O YUAN DIGITAL E SEUS IMPACTOS NA INTERNACIONALIZAÇÃO DA MOEDA CHINESA
Volume 11 | Número 110 | Ago. 2024
Por Maria Fernanda Campos de Figueiredo
INTRODUÇÃO
O OpenCBDC, projeto colaborativo entre o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e o Federal Reserve Bank de Boston, que visa a pesquisa sobre as possibilidades das moedas digitais emitidas por Bancos Centrais (CBDC), define esta como “uma moeda eletrônica, de responsabilidade do Banco Central, denotada como unidade de conta nacional, amplamente disponível e utilizada para pagamentos de varejo e entre indivíduos” (LOVEJOY et al., 2022, p.1 tradução nossa). Especificamente, o yuan digital (e-CNY) é uma moeda digital controlada e emitida pelo Banco Popular da China (PBOC), o banco central do país. De acordo com sua descrição, o e-CNY é “uma moeda baseada em crédito de uma dimensão de valor, criptografada de uma perspectiva técnica, baseada em algoritmo quando se trata de implementação e inteligente quando aplicada em vários cenários” (FULLERTON; MORGAN, 2022, p. 10, apud QIAN, 2017, p.2, tradução nossa).
Apesar de não haver confirmação sobre uma possível correlação entre os dois eventos, a criação do Bitcoin ocorreu pouco depois da crise financeira de 2008 nos EUA, que destacou a fragilidade e as práticas irresponsáveis dos bancos americanos que foram resgatados pelo Federal Reserve (FED), o Banco Central dos Estados Unidos (PIRES, 2017). O sucesso exponencial do Bitcoin e o surgimento de outras criptomoedas no mercado internacional impactaram a forma como os bancos centrais veem a utilização do papel-moeda, que está em declínio considerável, devido à criação de meios digitais para a circulação de dinheiro, como o internet banking, que possibilita transferências bancárias digitais, e a popularidade dos próprios bancos digitais (SILVA; UEHARA, 2019).
Portanto, a digitalização do yuan, também conhecido como renminbi (RMB), surge como uma medida para fortalecer a economia chinesa, além de promover a inclusão e a estabilidade financeira no país (FULLERTON; MORGAN, 2022).
De acordo com Xiao e Fan (2022, s/p, tradução nossa), “o crescimento das moedas digitais pode tornar os pagamentos internacionais mais eficientes e ajudar a resolver a lacuna de financiamento comercial global de US$1,7 trilhão”. Ainda de acordo com Liao (2022), o yuan digital busca: 1) diversificar as formas de disponibilização de dinheiro pelo Banco Central da China; 2) satisfazer a demanda do público por dinheiro digital; e 3) apoiar a inclusão financeira, a concorrência justa, eficiência e segurança dos serviços de pagamento de varejo e, por fim, 4) fazer eco da iniciativa internacional e explorar a melhoria do pagamento transfronteiriço.
Delimita-se como objetivo deste artigo analisar os impactos da digitalização do yuan no projeto de internacionalização da moeda chinesa, e, consequentemente, na projeção internacional do país. Busca-se responder à seguinte questão: Como a digitalização do yuan pode impactar na internacionalização da moeda e nas motivações chinesas de maior projeção no sistema monetário-financeiro internacional?
A hipótese que orienta a pesquisa é que a digitalização do yuan é um instrumento que permite à China fortalecer seu poder financeiro no Sistema Internacional (SI), impulsionar a internacionalização de sua moeda e alcançar seus objetivos de projeção internacional. Nesse contexto, espera-se que o yuan digital aumente a eficiência e a segurança das transações financeiras, estimule o uso da moeda chinesa no comércio internacional e reduza a dependência do dólar.
O trabalho em questão caracteriza-se como um estudo de caso, visto que busca entender o projeto chinês da internacionalização e digitalização do yuan como parte de suas políticas de ascensão global, utilizando-se da metodologia de pesquisa qualitativa, por meio de revisão bibliográfica (RODRIGUES et al, 2013).
Este artigo está dividido em quatro seções. Além da introdução, a segunda seção contextualiza o projeto de internacionalização do yuan com a política externa chinesa, que busca expandir sua esfera de influência e poder no mundo. Na terceira seção, é apresentado o conceito de digitalização de moedas, com foco no projeto chinês. Por fim, apresenta-se a conclusão.
