O INTERVENCIONISMO RUSSO E A ASCENSÃO DA EXTREMA DIREITA UCRANIANA: Uma análise do Movimento Azov

Volume 11 | Número 110 | Ago. 2024

Por Nathalia de Cassia Monteiro Nardelli

INTRODUÇÃO

A ascensão da extrema direita é uma tendência que vem ganhando força por todo o globo. No continente europeu, é possível observar que, desde meados dos anos 1930, houve um aumento significativo da força de partidos da extrema direita nos governos europeus. Isto pode ser atribuído a diversas razões: as crises econômicas que assolam o território esporadicamente, as imigrações em massa no continente, ou até mesmo a antiga tradição antissemita presente em diversos países europeus (LÖWY, 2014). No entanto, quando se trata da Ucrânia, a análise para entender o alarmante fortalecimento da extrema direita no país nos últimos 10 anos precisa compreender contornos específicos, principalmente no que se refere ao intervencionismo russo em seu território (APRILE, 2023). 

Para compreender o que se passa na Ucrânia, é preciso olhar para o passado. Rússia e Ucrânia possuem uma história entrelaçada longínqua, ambos se originaram na primeira cidade-Estado eslava de Kiev. Em 1991, com o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), foi quando a Ucrânia enfim se estabeleceu como um Estado soberano e começou sua jornada tardia de construção de uma nova identidade independente, após anos de condicionamento e praticamente nenhuma referência democrática, buscando uma reformulação dentro da nova ordem internacional e passando por dificuldades em afirmar sua soberania em relação aos interesses russos (MARSHALL, 2018). Todo o histórico de dominação e independência tardia, fomentou o desenvolvimento de um nacionalismo com forte sentimento anti-russo, que nunca deixou de estar presente nas bases ucranianas (LAZZAROTTO, 2021).

A Ucrânia conta ainda com uma forte polarização interna: uma grande parcela de sua população tem descendência russa, são os chamados russos étnicos. Dos cerca de 50 milhões de habitantes do país, 25 milhões falam russo como primeira língua e mais de 10 milhões são originários da Rússia (MIELNICZUK, 2006). Se de um lado, nas regiões Leste e Sul, há uma forte presença dos russos étnicos, por outro, especialmente no Centro e Oeste, se fortalecem os grupos nacionalistas ucranianos, que reivindicam, segundo Aprile (2023, p. 1037), a “ucranização” do país contra a política multicultural integrada ao centro russo. 

Fica claro que a identidade nacional ucraniana foi forjada sob circunstâncias de constante dominação, luta pela soberania e complexidade étnica e cultural. Esse fator é de extrema relevância para compreender a origem e o florescer do radicalismo na estrutura política e nas massas populares ucranianas. Sempre foi imprescindível para a Rússia, a continuidade de um governo pró-russo no país vizinho (PEREIRA, 2014). A fronteira ucraniana, além de ser a janela de entrada para Moscou, ainda abriga o porto de águas mornas de Sebastopol, na Crimeia, região de extrema importância estratégica, visto que é principal acesso russo para o Mar Negro (MARSHALL, 2018). 

Na busca por manter a OTAN e os Estados Unidos (EUA) longe de suas fronteiras, a política russa se faz valer de trunfos para exercer controle sobre a Ucrânia: mantém tropas russas e apoia abertamente as milícias pró-Rússia nas regiões fronteiriças, além de utilizar da dependência ucrânia de seus recursos energéticos como moeda de barganha. Mielniczuk (2006, p. 226) afirma que “aproximadamente 70% do petróleo e 90% do gás natural consumidos no país são fornecidos pela Rússia”.

Em 2010, Viktor Yanukovich foi eleito presidente da Ucrânia. Aliado ao Kremlin[1], o político governava em meio a forte oposição. Em 2013, a recusa em assinar um acordo de livre-comércio com União Europeia foi o estopim para eclosão de ondas avassaladoras de protestos por Kiev, que logo se espalharam pelo país (OLIVEIRA; SILVA; SOUZA, 2020). Os vigorosos protestos, que ficaram conhecidos como Euromaidan, rapidamente se tornaram violentas e geraram reações do governo de semelhante barbárie. Líderes da oposição, principalmente de partidos ultradireita nacionalista, e ativista de movimentos radicais, assumiram a liderança dos protestos. Ainda em 2013, Yanukovich foi destituído do cargo e os líderes da revolução assumiram o governo ucraniano (APRILE, 2013). 

