 bilhões, em 1979. Na década de 1980, o valor investido triplica para US$ 27,9 bilhões em 1989. 

Com as décadas perdidas, os investimentos desaceleram, mas não deixam de crescer, ao ponto de somarem um total de US$ 43 bilhões, em 1999, e US$ 51 bilhões em 2009. Ao adentrar a década de 2010, é registrado o investimento de 60 bilhões de dólares em 2011, que diminui ao longo do tempo para um valor médio de 46 bilhões de dólares (MACROTRENDS, 2022). Portanto, é possível verificar que, mesmo que o país buscasse pela projeção cultural internacional, ele não deixou de investir na sua esfera militar, mesmo possuindo somente uma Força de Defesa e não Forças Armadas “tradicionais”, como estabelecido na sua constituição.

Os valores voltaram a crescer no fim do mandato de Shinzo Abe, a partir de 2018, com um investimento anual de US$ 48,5 bilhões, tendo um aumento de 7,72% em comparação com o ano anterior (US$ 45 bilhões); US$ 50,9 bilhões em 2019, 5,02% a mais que o referente ao ano anterior; e US$ 51,9 bilhões em 2020, 1,96% maior que no ano anterior. Mesmo com o fim do governo Abe, a tendência de aumento dos investimentos continuou: foram direcionados US$ 54 bilhões para o setor militar em 2021, com um aumento de 4,14% do ano anterior (MACROTRENDS, 2022). 

Nesse contexto, o Japão é um dos países que mais investe na área militar em termos internacionais. Em 2021, por exemplo, o Japão estava em sexto lugar, atrás dos Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha e Arábia Saudita. Houve uma decaída dos investimentos em 2022, com uma alocação de US$ 40 bilhões no ano, porém, o governo do atual primeiro-ministro Fumio Kishida elaborou um novo Programa de Defesa para os anos de 2023 a 2027, que estabelece um plano de 321 bilhões de dólares (43,5 trilhões de ienes) – que culminaria em um orçamento de US$ 66 bilhões de dólares para 2027, isto é, 65% a mais do que o investido em 2022 e equivalente a 2% do PIB de 2023. Ademais, o plano de cinco anos também ultrapassa o plano anterior construído para os anos de 2019 a 2023 em 56%[5] (LIFF, 2023).

No documento anual japonês “White Paper[6] de 2023, disponibilizado pelo Ministério da Defesa, o Japão mostra-se preocupado com o seu entorno pela posição militar e nuclear da Coreia do Norte, pelas atividades militares e aéreas da Rússia na região do Oceano Indo-Pacífico e pela presença regional chinesa – que justificariam o reforço às capacidades de defesa e segurança nacional do país. Esta preocupação já ocorre desde o início da década anterior. O novo plano para a defesa do país, que pretende aumentar os gastos em 2/3 em meia década, possui diversas áreas onde os investimentos militares serão alocados e dispõe de uma significativa importância para o Japão e seu maior aliado, os Estados Unidos (IBID., 2023).

Diversos acontecimentos preocuparam o Estado japonês referente à sua segurança desde a década passada. A Coreia do Norte lançou dezenas de mísseis balísticos próximos à região do arquipélago, de modo a atingir um recorde em 2022 com mais de 23 lançamentos no ano (CHA; KIM; LIM, 2022). A Rússia realizou ações navais e aéreas no mar japonês, além de ter aliado sua atuação com a potência chinesa (TAJIMA, 2023). E finalmente, as atividades recentes que mais preocupam o Japão são as atividade militares chinesas interpretadas como de caráter expansionista, principalmente a sua atuação no entorno das Ilhas Senkaku/Ilhas Diaoyu, que são reivindicadas pelos dois países, visto que elas possuem valor geopolítico estratégico e reservas petrolíferas (BORGES, 2014).

Nesse sentido, o Estado criou em 2013 o Conselho de Segurança Nacional, coordenado pelas ações de diferentes ministérios, e a Estratégia de Segurança Nacional durante o Governo Abe, a fim de promover discussões estratégicas sobre as questões de segurança nacional (SINGH, 2023). No documento de 2022 disponibilizado pelo MOFA, “National Security Strategy of Japan”, os três países continuam a representar mesmo dez anos depois, os maiores desafios no setor da segurança na região do Indo-Pacífico para o Japão, visto que eles não deixaram de desenvolver suas atividades e forças militares (CABINET SECRETARIAT, 2022).