A INTERNACIONALIZAÇÃO DO YUAN NO SÉCULO XXI
O poder estrutural, segundo Strange (1988), é a capacidade de moldar as regras e as instituições que governam as relações econômicas internacionais. Essas regras e instituições determinam quem tem acesso a recursos financeiros e tecnológicos, quem pode participar do comércio internacional, e em que termos as decisões econômicas são tomadas em nível global. Além disso, é encontrado em quatro principais estruturas que, apesar de distintas, estão diretamente relacionadas: a da segurança, da produção, das finanças e do conhecimento. Para a autora, uma hegemonia é definida pelo controle dessas quatro estruturas e, consequentemente, do poder estrutural.
A estrutura financeira é definida pelo poder de criar e controlar crédito, permitindo a um Estado oferecer empréstimos e influenciar os mercados de produção, determinando quem terá poder de compra no Sistema Internacional. Além disso, o controle da moeda na qual o crédito é fornecido afeta diretamente a taxa de câmbio em relação a outras moedas (STRANGE, 1988).
Analogamente, de acordo com Colombo (2021), a criação do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) representa uma das estratégias mais evidentes do poder estrutural chinês, pois envolve não apenas a oferta de crédito, mas também a provisão de bens públicos e a capacidade de estabelecer instituições (COLOMBO, 2021).
Já a internacionalização de uma moeda refere-se ao processo pelo qual a moeda é amplamente aceita e utilizada fora do país de origem em transações internacionais. Isso inclui transações de comércio internacional, investimentos e empréstimos internacionais, e como moeda de reserva em outros Estados.
Maurício Metri (2012) entende a moeda como uma construção do poder político- territorial e descreve que o processo de internacionalização da moeda acontece em três etapas: a primeira se dá pelas conquistas territoriais e dominações diretas, como no sistema colonial em que a moeda era imposta e a tributação utilizada como forma de expansão; a segunda é marcada pela relação econômica em que uma moeda é definida como a unidade de conta para acordos comerciais, investimentos e transações financeiras, fortalecendo o poder territorial do Estado que a controla; já a terceira e última, é caracterizada pelo controle de zonas estratégicas, as chamadas “zonas de acumulação acelerada de riqueza em escala global”, o que forçaria outros atores a usarem a moeda controlada pelo poder expansivo (METRI, 2012, p. 417). A internacionalização da moeda, portanto, pode ser vista como uma forma de exercício do poder, capaz de consolidar a hegemonia de um Estado sobre os demais.
Como posto em um artigo do Instituto do Banco Asiático de Desenvolvimento, a estratégia de internacionalização do yuan chinês se divide em duas etapas: a primeira consiste em aumentar o uso da moeda em nível regional para o comércio, o firmamento de investimentos e o estabelecimento de um mercado offshore cambial em Hong Kong; já a segundafoca no nível internacional, visando resolver o problema de conversibilidade do yuan e incentivar uma maior mobilidade da moeda em transações internacionais, estimulando a detenção de ativos em yuan por não residentes e fornecendo instrumentos para a cobertura de riscos cambiais (HUANG; WANG; FAN, 2014).
Como alternativa ao sistema de mensagens padronizado para transferências internacionais de dinheiro da Sociedade de Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais (SWIFT), a China criou o Sistema Internacional de Pagamentos da China (CIPS), um sistema de pagamento independente que favorece as operações realizadas em renminbi, e busca diminuir a dependência da China da SWIFT, que ainda conta com alta influência dos países ocidentais. Do mesmo modo, houve uma integração entre a Bolsa de Valores de Xangai e a de Hong Kong para impulsionar ainda mais a internacionalização do yuan, por meio do processo chamado de cross-border share trading scheme[1], que permite aos investidores negociar ações de empresas listadas na bolsa de valores de um país por meio da bolsa de valores de outro país (CINTRA; PINTO, 2017).
Em 2016, o Fundo Monetário Internacional anunciou a inclusão do renminbi na cesta de moedas que compõem os Direitos Especiais de Saque (SDR), um ativo de reserva internacional criado pela instituição para complementar as reservas oficiais dos países membros. Segundo Christine Lagarde, diretora do FMI, essa decisão refletiu o crescente papel da moeda no sistema monetário-financeiro internacional. Por sua vez, o Banco Popular da China afirmou que essa inclusão representou “um marco na internacionalização do RMB, reconhecendo o progresso no desenvolvimento econômico, reformas e abertura da China” (PBOC, 2016, p?).