pós-euromaidan[2] marcou uma grande mudança na política ucraniana: o “sucesso” da revolução, somado à escalada do intervencionismo russo e da impotência das forças armadas ucranianas, elevaram a influência fascista sob as lideranças do governo ucraniano. O papel dos grupos ultranacionalistas na rebelião e na política é fonte de controvérsias: muitos compartilham abertamente de ideais antissemitas e de uma Ucrânia etnicamente “purificada” (PEREIRA, 2014). Em reação ao Euromaidan e a queda de Yanukovich, a presença militar russa na região da Crimeia voltou a aumentar. O presidente russo Vladimir Putin, então, aproveitou o momento de conflagração para a criação de um referendo que, por fim, resultou na anexação da região da Crimeia (OLIVEIRA; SILVA; SOUZA, 2020).

Este episódio serviu de exemplo para inflar o sentimento pró-Kremlin de identificação multiétnica, e grupos separatistas iniciaram revoluções em outras regiões. Ainda em 2014, as cidades de Donetsk e Lugansk, na região de Donbass, foram tomadas e declararam independência com o apoio de Moscou (MERCIER, 2022). A linguagem em torno do conflito é fortemente politizada: Kiev rotula as forças separatistas como “invasores” e “ocupantes”; já a mídia russa, chama as forças separatistas de “milícias” e seguem no argumento que são locais se defendendo do governo ucraniano (HODGE; KOTTASOVÁ; LISTER; QIBLAWI, 2022).

Nesse contexto, começam a se organizar os conhecidos batalhões voluntários, popularmente chamados dobrobaty (UMLAND,2019). Esse novo tipo de “exército” são unidades paramilitares inicialmente informais, mas que rapidamente conquistaram amplo apoio dos civis, e o apoio direto do governo ucraniano. Em face da ineficácia do Exército Ucraniano, os batalhões são criados para suprirem a necessidade de defesa contra os avanços russos, e para oposição aos grupos separatistas pró-Rússia dentro da Ucrânia (LAZZAROTTO, 2021). Atualmente, na Ucrânia, inúmeros batalhões voluntários, sob o comando de líderes de diversos partidos e movimentos, atuam amparados pelo governo no conflito com a Rússia. Através dos batalhões, se concedeu poder a diversas figuras da extrema direita ucraniana. 

O presente artigo foca no grupo conhecido em sua origem como Batalhão Azov e, atualmente, como RegimentoAzov (UMLAND,2019). Esse grupo se tornou muito mais do que apenas uma unidade militar, e se transformou em um movimento político conhecido como Movimento Azov. Qualquer referência ao Batalhão Azov diz respeito à unidade voluntária original, antes da integração na Guarda Nacional Ucraniana. Todas as referências ao Regimento Azov dizem respeito à unidade após a integração oficial nas Forças Armadas ucranianas. E, por fim, as utilizações de MovimentoAzov, referem-se à rede mais abrangente do Regimento, que envolve o movimento político e ao partido integrado, o Corpo Nacional[3].

Da mesma maneira que outros partidos e movimentos de extrema direita ao redor do mundo, Azov é constantemente associado com a ideologia neonazista. Apesar de compartilharem algumas características como a discriminação racial e oposição ao multiculturalismo, os grupos neonazistas estão longe de serem homogêneos (SANTOS, 2018). Esta ideologia, que pode assumir diversas faces, ao analisarmos o Movimento Azov, há uma adaptação do discurso para a realidade da nação em que o movimento se propaga. Afirma-se, portanto, que o entendimento do termo neonazismo neste estudo será entendido como uma “adaptação de algumas das principais ideias nazistas originais a uma nova condição histórica” (OLIVEIRA, 2015, p. 175-176).

O Batalhão Azov ganhou notoriedade rapidamente através de sua participação nos conflitos na região de Donbass, e permaneceu com status de grupo paramilitar por pouco tempo. Ainda em 2014, foi incorporado a uma unidade da Guarda Nacional ucraniana e passou a ser conhecido como Regimento Azov. De acordo com o Centro de Segurança e Cooperação Internacional da Universidade de Stanford (CISAC), o grupo “promove o nacionalismo e o neonazismo ucraniano por meio de sua organização paramilitar Milícia Nacional e sua ala política Corpo Nacional” (LISTER, 2022). 

