O Agronegócio na Política Externa Brasileira: o imbróglio sobre a transferência da Embaixada brasileira em Israel (2018–2019)

Volume 12 | Número 118 | Jul. 2025

Por Emilly Viana,

Eduardo Prado, Graziela Ribeiro, Luisa Rosa e Pauliana Pereira

Introdução

A política externa brasileira reflete uma combinação de fatores econômicos, políticos e estratégicos. Durante o governo Bolsonaro (2019–2022), a promessa de transferir a Embaixada de Tel Aviv para Jerusalém trouxe à tona a influência dos interesses econômicos do agronegócio. Essa proposta, alinhada ao apoio de Bolsonaro a Israel e aos EUA, gerou tensões com os países árabes, parceiros comerciais essenciais para o Brasil. A reação desses países evidenciou como questões econômicas podem contrabalançar agendas ideológicas (Saraiva; Silva, 2019, p. 118; Galinari, 2019, p. 207; Reuters, 2018; VEJA, 2018).

Deste modo, o problema central que este estudo busca solucionar está relacionado aos fatores que impediram a concretização dessa promessa. A pergunta principal que se busca responder é: Como os interesses econômicos do agronegócio brasileiro moldaram a política externa do governo Bolsonaro, impedindo a concretização da promessa de transferir a embaixada de Tel Aviv para Jerusalém? Essa análise é relevante para mostrar como pressões domésticas podem limitar decisões políticas, mesmo em governos fortemente alinhados a pautas ideológicas, e assim moldar a política externa.

O objetivo do artigo é examinar o papel do agronegócio na política externa durante o governo Bolsonaro, demonstrando como seus interesses econômicos influenciaram a manutenção da embaixada do Brasil em Tel Aviv. Para isso, será adotado o modelo de unidades de decisão de Hermann, Hermann e Hagan (1987), que ajuda a compreender como diferentes atores e interesses domésticos impactam decisões de política externa. Ao adotar esse arcabouço inserido no campo da Análise de Política Externa (APE), o estudo busca analisar a política externa não somente a partir da tomada de decisão centralizada na figura do Estado, mas sim como um processo complexo composto intrinsecamente pela atuação de múltiplos atores internos, com distintos interesses e graus de influência. Argumenta-se que a política externa de Bolsonaro foi guiada não apenas por alinhamentos ideológicos, mas também pela influência de coalizões atores internos de caráter pragmático.

O artigo está estruturado em três partes. Primeiramente, será apresentado o referencial teórico utilizado que permite entender o processo decisório na política externa, considerando atores e interesses domésticos. Em seguida, será apresentada a contextualização histórica do porquê a promessa da transferência da embaixada impacta a relação com os países árabes. Por fim, discute-se como os interesses do agronegócio e de outros atores contribuíram para moldar a decisão final do governo Bolsonaro, evitando a concretização da proposta. 

Análise de Política Externa e as Unidades de Decisão

A análise sistemática da política externa dos Estados foi impulsionada pelo surgimento da Análise de Política Externa (APE) na década de 1950. Desde então, os estudos nessa área têm desafiado a visão do Estado como um ator homogêneo, incorporando elementos culturais, políticos e ideológicos ao exame das decisões externas. Essa abordagem, inserida no campo das Relações Internacionais, permite compreender a complexidade dos processos decisórios estatais, considerando o papel do contexto internacional e a influência de diversos atores domésticos (Hudson, 2005).

Hermann, Hermann e Hagan (1987) contribuem para esse campo ao desenvolverem uma abordagem analítica sobre o processo de formulação da política externa, abrindo a “caixa preta” do Estado, buscando entender quais são as unidades de decisão que buscam formular a política externa. Para os autores, é possível estabelecer um modelo que emoldura o processo decisório e o divide em etapas sequenciais. À priori, identifica-se o input, o gatilho que levará à tomada de decisão. Isso acontece quando surge um problema, um dilema político no âmbito internacional que requer que uma decisão — ou uma série de decisões referentes a um problema — seja tomada (inclusive a decisão de não atuar). Com o surgimento de uma ocasião de decisão, emerge também a(s) unidade(s) política(s) responsável(eis) por agir em resposta a ela. Os atores não costumam ser fixos, e a decisão em nome de um mesmo Estado tende a variar conforme o tema, a natureza e as demandas do problema apresentado.