O novo plano orçamentário militar do Japão supera qualquer um já feito anteriormente desde a Segunda Guerra Mundial. O aumento dos investimentos direcionado para áreas diferentes das Forças de Autodefesa do Japão impressiona. Como apresentado na Figura 1, é possível calcular que os investimentos que mais aumentaram foram direcionados os para a área de capacidade de defesa, que cresceu vinte e cinco vezes; para a área de capacidade de defesa não tripulada, que cresceu dez vezes; para a área aérea e de capacidade de defesa por mísseis, que triplicou; e para a área de capacidade de operação entre domínios, que quase triplicou.

Figura 1 – Plano Financeiro de Defesa para os anos de 2023 a 2027 (2023)

Fonte: Livro Branco de Defesa do Ministério da Defesa do Japão (2023)

Em 2014 houve uma reinterpretação oficial do nono artigo constitucional no governo de Shinzo Abe. Por conseguinte, a partir deste ano as estimativas das pesquisas dos jornais mostraram o aumento para quase 50% de japoneses contra o revisionismo acerca deste artigo – para que não fosse mudada a cláusula que definia constitucionalmente o país como pacifista. O contexto japonês vivido entre 2014 e 2016 era de mudança: o país permitiu a participação de suas Forças de Autodefesa em conflitos estrangeiros através de uma nova legislação militar. Esta deu mais poder às JSDF e substituiu a política de lutar somente em legítima defesa, que proibia a atuação militar de modo internacional, para uma que permitisse atuar em conflitos externos pela “legítima defesa coletiva” de aliados sob ataque (BBC NEWS, 2015). O Primeiro-Ministro justificou a mudança como uma necessidade para proteger o Japão, porém esta causou protestos de milhares de japoneses a favor do pacifismo contido na constituição nacional de 1947 (IBID.).

Frente à oposição civil ao revisionismo, o Ministério da Defesa lançou em 2015 uma animação de dezoito minutos chamada de “Bo-Emon’s Defense Lecture – ABC of Self Defense Forces[7] sobre os papéis e as atividades das JSDF, feita através do personagem “Bo-Emon” a partir da história de uma família cujo pai é um piloto da Força de Autodefesa Aérea. O vídeo realça que as JSDF não objetivam invadir outros países, mas proteger o país da ameaça externa por meio da dissuasão (“deterrence”). De acordo com a animação, é necessário que a JSDF tenha força – principalmente em meio à intensificação militar dos países vizinhos. Sendo assim, percebe-se que a cultura pop e seus elementos não são utilizados somente para a projeção cultural, mas parecem poder ser utilizados com intuitos propagandísticos militares.

Instituições estatais japonesas exercem tal atividade de empregar imagens e estéticas nacionais (como de mangás e animês) em duas frentes: o país utiliza a cultura pop em contextos humanitários, para aumentar sua imagem positiva e também em ambientes militares, a fim de reduzir a imagem e ameaçadora. As Figuras 2 e 3 representam a utilização de personagens de mangá e anime famosos em ações humanitárias. A Figura 2 diz respeito às operações de reconstrução em Samawah, no Iraque, com a entrega de caminhões pipa pelas JSDF com a imagem do personagem conhecido internacionalmente. E a Figura 3 apresenta caminhões de lixo no Sudão com o mesmo personagem como parte do projeto da Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA) para atrair atenção às questões ambientais e conscientizar e melhorar a coleta de lixo. De acordo com o MOFA e a JICA, o personagem utilizado nos caminhões é reconhecido nos dois países, o que aproximaria os cidadãos das iniciativas e de uma imagem positiva do Japão.

Figura 2 – Personagem “Capitão Tsubasa” em um caminhão pipa pelo Grupo Japonês de Apoio e Reconstrução do Iraque e crianças locais do Clube de Futebol de Samawah (2004)

Fonte: Página oficial do Facebook do Ministério das Relações Exteriores do Japão (2019)

Figura 3 – Personagem japonês “Capitão Tsubasa” em um caminhão de lixo no Sudão em 2016

Fonte: Página oficial do Facebook do Ministério das Relações Exteriores do Japão (2019)

Diante desse contexto, aponta-se o poder inteligente do Japão. As missões das JSDF demonstram o poder inteligente do país, já que elas operam de modo auxiliar e não ameaçador – como seria no poder duro. Além disso, a instituição e seus recursos militares podem não somente gerar atração, como também podem ser utilizadas ao lado de instrumentos de soft power, como em atividades de desenvolvimento, de ONGs, da diplomacia e da cultura (HENG, 2015). Hideki Wakabayashi (2008 apud HENG, 2015), argumenta que as capacidades da JSDF precisam ser fortalecidas especialmente por ações humanitárias e de peacekeeping para que o poder duro possa ser usado para apoiar objetivos do poder brando – e fazer com que as ações japonesas sejam vistas de modo não coercivo.