A Ucrânia pode ser considerada um Estado soberano relativamente novo, que tem uma história repleta de grandes guerras e subjugação em seu passado recente. A resposta que tais provações gerou na memória nacional e identidade do povo ucraniano é complexa e controversa. Apesar do país ter sofrido nas mãos dos dois regimes mais cruéis da Europa, os bolcheviques e os nazistas da Alemanha, as ideologias totalitárias têm se tornado cada vez mais populares na Ucrânia (UMLAND, 2016). Isto posto, soma-se a fragilidade e incapacidade do governo ucraniano de representar sua própria sociedade e resistir aos avanços russos contra sua soberania, sendo tais fatores o pontapé para a ascensão rápida das milícias e grupos paramilitares ucranianos (LAZZAROTTO, 2021). 

Assim, delimita-se como objetivo do presente artigo analisar a criação, institucionalização e politização do controverso Movimento Azov, mostrando como o fortalecimento da extrema direita na Ucrânia se relaciona com a postura intervencionista russa. 

O ataque de Moscou sobre a nação ucraniana é executado com instrumentos militares e não militares, em uma base diária. A memória nacional e as relações interétnicas são propositalmente manipuladas como manobras da chamada guerra híbrida[4] da Rússia contra Kiev (UMLAND, 2016). Sendo assim, a pergunta que o presente trabalho busca responder é: de que modo o intervencionismo russo contribui para a popularização do extremismo na Ucrânia, principalmente no que diz respeito ao poder e status alcançados pelo Movimento Azov

Apesar do nacionalismo anti-Rússia estar presente nas bases da identidade ucranianas, a hipótese defendida pela presente pesquisa é que a ingerência russa nos assuntos internos da Ucrânia, assim como o intervencionismo no Leste do país podem ser considerados diretamente responsáveis pela popularização do ultranacionalismo e de ideologias fascistas na Ucrânia. Isto porque, no geral, desde a independência ucraniana, tanto os movimentos, quanto os partidos de extrema direita do país estavam enfraquecidos e atuavam de maneira debilitada, sem ter muita representação no parlamento e com fraco apoio eleitoral. Isso pode ser atribuído à falta de lideranças carismáticas e a estruturações internas instáveis (LIKHACHEV, 2016). Somente após eventos como a Revolução Laranja e o Euromaidan, em que a atuação da Rússia foi uma das principais motivadoras, que a extrema-direita começou a se movimentar, mas foi de fato, após 2014 que ganhou larga e rápida notoriedade no país, fortalecendo-se ainda mais com a eclosão da Guerra entre Rússia e Ucrânia no contexto atual.

O MOVIMENTO AZOV

Em 2014, após a anexação da Crimeia, os batalhões militares rapidamente se popularizaram e ganharam notoriedade na sociedade ucraniana. Essas unidades voluntárias ajudaram a preencher as lacunas nas defesas militares e o Ministério da Defesa ucraniano passou a apoiar e incentivar abertamente a mobilização dos batalhões a estabeleceram campanhas de resistência contra os separatistas apoiados pela Rússia na região de Donbass (LISTER, 2022). Paralelamente, em fevereiro de 2014, na fase final do Euromaidan, foi aprovado no parlamento ucraniano um projeto de lei que concedia a anistia e exoneração de prisioneiros políticos. Andriy Biletsky e outros dirigentes da organização ultranacionalista Patriota da Ucrânia (PU) foram cinco destes prisioneiros libertados que formaram rapidamente a espinha dorsal do Batalhão Azov (UMLAND, 2019). O primeiro ataque do grupo ocorreu pouco depois da sua formação, quando ajudaram a reconquistar a cidade de Mariupol, no sudeste do país, das forças separatistas apoiadas pela Rússia. A recuperação de Mariupol por Kiev foi crucial para a Guerra de Donbass, devido à sua ligação terrestre e marítima com a Crimeia. 

O papel do Batalhão Azov nesse conflito lhes garantiu credibilidade internacional. Durante a Batalha de Mariupol, o grupo chamou a atenção pela sua iconografia neonazista, especialmente por conta do emblema usado pelo Batalhão, que apresentava um símbolo invertido do Wolfsangel sobreposto a um Sol Negro. Em novembro de 2014, o Batalhão Azov foi designado como um “Regimento para fins especiais”, e integrado à Guarda Nacional ucraniana, se tornando o temido Regimento Azov. 