As unidades de decisão são grupos ou indivíduos que, dependendo da estrutura governamental e do contexto político, possuem a capacidade de mobilizar recursos e autoridade para tomar decisões. Em sua obra, Hermann, Hermann e Hagan (1987) identificam três tipos principais: o líder predominante, um indivíduo com autonomia para decisões finais e sensibilidade a informações externas; o grupo único, em que a decisão é tomada coletivamente por meio de consenso entre os membros; e a coalizão de atores autônomos, composta por diferentes indivíduos ou organizações independentes, que buscam consenso ao confrontar perspectivas e interesses distintos.

Ao final do processo, pode-se conferir os outputs, os resultados da dinâmica do processo decisório e a decisão prevalecente. Nessa etapa, é válido também a observação de payoffs, isto é, se e como a opinião e perspectiva dos atores foi contemplada na decisão resultante do processo. Assim, fica evidente não apenas os caminhos que levaram à determinada atuação, como também a relevância e o papel de cada unidade de decisão. 

De modo geral, o modelo proposto é valioso para a compreensão das etapas do processo decisório em seu cerne doméstico e dos atores envolvidos. No caso do governo Bolsonaro, o modelo de Hermann, Hermann e Hagan (1987) é especialmente relevante, pois permite analisar a atuação de diferentes grupos com poder de veto — como o agronegócio, a ala militar e a ideológica — em contextos de fragmentação decisória. Nesse sentido, a identificação de uma coalizão de atores autônomos é fundamental para compreender a não realização da promessa de transferência da embaixada. No decorrer do artigo, buscamos interpretar e analisar os grupos e organizações que impactaram o governo brasileiro na escolha de não transferir a embaixada brasileira de Israel de Tel-Aviv para Jerusalém. Desta forma, para assimilarmos a decisão final, é imperativo considerar os aspectos e particularidades do problema apresentado, além do tipo de unidade de decisão elencado para assumir o processo decisório (Hermann; Hermann; Hagan, 1987).

Promessa de Transferir a Embaixada Brasileira para Jerusalém: Implicações Diplomáticas e Comerciais

É importante compreender, em linhas gerais, como o plano de mudar a embaixada brasileira em Israel gerou instabilidade diplomática e tensões que poderiam ter impactado as exportações brasileiras para países árabes. Em 2018, o recém-eleito presidente Jair Bolsonaro confirmou ao jornal Israel Hayom o desejo de transferir a embaixada de Tel Aviv para Jerusalém. As intenções tiveram consequências imediatas, como o enaltecimento pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, que as caracterizou como “um passo histórico”, e a depreciação por países árabes. A Liga Árabe, divulgou um comunicado no qual diz que as posições brasileiras “representam uma transformação radical de suas posições históricas em relação à questão palestina e ao processo de paz”, a ação de Bolsonaro é vista como uma contradição ao histórico apoio brasileiro aos direitos palestinos. No modelo de Hermann, Hermann e Hagan (1987), essa declaração de intenção representa o input do processo decisório, ou seja, o evento que desencadeia uma necessidade de resposta por parte das unidades políticas internas, que assumem a autoridade de formar uma unidade de decisão, mesmo que constituam grupos distintos, a fim de alcançar um determinado curso de ação da política externa que melhor represente seus interesses (G1, 2018; Sanz, 2018; BBC, 2019).

É válido levar em consideração que, para os países árabes, a questão palestina é central, e qualquer reconhecimento unilateral de Jerusalém como capital de Israel é interpretado como uma desonra direta aos esforços de paz e uma legitimação da ocupação israelense. As ações de Bolsonaro, ao serem consagradas, seriam um desrespeito às Resoluções 478[1] e 181[2] do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), que buscam manter a integridade da comunidade palestina. Além disso, a decisão também desconsidera os laços diplomáticos e comerciais com os países árabes, principais apoiadores da Palestina no conflito (Khalidi, 2020, p. 84 – 157; Corrêa, 2018).