A inclusão do renminbi no SDR marca um passo importante na internacionalização da moeda, visto que a China busca promover o uso dessa cesta como uma “super moeda” de reserva internacional. A longo prazo, o objetivo chinês é vincular as moedas de seus principais parceiros comerciais ao renminbi, enquanto o próprio renminbi estaria atrelado à cesta de moedas do SDR, reduzindo significativamente a dependência da China em relação ao dólar (LAI, 2015).
Essa estratégia é impulsionada pelas consideráveis reservas internacionais em dólares que a China detém, totalizando 3,133 trilhões de dólares em fevereiro de 2023, superando até mesmo as reservas em dólares nos Estados Unidos (CEIC DATA, 2023). Portanto, uma depreciação substancial do dólar acarretaria grandes perdas para a China, e essa medida visa mitigar o dilema da armadilha do dólar.
Algumas instituições desempenham papéis cruciais no projeto de internacionalização do yuan, visando fortalecer a China na estrutura de crédito desenvolvida por Strange (1988). Entre elas, destacam-se o Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS (NDB), focado em projetos de infraestrutura em países em desenvolvimento, e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, que também financia infraestrutura, com ênfase na Ásia (CINTRA; PINTO, 2017). Essas entidades ajudam a reduzir a dependência chinesa do dólar e de instituições financeiras lideradas pelos Estados Unidos, fortalecendo o poder financeiro da China e criando alternativas às instituições tradicionais de crédito e financiamento global. A internacionalização do renminbi pode impulsionar o setor de serviços financeiros chinês ao melhorar a eficiência do financiamento das instituições locais, aumentando sua competitividade internacional e facilitando o acesso a ativos denominados em renminbi (GAO; YU, 2012).
Outra medida importante na tentativa de internacionalização do yuan são os acordos bilaterais de swap (Bilateral Swap Arrangements – BSAs). Nesse acordo, dois bancos centrais trocam suas respectivas moedas, até um limite pré determinado, para facilitar o comércio e investimentos entre os dois países. Assim, um país pode trocar sua moeda pela moeda de outro país a uma taxa de câmbio acordada, com a expectativa de que a troca seja revertida em uma data posterior. A China é o Estado que criou mais BSAs, tendo estabelecido acordos com cerca de quarenta Estados, e o montante envolvido chegou a quatro trilhões de yuans em 2020 (SOUSA; DALDEGAN, 2020; GAO; YU, 2012).
O governo chinês tem buscado promover o uso do yuan por não residentes e ampliou gradativamente o leque de transações comerciais que podem ser liquidadas na moeda. Embora o RMB já seja amplamente aceito informalmente como moeda de liquidação no comércio transfronteiriço com alguns países vizinhos, iniciativas formais começaram em 2009, com um projeto piloto que permitia a um número limitado de empresas em algumas cidades chinesas liquidar transações comerciais em yuan com parceiros em Hong Kong, Macau e no Sudeste Asiático. Com o tempo, bancos fora do continente foram autorizados a oferecer serviços como câmbio, remessas e financiamento comercial em yuan. Até o final de 2010, mais de 67.000 empresas chinesas estavam autorizadas a participar. Desde então, empresas estrangeiras também obtiveram permissão para abrir contas de liquidação em yuan. Como resultado, no primeiro trimestre de 2011, aproximadamente 7% do comércio chinês era liquidado em yuans (COHEN, 2012).
Uma das principais dificuldades no projeto de internacionalização do yuan é a estimativa da quantidade de renminbi em circulação nas economias da Ásia, dado que a moeda ainda não é completamente conversível e não pode ser depositada no sistema bancário de muitos Estados vizinhos. Essa falta de dados sobre a utilização do yuan fora da China impede uma estimativa precisa do potencial da política monetária chinesa. Enquanto a liberalização da conta de capitais e a conversibilidade são vistos como pré-requisitos para a internacionalização do yuan, o governo chinês têm enfrentado desafios para abrir mão do controle de capitais, o que pode se configurar como um obstáculo para a internacionalização da moeda em um futuro próximo (GAO; YU, 2012).
A DIGITALIZAÇÃO DO YUAN E OS IMPACTOS NA INTERNACIONALIZAÇÃO DA MOEDA
De acordo com um estudo realizado pelo Centro de Informações da Rede de Internet da China (CNNIC), em dezembro de 2021, o país contava com aproximadamente 1 bilhão de usuários de internet, representando um alcance de 73% da população total. No mesmo período, o número de usuários de internet móvel também alcançou a marca de 1 bilhão, e a proporção de internautas chineses que acessavam a internet por meio de dispositivos móveis foi de 99,7% (CHINA, 2021).