Biletsky, por sua vez, deixou a unidade e lançou uma campanha política para concorrer a um assento no Parlamento da Ucrânia como candidato independente, garantindo um lugar que manteve até 2019 (MILLER, 2018). Entretanto, a saída de Biletsky não significou um afastamento do Regimento; na verdade, a sua liderança mudou o foco do campo de batalha para a arena política. Com o PU formalmente dissolvido em 2014, Biletsky fundou em 2016 o partido Corpo Nacional, integrado ao Regimento Azov, e atua como representante da ala política da unidade (MILLER, 2018).

Atualmente, Azov é muito mais que uma unidade militar, se tornou um ambicioso movimento político. Apesar do Regimento funcionar sob uma autoridade legal diferente e ser oficialmente parte do Ministério do Interior da Ucrânia, na prática, é explicitamente descrito como a “ala militar” do Movimento Azov. Em 2018, possuíam cerca de 45 projetos em desenvolvimento, segundo Olena Semenyaka (2018, s.p, apud SECKER, 2022, s.p, tradução nossa), Secretária Internacional do partido de extrema direita Corpo Nacional, e principal figura de liderança feminina do Movimento Azov: “Esta é a nossa forma de criar um Estado dentro do Estado”.

Oficialmente, Azov não é um movimento anti-semita e, surpreendentemente, grande parte de seus adeptos são russófanos (SECKER, 2022). Entretanto, seus líderes não fazem esforços para esconder seus posicionamentos eugenistas.Semenyaka (2018, s.p, apud SECKER, 2022, s.p, tradução nossa), em uma entrevista a uma organização neo-nazista, afirmou que “o fato de haver uma minoria de judeus envolvido na nossa esfera política nacionalista prejudicou a nossa reputação”. Semenyaka afirmou ainda que judeus ligados à política ucraniana seriam expulsos da Ucrânia, se Azovascendesse ao poder (NONJON, 2020).

Nas urnas, o Corpo Nacional se provou um fracasso. Biletsky acabou se retirando das eleições presidenciais de 2019 meses antes da votação após pesquisas de sondagem o apontarem em 20º lugar, com embaraçosos 0,2% de potenciais votos (COLBORNE, 2022). O partido, que alega possuir cerca de dez mil membros, apesar de ter fracassos em suas ambições eleitorais, é o principal órgão de contato direto com o público de todo o Movimento Azov. No geral, o partido é apresentado de forma a ser mais aceitável para o público geral: os símbolos de extrema direita não fazem parte do seu imaginário público (REPORTING RADICALISM, 2021). Fracassos eleitorais à parte, Biletsky tem uma plataforma de grande alcance na mídia, é frequentemente convidado para os populares talk shows políticos nas principais redes de televisão do país. 

Acredita-se que uma das principais razões pelas quais a extrema direita, especialmente Azov, recebe uma cobertura midiática tão neutra na Ucrânia, é devido ao receio nacional de alimentar a narrativa explorada por Moscou sobre o “fascismo desenfreado” no país. Essa associação favorece um padrão em que toda crítica à extrema direita ucraniana é um posicionamento pró-Moscou (COLBORNE, 2022). Criou-se um grande receio, por parte da imprensa ucraniana, das possíveis repercussões e retaliações que críticas a Azov e grupos similares poderiam acarretar. Dessa forma, a atuação desses grupos acaba sendo “normalizada”: em 2019, quando um grupo de políticos estadunidenses se mobilizou para demandar que o Regimento Azov fosse designado como uma organização terrorista, a população ucraniana, mesmo aqueles que não são da extrema direita nem adeptos do Movimento Azov, o defenderam energicamente (COLBORNE, 2019). Para muitos, não importa o que o Azov simboliza — ultranacionalismo, neonazismo, antisemitismo ou o que seja — e sim que lutam contra a agressão russa e estão do lado do povo ucraniano (MONTAGUE, 2020).