O ressentimento árabe em relação a Israel remonta à Declaração de Balfour[3], de 1917, que propôs a criação de um lar nacional judaico na Palestina. Essa declaração marcou o início da expansão de assentamentos judaicos e do deslocamento da população palestina, intensificando as tensões entre árabes e judeus. A situação culminou em 1948, um ano marcado por conflitos intensos entre as duas comunidades, cujas consequências reverberam até os dias atuais. Esse contexto político também teve implicações econômicas: o comércio entre Israel e o mundo arábe foi proibido, e qualquer governo que estabelecesse laços comerciais com “a entidade sionista” enfrentava o risco de exclusão das relações comerciais com as nações árabes (Magnoli, 2006, p. 463-470).

A transferência da embaixada para Jerusalém não apenas representaria um apoio explícito a Israel, mas também um confronto direto com os países árabes, contrariando sua posição histórica em relação à luta palestina. Jerusalém Oriental tornou-se um símbolo central dessa questão: é o berço de três grandes religiões monoteístas — judaísmo, cristianismo e islamismo. Para os árabes palestinos, Jerusalém Oriental representa o centro de sua identidade e o símbolo de preservação de sua história. Ademais, em suas tentativas de resolução, a ONU estabeleceu ainda que os Estados-membros não estabelecessem suas embaixadas na cidade. Essa medida buscava evitar uma escalada nos conflitos e preservar a perspectiva de um acordo de paz (BBC, 2017; G1, 2017).

Sendo assim, a iniciativa do governo Bolsonaro de transferir a embaixada brasileira para Jerusalém estaria não apenas em desacordo com o direito dos palestinos de terem Jerusalém Oriental como capital de um futuro Estado, mas também intensificaria tensões políticas, sociais e econômicas com os países árabes. Além disso, tal movimento poderia ser interpretado como um alinhamento unilateral com Israel, desrespeitando as resoluções internacionais e comprometendo a posição histórica do Brasil como mediador equilibrado na questão (Corrêa, 2018).

Agronegócio: Pressões Contra a Mudança da Embaixada

Segundo Gardini (2018), a política externa é moldada por um equilíbrio entre elementos ideológicos e pragmáticos. Isso significa que o governo busca alinhar suas decisões tanto com elementos ideológicos, a valores e princípios específicos, quanto com interesses pragmáticos e econômicos. Essa interação cria um cenário dinâmico no qual decisões políticas frequentemente equilibram compromissos ideológicos com necessidades práticas e objetivos econômicos. Desse modo, a partir das reflexões de Saraiva e Silva (2019), esse equilíbrio pode resultar em escolhas diplomáticas que refletem tanto o alinhamento a convicções ideológicas quanto a considerações realistas e estratégicas em relação ao cenário internacional, denunciando a complexidade e os múltiplos interesses presentes nesse cenário.

No caso do governo Bolsonaro, isso se traduziu em diversas tensões devido ao conflito entre a ideologia do grupo eleito em 2018 e o pragmatismo necessário à política externa. O imbróglio da transferência da embaixada brasileira em Israel exemplifica tais tensões ao demonstrar como conflitos de interesses entre as alas pragmática-militar e ideológica-evangélica impactaram a política externa brasileira. Nesse cenário, o agronegócio exerceu papel fundamental para impedir que a transferência acontecesse (Saraiva; Silva, 2019, p. 118).

A decisão refletia os compromissos com a “ala ideológica”, composta por grupos neopentecostais e seguidores do pensamento de Olavo de Carvalho — influenciando figuras como o chanceler Ernesto Araújo e o deputado Eduardo Bolsonaro —, e o desejo de alinhar-se à frente conservadora internacional, fortalecendo laços ideológicos com o governo de Benjamin Netanyahu e de Donald Trump (Galinari, 2019, p. 207; Saraiva; Silva, 2019, p. 118; Gonçalves; Madureira, 2023, p.16).

Entretanto, a promessa da transferência da embaixada gerou preocupações na “ala pragmática” do governo, composta pelo setor agrícola, comercial, industrial, financeiro e militar. O setor militar expressava preocupação com possíveis repercussões relacionadas ao terrorismo internacional, caso o Brasil adotasse um posicionamento mais enfático no conflito do Oriente Médio. Nesse contexto, o vice-presidente Hamilton Mourão, em declaração para a Folha de São Paulo (2018), chegou a destacar a necessidade de cautela ao lidar com a proposta de transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém. Os generais Augusto Heleno, então Ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, e Carlos Alberto dos Santos Cruz, Ministro da Secretaria de Governo, também expressaram suas ressalvas acerca das repercussões diplomáticas e econômicas negativas que reverberariam com a concretização da transferência e desencorajaram o projeto (Reinaldo, 2019). 

