Pensamento estratégico na Índia: uma breve apresentação

Volume 12 | Número 120 | Set. 2025

Por João Miguel Villas-Bôas Barcellos

INTRODUÇÃO

Hodiernamente, após mais de 70 anos de independência, a Índia é uma potência emergente com ambições globais. O país tem a maior população do planeta (1,428 bilhão), a terceira maior economia, com um PIB de US$17, 65 trilhões (FMI, 2025)[1], e uma das cinco Forças Armadas mais poderosas do Sistema Internacional[2]. Esses atributos positivos foram desenvolvidos por governos conscientes do papel histórico da civilização indiana e do lugar de destaque que o país precisava ocupar entre os grandes. Desse modo, buscaram construir uma capacidade econômica industrial que desse ao país condições para financiar seu processo de mudança estrutural. 

O cenário geopolítico em que se insere a Índia estimulou o desenvolvimento de envergadura dissuasória robusta, como a criação de poder nuclear com fins militares e de um complexo industrial-militar (modesto, inicialmente). Por ser um Estado-civilização, a Índia buscou desde o princípio de sua independência uma política externa de não-alinhamento e autonomia. Essa postura, típica de uma potência mundial, buscou refletir o esforço interno de construção das bases econômicas, militares e estratégicas do projeto de poder do país.

Com efeito, entende-se que o avanço nas capacidades estratégicas da Índia só foi possível por conta do desenvolvimento de um pensamento estratégico capaz de problematizar o país como um ator protagonista na geopolítica regional e global. 

ESCOLAS E AUTORES

Seria a Índia um país insignificante para a cultura estratégica? De acordo com George Tanham (1992), uma série de fatores, dentre eles a questão religiosa das castas, a cultura agrária e uma burocracia sufocante podem ser considerados obstáculos sérios ao desenvolvimento de um pensamento estratégico robusto.

No entanto, há uma ampla literatura sobre pensamento político-estratégico na Índia. Termos como “exemplo moral para o mundo” ou “civilização pacífica” confundem o leitor acerca do tema. Assim, é mister salientar que a Índia tem uma prática e um pensamento estratégico similar ao de qualquer outra potência mundial (Kapur; Mukherjee, 2018, p.06).

Kanti Bajpai (2014) advoga que, a despeito da crença de alguns a respeito da falta de um sistemático pensamento estratégico indiano, há pelo menos três importantes tradições (ou escolas) na área: Nehruvianismo, Neoliberalismo e Hiperrealismo. Para o autor, essas tradições têm penetração na esfera governamental, nos partidos e nas Forças Armadas, além da academia e mídia. Haveria, igualmente, três tradições menos relevantes – que o autor chama de “escolas menores” – quais sejam, o Marxismo, o Gandhismo e o movimento nacionalista hindu (Hindutva)[3] (Bajpai, 2014).

As três principais escolas de pensamento estratégico indiano entendem que o sistema internacional é anárquico, ou seja, não há autoridade global acima da soberania estatal. Há um reconhecimento de que a violência, o poder e os interesses nacionais são pilares fundamentais nas relações internacionais[4]. Contudo, há diferenças importantes entre elas. A escola Nehruviana (também chamada de pacifista) busca construir uma sociedade internacional mais harmônica e questiona a balança de poder como instrumento eficaz para a estabilidade da ordem global. Para isso, acreditam no Direito Internacional e nas instituições globais como mecanismos fundamentais para prevenir a guerra que não seria algo inevitável (Idem, 2014). 

Para os neoliberais, a possibilidade de as relações internacionais serem conduzidas com ganhos mútuos, em função de uma cada vez maior interdependência interestatal é seu pressuposto básico. Outro elemento importante seria a ênfase na economia em vez do poder militar, para eles só se alcança o segundo dispondo de uma capacidade econômica robusta. Assim, em um contexto de interdependência complexa, o poder militar seria ineficaz, pois o livre comércio e o mercado seriam os grandes fatores da paz e estabilidade internacional (Idem, 2014).

Na contramão da crença na cooperação e do livre mercado como elementos garantidores da paz, os hiper-realistas apostam na autoajuda, na balança de poder e, em última instância, na guerra como alicerces do sistema internacional. A histórica rivalidade interestatal é conflitiva e não pode ser resolvida apenas por meios propalados pelas duas escolas anteriores. Em última instância, o que determina o status quo global é o poder militar que, inclusive, pode ser um estimulador do desenvolvimento econômico (Idem, 2014)[5].

Ian Hall (2016) vai na mesma linha de classificação de escolas estratégicas de Banjpai, porém com uma abordagem diferente. Para ele, há três tradições estratégicas indianas, a nehruviana, a realpolitik e a nacionalista hindu. Todas influenciadas pelos textos históricos hindus, saudosistas religiosos dos séculos XIX e XX e pelos pensadores modernos (Hall, 2016).