Nesse contexto, a China se destaca como um dos países mais avançados em pagamentos digitais por meio de dispositivos móveis, sendo as principais plataformas utilizadas o WeChat Pay, AliPay e UnionPay. Segundo a pesquisa Global do Consumidor da Statista, aproximadamente 9 em cada 10 usuários chineses de pagamentos online relataram ter utilizado o WeChat Pay ou o AliPay nos últimos 12 meses (BUCHHOLZ, 2022). Esses dados evidenciam a ampla adoção e popularidade dessas plataformas na China, indicando a preparação da sociedade chinesa para uma economia predominantemente cashless, com reduzida utilização de papel-moeda. Além disso, revelam uma oportunidade para o governo chinês aproveitar as plataformas estabelecidas para promover a popularização do e-CNY.
O principal objetivo do e-CNY é melhorar ainda mais a eficiência do sistema de pagamento no varejo e reduzir os custos associados a ele, fortalecendo a economia digital na China e promovendo inclusão financeira e eficiência para a população. Outro aspecto importante do e-CNY é tornar os serviços financeiros mais acessíveis, permitindo que até mesmo cidadãos sem contas bancárias possam utilizar os serviços financeiros básicos oferecidos pela carteira e-CNY (PBOC, 2022).
Como características, o yuan digital possui valor intrínseco e pode ser transferido sem depender de contas bancárias. Além de suportar transações offline e permitir o anonimato, com o intuito de proteger a privacidade e as informações do usuário. De acordo com um relatório do PBOC (2022), o anonimato é aplicado a transações de pequenos valores, enquanto transações de altos valores são rastreáveis.
Se por um lado, a rastreabilidade dos valores pode ajudar a evitar ou reduzir atividades ilícitas, como lavagem de dinheiro, evasão fiscal e financiamento de esquemas criminosos, fortalecendo assim a segurança financeira e a integridade do sistema. Por outro lado, é importante ressaltar que o governo chinês terá registros de todas as transações, podendo bloqueá-las e rastreá-las. Isso levanta preocupações adicionais sobre a transparência na China, especialmente quanto ao armazenamento desses dados pelo PBOC e sua utilização pelo governo (FULLERTON; MORGAN, 2022).
Apesar do yuan digital possuir características voltadas para uso doméstico até o momento, o PBOC estuda a possibilidade de utilizá-lo em transações transfronteiriças. A transação de moedas digitais em nível global requer uma rede de aceitação por parte dos bancos comerciais, dispensando a necessidade de uma infraestrutura específica, como o SWIFT. Portanto, os países e seus respectivos bancos precisarão desenvolver tecnologias que lhes permitam aceitar os tokens das moedas digitais de forma eficiente e segura (BANSAL; SINGH, 2022).
Um dos principais desafios nas transferências internacionais é a demora causada por obstáculos como diferenças de fuso horário e a necessidade de envolvimento de intermediários. Contudo, ao utilizar moedas digitais, é possível eliminar ou reduzir significativamente a necessidade de intermediários, o que pode agilizar o processo de transferência (BANSAL; SINGH, 2022). Essa rapidez nas transferências transfronteiriças pode ter um impacto significativo na internacionalização do yuan. A digitalização da moeda e o aperfeiçoamento do sistema de trocas internacionais podem impulsionar e facilitar a adoção do yuan como uma moeda para transações comerciais internacionais, investimentos, empréstimos, e como reserva por outros Estados.
Como parte das iniciativas para promover o uso da CDBC em transações transfronteiriças, o Banco Popular da China (PBOC) aderiu ao Multiple CBDC Bridge (m-CBDC), juntamente ao Banco Central dos Emirados Árabes Unidos, à Autoridade Monetária de Hong Kong (HKMA) e ao Banco da Tailândia. Esse projeto visa a utilizar o Distributed Ledger Technology[2] (DLT) nas transferências transfronteiriças, visando proteger o sistema financeiro de instabilidades. Essa iniciativa está alinhada com os objetivos da China de promover o desenvolvimento do e-CNY para garantir a estabilidade de seu sistema financeiro. Além disso, o governo chinês tem apoiado a criação do Blockchain Service Network (BSN) para estabelecer uma plataforma que padronize a troca de CBDCs e, potencialmente, evolua para uma rede universal de pagamentos digitais. O BSN tem como propósito fornecer uma infraestrutura confiável e eficiente para facilitar as transações e a interoperabilidade entre as diferentes moedas digitais (BANSAL; SINGH, 2022).