Além disso, logo após Bolsonaro assumir seu mandato, o secretário-geral da Liga Árabe, Ahmed Aboul-Gheit, enviou uma carta ao Itamaraty expressando críticas à ideia, e alertando sobre possíveis impactos nas relações comerciais caso o Brasil mudasse sua embaixada para Jerusalém. Em seguida, em uma reunião realizada em Cairo, no Egito, a Liga aprovou uma resolução que declarava que “medidas políticas, diplomáticas e econômicas necessárias” seriam tomadas diante de uma possível mudança da embaixada israelense de Tel Aviv para Jerusalém (Reuters, 2018; VEJA, 2018).

O boicote levaria a um impacto significativo para o setor econômico brasileiro, em especial o setor agropecuário. Segundo dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (CEPEA) e Fundação de Estudos Agrários Luiz de Queiroz (FEALQ), em 2019, o agronegócio representou 21,4% do PIB total do país, além de, no mesmo período, o setor agropecuário passou a empregar aproximadamente 18,3 milhões de pessoas, representando cerca de 18% da população ocupada do país. Em termos de relações internacionais, o agronegócio é um dos pilares da balança comercial brasileira, e a interrupção dos fluxos comerciais com os países árabes, fundamentais para as exportações do setor, traria implicações devastadoras para a economia nacional (CNA, 2020; CEPEA, 2019).

Gráfico 1 – Participação no Comércio Exterior Brasileiro (2018)

Fonte: Elaboração própria com dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC), Comex Stat.

Gráfico 2 – Exportações Brasileiras para os Países Árabes e o Irã (2018)

Fonte: Elaboração própria com dados da BBC News Brasil, 2019.

Como ilustrado no gráfico 1, as trocas comerciais entre o Brasil e os países da Liga Árabe e o Irã somaram cerca de US$21 Bilhões em 2018, com a balança fechando com um superávit de 8 bilhões de dólares para o Brasil. Esses países, conforme dados levantados pela BBC News Brasil (2019), receberam cerca de 77% de todas as exportações de açúcar (somados o refinado e o bruto), 46% do milho em grãos, 37% da carne de frango, 27% da carne de boi e 10% de minério de ferro. Em contraste, o comércio com Israel representou menos de 1% do comércio exterior brasileiro, totalizando cerca de apenas US$1,5 bilhões em 2018, com um déficit de 847,8 milhões de dólares. 

Essa forte dependência do agronegócio em relação aos mercados externos dos países árabes levou à articulação de diversas entidades representativas. Entre elas, a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA) e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), que uniram esforços para evitar a transferência da embaixada. Elas implementaram estratégias de advocacy[4], reunindo informações relevantes sobre a importância econômica do mercado árabe para o Brasil e destacando os impactos potenciais, caso houvesse um boicote árabe. O objetivo era mostrar que os países árabes são grandes compradores de carne bovina, de frango e outros produtos agropecuários essenciais, e que a perda desse mercado representaria um prejuízo econômico significativo. A CNA, em especial, desempenhou um papel crucial ao se articular com outras organizações representativas do setor comercial, como a Câmara de Comércio Árabe Brasileira (CCAB) e a ala militar do governo, buscando destacar os impactos comerciais da transferência e ampliar a pressão sobre o governo Bolsonaro (Karam, 2023). Essa mobilização ilustra o funcionamento prático da dinâmica de coalizão descrita pelo modelo de unidades de decisão de APE, no qual diferentes atores domésticos com interesses específicos se unem para disputar a formulação da política externa, visto que não seriam capazes de atingir seus objetivos isoladamente. 

Além disso, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), sob a liderança de Tereza Cristina, atuou na defesa das pautas do setor agropecuário no Congresso Nacional e auxiliou no balanceamento dos interesses ideológicos e econômicos em jogo. Sua influência política significou um impacto considerável no debate, dado que o setor ruralista possui grande peso tanto no cenário econômico quanto no apoio político e eleitoral do governo (Gonçalves; Madureira, 2023, p.16).