Os recursos que são comumente associados ao poder duro, como nesse caso seriam as Forças de Autodefesa do Japão, podem também produzir poder brando dependendo do contexto em que estão inseridos e como eles são utilizados (NYE, 2011, p. 21):

A tangible hard power resource such as a military unit can produce both command behavior (by winning a battle) and co-optive behavior (by attracting) depending on how it is used.’ Context then is everything. To sum up the distinction, ‘fighting and threatening are hard power behaviors; protecting and assisting are soft power behaviors’ (NYE, 2011 apud HENG, 2015, p. 286).

Nesse contexto, as forças militares japonesas fazem parte da abordagem estratégica do poder inteligente nacional. Uma iniciativa que representa a utilização do smart power, que combina ações militares, culturais e de desenvolvimento, é a atuação das JSDF no Iraque (HENG, 2015). O Grupo de Apoio e Reconstrução do Iraque pelas JSDF tinha como objetivo reconstruir e restabelecer instituições públicas após a invasão estadunidense ao país em 2003 e realizar a revitalização de bases das condições de vida para a população iraquiana, como a purificação da água (KANTEI, 2003) – focado em Samawah, entre 2004 e 2006. O MOFA atuou junto com instituições de entretenimento do setor privado para promover o produto cultural japonês, o anime, e adaptou o contexto cultural árabe para que a população fosse mais receptiva à imagem “amigável” e “útil” que as JSDF estavam tentando projetar (IBID.). 

À vista disso, a movimentação de investimentos e modernização das JSDF, desde os anos 2010, também faz parte do desenvolvimento do poder inteligente do país. Singh (2023) utiliza a ideia do smart power japonês para explicar a estratégia nacional em garantir a ordem internacional liderada pelos Estados Unidos frente ao crescimento da China desde 2010. O Japão ocupa um espaço estratégico entre os EUA e a China: o país é o maior aliado da potência estadunidense e detentor de uma base militar do país no Oceano Indo-Pacífico e, ao mesmo tempo, desenvolveu uma interdependência econômica com a potência chinesa, apesar dos desafios bilaterais. O arquipélago também detém de uma posição mais fraca quanto a recursos e ativos em relação aos dois países – o que o impede de determinar por si uma balança de poder regional e, como consequência, precisa buscar outras opções para gerir a competição e a balança de poder (IBID.).

Além disso, a cultura antimilitarista desenvolvida no Japão restringe a dimensão militar na prática da política externa do país e que o faz depender de uma gama de outros recursos, como a economia, valores, elementos culturais, e outros elementos para alcançar seus interesses. Por isso, diante disso e do contexto da piora das relações e tensão entre China e EUA, o Japão pode fazer uso integrado das suas ferramentas de hard e soft power como a melhor forma de atingir seus objetivos da política externa sem causar reações negativas (SINGH, 2023). A estratégia japonesa de smart power teria duas vertentes: a material, que foca nos recursos do poder duro para assegurar a balança de poder na região a favor da ordem estadunidense, envolvendo iniciativas como a modernização militar do país e ampliação de seus parceiros; e a normativa, que foca nas medidas de poder brando para assegurar o status quo e a ordem multilateral no Leste da Ásia (e impedir uma dirigida pela China), baseada na promoção de normas para reafirmar a ordem a favor dos EUA (IBID.).

Para Singh (2023, p. 16), o uso da estratégia do poder inteligente japonês vem sendo um êxito: “Its smart power strategy, which utilises both material and normative means, have turned out to be relatively successful in achieving its preferred vision of regional order and gaining legitimacy from regional states”. A abordagem pragmática de política externa do Japão, que utiliza da gama de seus recursos de poder duro e brando de modo conjunto, mas ainda conforme suas limitações da estrutura política constitucional, tem sido essencial para o sucesso da garantia de seus interesses nacionais e da ordem liderada pelos Estados Unidos. 

O poder inteligente do país demonstra ter aumentado o nível de apoio e confiança da sua liderança regional, principalmente graças à sua abordagem não confrontante que inclui interesses de outros Estados e constrói consenso entre os aliados e parceiros (SINGH, 2023). Pesquisas de 2020 e 2021 da State of Southeast Asia Survey Reports demonstram que o Japão se posicionou como um dos países que mais se têm confiança na região para uma parceria, em comparação com os EUA e a China, com mais de 61,2% em 2020 e 67,1% em 2021 – o que mostra uma melhoria expressiva em como o país é visto, mesmo com suas questões não resolvidas do passado imperial (IBID.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho procurou investigar como o Japão consegue articular seu smart power na atualidade, associando seus poderes culturais e bélicos em contextos diferentes para conceber uma imagem positiva internacional. Foi constatado que o país não adquire influência somente pelo desenvolvimento e investimento em seu poder brando, mas pelo seu poder inteligente, que articula seu poder brando e duro ao mesmo tempo, ampliando sua influência ao utilizar estrategicamente de meios militares em contextos que beneficiem sua imagem. Portanto, a estratégia estatal analisada, que projetaria o poder brando japonês, demonstra ser insuficiente. No entanto, quando a estratégia de poder brando é articulada junto à estratégia da esfera militar, isto é, ao que seria utilizado em prol de seu poder duro, forma-se um poder inteligente promissor. 