A China também desempenhou um papel importante na criação da Finance Gateway Information Services Co., uma joint venture entre a SWIFT e o CIPS. Embora o propósito específico dessa empresa ainda não tenha sido divulgado, foi anunciado que ela será responsável pelo processamento de dados e agregação de sistemas de informações. Especialistas sugerem que essa iniciativa pode indicar a intenção da China de promover o uso do e-CNY em transações transfronteiriças, já que ambas as plataformas servem para facilitar transações internacionais (BANSAL; SINGH, 2022).
Tendo essas iniciativas em vista, a digitalização do yuan pode abrir caminho para uma maior internacionalização da moeda chinesa, fortalecendo seu papel no cenário global. À medida que mais Estados adotam e utilizam o yuan digital em suas transações, a confiança na moeda pode aumentar, levando a uma maior aceitação e integração do yuan nos mercados internacionais.
O e-CNY, juntamente com a promoção da internacionalização do yuan, tem o potencial de servir como uma alternativa à hegemonia do dólar no âmbito da geopolítica internacional. As sanções atualmente impostas pelos Estados Unidos a países que não atendem ao ideal capitalista democrático liberal podem não ter o mesmo impacto no futuro, na eventualidade de que poderá existir um sistema paralelo dominado pelo yuan (SU; LYU; LIU, 2022).
Em outubro de 2021, o presidente Xi Jinping proferiu um discurso durante a sessão de estudos do Politburo sobre a economia digital. Em sua fala, o presidente ressaltou a importância de construir uma China digital, integrando a economia real e a economia digital para impulsionar o desenvolvimento do país. Ele destacou que o desenvolvimento da economia digital foi elevado ao status de estratégia nacional, com a implementação da estratégia de grande potência cibernética e da estratégia nacional de big data (CREEMERS; COSTIGAN; WEBSTER, 2021).
Com base nessa ampla estratégia, surge a Rota da Seda Digital (Digital Silk Road – DSR) como uma das vertentes da Iniciativa da Rota da Seda para melhorar a conectividade digital no exterior e impulsionar a ascensão da China como uma potência tecnológica (CHINA, 2015; ALLISON; BRODERICK, 2020). Enquanto a BRI é considerada uma iniciativa de política externa, a DSR é vista como uma medida abrangente que aborda tanto os esforços da política externa quanto os esforços domésticos da China para se tornar uma potência com poder dominante no campo tecnológico. A DSR visa a promover a cooperação digital entre os países participantes da BRI, impulsionando o comércio eletrônico transfronteiriço, a conectividade digital e a troca de conhecimentos e tecnologias. Além de que busca promover o desenvolvimento de infraestrutura digital, incluindo redes de comunicação, data centers e serviços de computação em nuvem (CHENEY, 2019).
A Rota da Seda Digital desempenha um papel central na Iniciativa da Rota da Seda, pois o sucesso desta iniciativa terá um impacto direto na capacidade da China de aumentar sua influência no cenário internacional e alcançar seus objetivos com a estratégia nacional da economia digital. De acordo com Cheney (2019), a DSR possui cinco princípios: 1) abordar o excesso de capacidade industrial; 2) facilitar a expansão internacional das empresas de tecnologia chinesas; 3) apoiar a internacionalização do renminbi; 4) criar uma infraestrutura digital centrada na China; e, por fim, 5) promover a globalização inclusiva possibilitada pelo ciberespaço.
A organização Mercator Institute for China Studies (MERICS) realizou uma avaliação dos investimentos feitos pelo governo e entidades chinesas em projetos concluídos da Rota da Seda Digital. De acordo com essa análise, o valor total desses investimentos ultrapassa os 17 bilhões de dólares, direcionados para projetos de cabos de fibra óptica, redes de telecomunicações, transações de comércio eletrônico, pagamento móvel e projetos de inteligência artificial para cidades.
Com base nas ideias apresentadas, a digitalização do yuan pode ser compreendida como um passo importante em uma estratégia nacional de internacionalização da moeda, aspirando desempenhar um papel relevante no sistema monetário-financeiro internacional e estabelecer um sistema de oferta de crédito paralelo ao sistema atualmente dominado pelo dólar. Essa estratégia de digitalização do yuan está alinhada com os esforços da China em diversificar sua economia e reduzir sua dependência do dólar como moeda dominante nas transações internacionais. Busca-se, assim, fortalecer o papel do yuan como uma alternativa viável ao dólar, especialmente nas regiões e países envolvidos na Iniciativa da Rota da Seda e em outras de cooperação econômica internacional.