Um marco fundamental nesse processo foi a participação de Bolsonaro em um jantar em Brasília com embaixadores de países islâmicos. O jantar, organizado pela CNA, teve como objetivo fortalecer as relações comerciais entre o Brasil e os países islâmicos e contou com a participação de Tereza Cristina, então Ministra da Agricultura, Ernesto Araújo, o Ministro de Relações Exteriores e o presidente da Câmara de Comércio Árabe Brasileira, Rubens Hannun. Além disso, também estiveram presentes no encontro 37 embaixadores de países islâmicos, incluindo representantes da Argélia, Egito, Irã, Kuwait, Turquia, Catar, Marrocos, Palestina, Indonésia e Cazaquistão. Durante o evento, Tereza Cristina destacou a importância da confiança mútua e da complementaridade econômica para o fortalecimento das relações comerciais. O presidente Bolsonaro enfatizou a disposição do Brasil em manter relações amistosas e respeitosas com os países árabes, e mencionou sua intenção de visitar essas nações em breve (Karam, 2023; Agência de Notícias Brasil-Árabe, 2018; Governo do Brasil, 2019).

A capacidade de articulação do agronegócio, junto a sua relevância econômica e política, exerceu forte pressão no governo. Enquanto a ala ideológica buscava fortalecer laços com Israel por razões ideológicas e estratégicas, o agronegócio atuava para proteger suas exportações, mostrando que a política externa do governo Bolsonaro era moldada por múltiplas dinâmicas e interesses. Por fim, a pressão exercida levou o governo Bolsonaro a recuar da promessa de transferir a embaixada, optando por abrir um escritório comercial da Apex Brasil em Jerusalém, mantendo laços com Israel. Isso simboliza um compromisso com os interesses israelenses, mas mantendo os impactos negativos minimizados ao evitar a transferência da embaixada em si​ (Conde, 2018). 

Portanto, ao mobilizar o modelo de unidades de decisão proposto por Hermann, Hermann e Hagan (1987), é possível compreender que o processo decisório acerca da transferência da embaixada brasileira para Jerusalém não se deu de forma centralizada ou exclusivamente ideológica. Ao contrário, o caso analisado evidencia a presença de uma coalizão de atores autônomos, composta por setores econômicos organizados — como a CNA, ABPA e FPA — , integrantes da ala militar e do setor comercial, que impactaram e limitaram a tomada de decisões diplomáticas do governo de forma pragmática e estratégica. Esses atores não representaram um único bloco homogêneo, mas sim unidades com interesses específicos e graus distintos de influência, que, frente ao input representado pela promessa de campanha de Bolsonaro, atuaram com autonomia para moldar o resultado final. Essa atuação conjunta ilustra a complexidade decisória prevista na APE, em que a política externa é resultado de interações entre múltiplos atores domésticos em contextos de conflito e negociação.

Sob essa ótica, a resposta política adotada – a abertura de um escritório comercial da Apex-Brasil em Jerusalém, sem efetivar a transferência da embaixada – pode ser interpretada como um payoff resultante de um compromisso assimétrico. Segundo Hermann, Hermann e Hagan (1987), esse tipo de compromisso ocorre quando uma unidade de decisão dominante consegue impor sua preferência principal, mas concede elementos simbólicos ou secundários a outras unidades envolvidas no processo, a fim de garantir legitimidade ou manter a coesão interna. No caso em questão, a coalizão pragmática obteve êxito em barrar a transferência da embaixada, protegendo os interesses comerciais com os países árabes. Em contrapartida, o governo concedeu uma vitória simbólica à ala ideológica com a instalação do escritório comercial, satisfazendo parcialmente seu desejo de aproximação com Israel. Assim, o modelo de APE aplicado demonstra sua eficácia ao revelar como a decisão final do governo Bolsonaro foi resultado de um processo de barganha interna entre atores com racionalidades distintas, em um contexto de política externa altamente sensível aos impactos econômicos e ideológicos.