A GUERRA ATUAL E O MOVIMENTO AZOV

Antes da eclosão da guerra, a Ucrânia possuía cerca de 45 milhões de habitantes, hoje, estima-se que o número se aproxima de 30 milhões, a maior parte emigrando para a Rússia ou para países da Europa, em fuga do conflito. Calcula-se que, aproximadamente, 300 mil pessoas já tenham perdido a vida no conflito (MIELNICZUK, 2023). É evidente que a superioridade militar da Rússia é esmagadora, mas a Ucrânia conta com a ajuda dos mais poderosos aliados: Estados Unidos e União Europeia. A assistência financeira à Ucrânia não é novidade: desde 2014 até 2021, a UE já havia concedido cerca de 15 milhões de euros em subsídios e empréstimos à Ucrânia. Já os EUA, prestavam à Ucrânia uma assistência estimada em 400 milhões de dólares por ano (PRINCE, 2021). Com a eclosão do conflito, essa ajuda se intensificou: para 2023, estima-se que foram cerca de 2,2 bilhões de euros em ajuda militar.

A guerra deu novo prestígio à ala militar de Azov; resgatando a reputação heróica conquistada na defesa obstinada de Mariupol ao lado de militares ucranianos, o Regimento se tornou peça importante no front e se expandiu rapidamente. Uma nova unidade de forças especiais foi criada em Kiev, onde Biletsky segue ativamente responsável por aspectos da defesa da capital ucraniana (COLBORNE, 2022). Azov, em conjunto com outros grupos de extrema direita, como o grupo neonazista C14 e a milícia Freikorps, estão na linha de frente da guerra. Em janeiro de 2023, o Regimento Azov foi promovido a Terceira Brigada de Assalto separada das forças terrestres das Forças Armadas da Ucrânia, a Brigada Azov(MAZURENKO, 2023). 

O apoio financeiro do Ocidente vem alimentando Azov e grupos similares desde 2014, agora mais do que nunca. Não há restrições por parte dos EUA e da UE sobre o orçamento repassado à Ucrânia contribuir para o crescimento de grupos supremacistas no país (MIELNICZUK, 2023). Em 2019, quando a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, tornou de conhecimento público que um grupo ucraniano estava, por meio de um canal no Telegram, vendendo versões traduzidas do manifesto de Brenton Tarrant[5], o governo ucraniano rapidamente se manifestou e decretou a prisão dos envolvidos (COLBORNE, 2022). Este episódio evidencia a voz ativa que a comunidade internacional —principalmente os Estados que fornecem ajuda financeira — carrega no posicionamento do governo ucraniano diante da onda ultranacionalista no país e de episódios de violação dos direitos humanos.

Paralelamente, em meados de 2022, o Supremo Tribunal russo rotulou o Regimento Azov como uma organização terrorista. Ao chamar a invasão à Ucrânia de uma “operação militar especial para desmilitarizar e ‘desnazificar’ a Ucrânia”, Putin leva esta narrativa ao extremo (RUSSIA DESIGNATES, 2022). A utilização do termo “desnazificação” mostra perfeitamente a relação que o líder russo pretende firmar com a memória do sofrimento do povo eslavo na Segunda Guerra Mundial. A memória coletiva, nesse caso, é utilizada como recurso de mobilização, o lugar do nazismo no imaginário comum é um meio de atacar o mundo ocidental em termos de valores (WENDT, 1992). Isto porque o nazismo é visto, de certa forma, como uma consequência da decadência moral da Europa, e carrega um forte sentimento de vergonha, que é compartilhado por grande parte da população europeia (NONJON, 2022). 

Atualmente, o posicionamento e opinião pública acerca da guerra tomou contornos maniqueístas: criticar ou defender qualquer aspecto dos envolvidos é automaticamente interpretado como defesa do “putinismo” ou posicionamento pró-ocidente (MIELNICZUK, 2023). A partir disso, cresce no Ocidente a “russofobia”, em um fenômeno semelhante ao que a comunidade muçulmana vivenciou, e ainda vivencia, após os atentados de 11 de setembro (COHEN, 2023). A narrativa divulgada diariamente na grande mídia Ocidental mostra-se aliada ideologicamente à Casa Branca, objetivamente buscando aumentar progressivamente aliados pró-Ucrânia e, em consequência, incentivando processos discriminatórios contra os russos (CAVALCANTI, 2022). Os Estados que tomam um posicionamento contraditório, correm o risco de se tornar uma pária, ou, pelo menos, de ser rechaçado pela mídia internacional.