Observou-se que a China foi pioneira no desenvolvimento de um projeto de CBDC, aproveitando a ampla adoção de pagamentos móveis no país, bem como o uso generalizado de aplicativos como o AliPay, do Alibaba Group, e o WeChat Pay, da Tencent, duas das maiores empresas de tecnologia da China. Essa base já estabelecida permitiu à China avançar rapidamente na digitalização de sua moeda e utilizar essas plataformas para impulsionar a aplicação do yuan digital.
Além dos fatores já mencionados sobre a intenção da China de modernizar suas estruturas financeiras e tecnológicas, diminuir sua dependência do dólar, aumentar a eficiência das transações digitais e acelerar a internacionalização do yuan, a digitalização da moeda também pode ser entendida como uma busca para alcançar um poder estrutural chinês condizente com a posição do país no sistema internacional e com os avanços econômicos, sociais, comerciais e tecnológicos que a China tem experimentado desde a década de 1970. Portanto, a digitalização do yuan não é apenas uma medida técnica, mas uma estratégia abrangente para fortalecer a posição da China como uma potência global.
Especialistas continuam debatendo que o uso da CBDC pode ser um potencial ponto de virada na internacionalização do yuan, observando que a moeda digital também oferece a oportunidade de estabelecer um modelo que, no futuro, poderá ser utilizado para pagamentos globais de comércio e serviços, facilitando e reduzindo os custos das transações financeiras em todo o mundo (BANSAL, SINGH, 2021).
Apesar dos avanços rumo à internacionalização do yuan, como o estabelecimento de um mercado offshorecambial em Hong Kong, o uso de bancos regionais como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura para financiar projetos de infraestrutura no entorno estratégico da China, a criação do Sistema Internacional de Pagamentos da China para facilitar transações em renminbi e a integração das Bolsas de Valores de Xangai e Hong Kong, o yuan representou menos de 5% do comércio internacional em 2022 (LISSARDY, 2023), o que demonstra que o projeto de internacionalização do yuan ainda enfrenta dificuldades e precisa progredir em diversos âmbitos.
Ao mesmo tempo em que o intenso controle estatal sobre a economia e oferta de crédito na China permitiu seu crescimento expressivo desde a década de 1970, é importante destacar que o rígido controle de capital no país restringe o fluxo de renminbi para além de suas fronteiras. Essa restrição torna a moeda chinesa menos atraente para investidores e mercados financeiros, posto que um dos princípios fundamentais para a internacionalização de uma moeda é a existência de uma economia mais aberta e liberalizada (BANSAL, SINGH, 2021).
O fato do governo chinês ter acesso a todas as transações realizadas com o e-CNY implica questões sobre o controle estatal e a privacidade financeira dos indivíduos. Esse nível de controle pode gerar inquietações em relação ao monitoramento das atividades econômicas dos cidadãos e levanta preocupações sobre possíveis abusos ou violações de privacidade.
Compreende-se que o intuito da China com a digitalização do yuan, especialmente por meio do desenvolvimento da Rota da Seda Digital, é criar um sistema paralelo que ofereça uma alternativa ao dólar, em vez de ocupar diretamente o seu lugar. A China busca estabelecer uma plataforma que possibilite transações internacionais mais eficientes e diversificadas, reduzindo sua dependência do dólar e promovendo a aceitação e a utilização do yuan como uma moeda internacional de destaque em busca de conquistar o seu poder estrutural.
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[1] Em português, esquema de negociação de ações transfronteiriças (tradução nossa).
[2] O DLT (em português, Tecnologias de Ledger Distribuído) é uma tecnologia que possibilita o armazenamento e compartilhamento descentralizado e seguro de dados entre participantes em uma rede. Ela oferece um registro transparente e imutável das transações ou informações distribuídas entre os participantes, eliminando a necessidade de uma autoridade central ou intermediários. O DLT utiliza um mecanismo de consenso para validar transações e garantir a integridade do registro, tornando-o resistente a adulterações (MAULL et al, 2017).
Maria Fernanda Campos de Figueiredo é graduada em Relações Internacionais – UNILASALLE. Link lattes: http://lattes.cnpq.br/0884343136738381