Conclusão

Ao analisar a política externa brasileira durante os anos Bolsonaro, no que diz respeito à promessa de transferir a embaixada para Jerusalém, revela-se um processo de tomada de decisão influenciado por diversos atores e interesses, marcado pelo conflito entre ideologia e pragmatismo. Aplicando o modelo de unidades de decisão de Hermann, Hermann e Hagan (1987), o presente artigo demonstra como a pressão do agronegócio, através da formação de uma coalizão de atores autônomos, agiu para preservar os mercados árabes e evitar prejuízos econômicos. O input do processo decisório – a promessa de transferir a embaixada – desencadeou uma resposta pragmática de atores domésticos brasileiros, refletindo em um output da manutenção da embaixada em Tel Aviv. Esse caso demonstra como pressões internas, especialmente de setores econômicos estratégicos, podem limitar decisões de governos ideologicamente alinhados, enfatizando a importância de articulações domésticas na formulação da política externa.

Figura 1 – Fluxograma do processo de decisão sobre a transferência da Embaixada em Israel

Fonte: Elaborado pelos autores (2024).

Além disso, a decisão final de não transferir a embaixada, mas de abrir um escritório comercial em Jerusalém, representa um payoff de compromisso assimétrico, em que a coalizão pragmática foi capaz de barrar a transferência da embaixada, mas a pequena concessão ao grupo ideológico foi feita com a decisão de abrir um escritório comercial em Jerusalém. O escritório em Jerusalém foi inaugurado em março de 2019 pelo presidente Jair Bolsonaro durante sua visita a Israel, e foi visto pelo governo israelense e pela ala ideológica como um gesto político significativo, mesmo não se tratando da transferência completa da embaixada. Atualmente, o escritório ainda opera sem quaisquer problemas significativos, atuando na promoção dos interesses comerciais do Brasil em Jerusalém, enquanto o governo brasileiro – tanto o atual, quanto o estabelecido durante o governo Bolsonaro – não exibiu sinais de uma possível mudança do status do escritório ou de sua transformação em uma embaixada.

Dessa forma, a coalizão formada por esses diferentes grupos, liderada pelo agronegócio, revela como as unidades de decisão no governo Bolsonaro interagiram, negociando e fazendo concessões para garantir que suas preferências fossem parcialmente atendidas, com um equilíbrio entre os interesses econômicos do grupo pragmático e as demandas ideológicas do grupo conservador. O resultado foi uma decisão estratégica que buscou preservar as relações comerciais essenciais com os países árabes, ao mesmo tempo em que manteve um alinhamento ideológico com Israel.

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SARAIVA, Sérgio; SILVA, Paulo. O Governo Bolsonaro e as Relações Internacionais: Ideologia e Pragmatismo. São Paulo: Editora Unesp, 2019.

SCHREIBER, Mariana. Questões práticas podem inviabilizar mudança de embaixada em Israel, diz ministro Santos Cruz. BBC News Brasil, 11 jan. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46766311. Acesso em: 9 jan. 2025.

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VEJA. Liga Árabe exorta Brasil a não mudar embaixada para Jerusalém. Veja, 27 nov. 2018. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/liga-arabe-exorta-brasil-a-nao-mudar- embaixada-para-jerusalem. Acesso em: 27 dez. 2024.


[1] A resolução condena a decisão de Israel de declarar Jerusalém como sua capital e considera essa medida uma violação ao direito internacional.

[2] A resolução recomenda um status internacional para a cidade.

[3] A carta demonstra o apoio do governo britânico ao estabelecimento de um lar nacional para o povo judeu na Palestina.

[4] Estratégia utilizada por indivíduos, grupos ou organizações para influenciar decisões políticas e institucionais, buscando defender e promover interesses específicos. Isso inclui atividades como lobby, campanhas públicas, produção de relatórios técnicos, alianças estratégicas e mobilização social, visando impactar a formulação e implementação de políticas públicas e decisões governamentais.

Emilly Viana é graduanda em Relações Internacionais da UERJ e bolsista PIBIC-UERJ.

Eduardo Prado é graduando em em Relações Internacionais da UERJ.

Graziela Ribeiro é graduanda em Relações Internacionais da UERJ.

Luisa Rosa é graduanda em Relações Internacionais da UERJ.

Pauliana Pereira é graduanda em Relações Internacionais da UERJ.

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353