O poder inteligente do país aparenta funcionar de forma próspera, ao combinar as atividades elaboradas no campo diplomático e aquelas na esfera militar – usadas estrategicamente para fins humanitários. Em decorrência da proibição constitucional do país em utilizar sua força militar para fins que não de Autodefesa, o Japão passou a investir nos setores da diplomacia e da cultura. Concomitantemente, também passou a utilizar as suas Forças de Autodefesa em ações de cunho humanitário no ambiente internacional, a fim de demonstrar seu comprometimento com a democracia e projetar uma imagem “amigável”, além do objetivo de manter a ordem mundial liderada pela potência estadunidense na região, afetada pela ascensão chinesa, e também a sua influência regional e proteção auxiliada pelos Estados Unidos. 

REFERÊNCIAS

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TAJIMA, Y. China and Russia kick off military exercises in Sea of Japan. Nikkei Asia, 21 jul. 2023. Disponível em: https://asia.nikkei.com/Politics/International-relations/Indo-Pacific/China-and-Russia-kick-off-military-exercises-in-Sea-of-Japan. Acesso em: 9 dez. 2023.

TRAVASSOS, Bruna R.; Lima, Leticia C. S. de M. O Poder da Cultura Pop no Soft Power Japonês e Sul-Coreano. In: Gonçalves, Fernanda N.; Lima, Letícia C. S. de M. Relações Internacionais em Perspectiva, v. 11. Rio de Janeiro: Lemos Mídia, 2022, p. 215-248.

White paper | Definition, Meaning, Examples, & Facts Definition | Britannica Money, 2023. Disponível em: https://www.britannica.com/money/white-paper. Acesso em: 9 dez. 2023.


[1] “Nihonjinron” (traduzido como estudos sobre os japoneses) é um conceito desenvolvido durante a Era Meiji para caracterizar um gênero de textos e estudos focados na identidade nacional e cultural do Japão. O conceito foi difundido principalmente após a Segunda Guerra Mundial e foi utilizado para analisar, explorar e explicar as diferenças e peculiaridades do país em relação à sua cultura e mentalidade (SASAKI, 2011).

[2] A definição do conceito ainda está em construção por tratar de algo tão complexo e difícil de se definir na Pós-Modernidade, mas a professora Elisa Massae Sasaki (2011) discorre sobre como o conceito serve para diferenciar a unidade japonesa das demais unidades nacionais, a partir da sua singularidade cultural e social nipônica.

[3] Para mais informações, acesse: https://www.theatlantic.com/international/archive/2015/09/japan-pacifism-article-nine/406318/.

[4] McGray (2002) explica que, em 2001, o PIB do país tinha decrescido, a moeda desvalorizado, o Índice de Ações Nikkei havia atingido o menor nível em dezessete anos e o pleno emprego, praticamente um direito natural nacional, foi substituído por um quase recorde de taxas de desemprego.

[5] O plano orçamentário traçado para os anos de 2019 a 2023 era equivalente a 17,2 trilhões de ienes (117 bilhões de dólares americanos), como poder ser visto nos dados do Ministério da Defesa na Figura 1.

[6] O “White Paper” é um relatório anual disponibilizado geralmente pelo Ministério da Defesa dos países e que procura explicar com transparência a situação da defesa doméstica dos países, com as atividades, preocupações, os gastos e investimentos de defesa (BRITANNICA MONEY, 2023).

[7] É possível assistir à animação na página oficial do Ministério da Defesa do Japão: https://www.mod.go.jp/j/kids/bo-emon/e/index.html.

Maria Luisa Maia Medeiros é Graduada em Relações Internacionais pela UFF, estagiou na área de Gestão de Projetos e Mobilidade Internacional, na Superintendência de Relações Internacionais da UFF e também com a área de Documentação. Participou de diversas atividades acadêmicas, incluindo iniciação científica, monitoria e Enactus. Atualmente, atua como Secretária de Relações Internacionais no Conselho Indiano de Relações Culturais em São Paulo, em prol da internacionalização da cultura indiana e promoção das relações culturais. Seus interesses incluem estudos da Ásia, ciência política, diplomacia e mídia e comunicação. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6632679915133384

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353