Por sua vez, a Rússia, cada vez mais isolada do Ocidente, vem construindo uma improvável aliança com seu vizinho, a China. As duas nações vêm se aproximando em uma parceria que foi rotulada como “sem limites” pelos dois governos (BRAUN, 2023). O alinhamento sino-russo parece ser o futuro, e pode acelerar as tendências para o estabelecimento de uma nova ordem global e o fim da longínqua hegemonia ocidental (DUNFORD, 2022). A velha narrativa de que Moscou — dessa vez, em conjunto com a China  — seriam os grandes “vilões” do Sistema Internacional, vem sendo resgatada, e alguns estudiosos já se referem ao atual cenário como “uma nova Guerra Fria” (ORLOVAS, 2022). 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Diferente do que a propaganda russa tenta evidenciar, a Ucrânia não é um Estado fascista. Entretanto, um movimento que ganhou tanta repercussão, como o Azov, não vai desaparecer espontaneamente. Pode não estar em posição de desestabilizar sozinho a Ucrânia, mas sua presença contínua na cena social e política ucraniana, juntamente com outros partidos e movimentos da extrema direita, representa uma ameaça para a democracia liberal — já questionável — do Estado, especialmente em tempos de guerra. Líderes carismáticos, como Andriy Biletsky, são um perigo potencial, principalmente combinados a um Estado com suas instituições, infraestruturas e sociedade civil abaladas, podendo representar terreno fértil para as ações de grupos que são altamente disciplinados, armados, propensos à violência e ideologicamente determinados. Apesar de seu baixo apoio eleitoral, o partido Svoboda, por exemplo, se encontra bem integrado nas instituições governamentais, e está bem-posicionado para construir uma força política complementar (BILSKY; CABRERA; MURATORE, 2023). Desvalorizar a urgência desta questão ou adiar a sua resolução é, em última análise, fazer um grande favor a estes nocivos grupos.

Adicionalmente, as negociações de cessar-fogo entre Kiev e Moscou não têm evoluído e o conflito passa por uma fase de inflexão, onde nenhuma das partes tem interesse em recuar. O financiamento e armamento da Ucrânia por parte do Ocidente vem aumentando, e o conflito cada vez mais adquire potencial de se tornar nuclear. A OTAN, como uma das peças centrais catalisadoras deste conflito, seria a opção mais coerente para atuar como mediadora nas negociações de um eventual acordo de cessar fogo, mas não há evidências que a posição da organização tomará tais rumos tão cedo, visto que, no geral, os lucros da guerra têm sido maiores que o da paz. A possibilidade de enfraquecer a dupla sino-russa faz com que o Ocidente siga financiando e possibilitando que o conflito se torne cada vez mais intenso, além de reforçar esse padrão de comportamento normativo a ser seguido pela comunidade internacional no que se refere à guerra. 

O futuro é incerto, muito dependerá da natureza dos termos de um eventual acordo e, fundamentalmente, da dimensão e termos dos empréstimos para a reconstrução da Ucrânia e como a Rússia responderá a isso. 

REFERÊNCIAS

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WENDT, Alexander. Anarquia é o que os Estados fazem dela: a construção social da política de poder. 1992


[1] Um kremlin é um complexo fortificado encontrado em cidades históricas russas. Esse termo é usado para se referir ao mais famoso, o Kremlin de Moscou, onde fica a sede do Governo da Rússia. 

[2] Pós-euromaidan é um termo que se refere ao período que sucedeu as vigorosas manifestações populares ucranianas que ocorreram entre 2013 e 2014. 

[3] “Corpo Nacional” é um partido político de extrema-direita ucraniano, originado em 2016, e é considerado a ala política do Regimento Azov. Foi fundado e é liderado por Andriy Biletsky. 

[4]  Estratégia de guerra na qual os agressores exploram todos os modos de guerra simultaneamente, incluindo capacidades convencionais, táticas, formações irregulares, além de outros métodos de influência.

[5] Atirador que assassinou 49 frequentadores de uma mesquita em Christchurch, na Nova Zelândia, e publicou em suas redes sociais um manifesto extremista e xenófobo.

Nathalia de Cassia Monteiro Nardelli é graduada em Relações Internacionais pelo Unilasalle-RJ, recebeu o prêmio de melhor monografia no primeiro semestre de 2023 pelo seu trabalho de conclusão de curso. Atualmente, atua como consultora na área de mobilidade global. Lattes: https://lattes.cnpq.br/1378962863521458

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353