Nehru foi, além de grande líder político e primeiro ministro (1947-1964), um teórico acerca da postura da Índia no sistema internacional. Para ele, as iniciativas políticas, econômicas e culturais deveriam se sobrepor às militares para o bem da estabilidade global. Assim, ele desenvolveu o conceito de “Panchsheel”, ou os cinco princípios da coexistência pacífica, quais sejam o respeito mútuo pela integridade territorial, mútua não-agressão, mútua não interferência, igualdade e benefício mútuo e coexistência pacífica (Índia, 2004). Outro importante conceito ou postura teórica e prática desenvolvida por Nehru foi o “não-alinhamento”. Este moldou profundamente a inserção internacional indiana e ainda hoje exerce forte influência junto aos tomadores de decisão no país. O termo foi desenvolvido em um contexto de Guerra Fria, no qual a pressão competitiva, fruto das disputas entre EUA e URSS, exerceu forte influência sobre os países em desenvolvimento. Assim, caberia à Índia, país, à época, com ambições geopolíticas regionais, não se submeter à estratégia de segurança das grandes potências.

No contexto da liderança política nehruviana, a Índia passou por um profundo debate acerca da política externa, qual seja: moral x força. Em função dos problemas internos, como pobreza e analfabetismo, Nehru não via sentido em desenvolver uma estratégia nacional com foco em defesa e segurança – postura reavaliada após a guerra com a China em 1962. É razoável afirmar, portanto, que o mandatário e líder político indiano buscou construir um fraco status quointernacional, diferentemente de sua filha e neto (Indhira e Rajiv Gandhi) que iniciaram a construção do poder militar dissuasório (Khanna, 2018)

Se Nehru foi o primeiro grande teórico e liderança política a conseguir pôr em prática sua própria visão de estratégia na Índia independente, Kautilya, com o seu clássico e importantíssimo tratado de política “Arthashastra” foi um dos mais importantes precursores do pensamento estratégico indiano. Escrito por volta de 320 a.C, ou seja cerca de 1.800 anos antes do famoso clássico ocidental “O Príncipe”, de Machiavel, a obra traz uma série de conselhos ao rei, ou governante, acerca do poder, sua conquista e manutenção. Kautilya foi conselheiro do imperador Chandragupta Maurya, fundador do Império Mauria[6].

Kautilya descreveu cada relação de poder com maestria, os atores políticos e os cenários possíveis para o melhor exercício do poder nos quinze livros (capítulos) da obra. O governante (swamin), o ministro (amatya), o povo (janapada), a fortaleza, ou forte (durga), o tesouro, ou fazenda (kosa), o poder executivo (danda) e o estado ou governo aliado (mitra). Cada qual com a sua respectiva função. Há livros a respeito das leis, dos tratados, das alianças, dos súditos, da disciplina, do papel dos governantes, da origem dos “estados soberanos”, bem como sobre a guerra e os inimigos poderosos. Um dos livros mais interessantes é o sétimo, no qual ele descreve as seis leis dos componentes da política: a paz, a guerra, a neutralidade, a marcha (preparação para a guerra), as alianças e a política dupla (Kautilya, séc. III a.C).

Vijigishu ou o “desejo do rei por novas conquistas” e Chakravartin “monarca universal sem desafiadores” seria um dos pontos centrais da obra. O rei, ou governante, viveria em um sistema político chamado por Kautilya de matsya-nyayaou “a lei do peixe”, em que os grandes comem os pequenos. Isto é, o sistema político é representado por uma mandala – sistema em que há um Estado no centro e outros; ari, inimigos, ao redor ameaçando-o (Zaman, 2006, p. 236). Pode-se perceber que a arte de governar ou a política estratégica pensada por Kautilya encontrará ao longo do tempo uma série de teóricos que farão um raciocínio semelhante. De Maquiavel aos teóricos do Realismo, como Morgenthau, dentre outros, serão analisados conceitos consagrados, como “dilema de segurança” (Herz) ou “os fins justificam os meios” (Maquiavel) perfeitamente vinculados às ideias de Kautilya. Em suma, o Arthashastra seria uma síntese dos conceitos caros à Filosofia Política moderna e à teoria Realista das Relações Internacionais, tais como Raison D’État eanarquia sistêmica, dentre outros (Liebig, 2013) 

Sobre o pensador florentino, Max Weber faz uma observação interessante:

A literatura hindu chega a oferecer-nos uma exposição clássica sobre o “maquiavelismo” radical (…) basta ler o Arthaçastra, de Kautilya, escrito muito antes da era cristã, provavelmente quando governava Chandragupta. Comparado a esse documento, o Príncipe, de Maquiavel é um livro inofensivo. (Weber, 2008, p. 117)

As tradições de pensamento estratégico na Índia estão em disputa. Como vimos acima, Tanham (1992) afirma que não há uma cultura estratégica consolidada ou forte o suficiente, ao passo que outros autores, como Banjpai (2014) e Zaman (2006), contestam tal afirmação apresentando escolas de pensamento que se foram formando há tempos. Para Sidhu (1996), o histórico do tema tem Kautilya como grande referência, porém teria sido debatido ou abordado ainda antes, nas páginas do épico clássico Mahabharata[7], escrito há mais de cinco mil anos. O autor afirma que existe um estereótipo acerca da tradição pacifista indiana e coloca a própria imagem de Gandhi em xeque, ao dizer que ele teve diversos momento classificáveis como realistas. Outro ponto importante da contribuição de Sidhu é o questionamento sobre a contribuição britânica para a organização e modernização indiana, para ele, “a evolução de um Estado-nação e a criação de um país foram interrompidos pela colonização britânica” (Sidhu, 1996, p.175). 

Krishnaswamy Subrahmanyam foi um dos grandes pensadores da segurança nacional e internacional indiana do período pós-independência. Foi além de analista, conselheiro de vários governos e um grande defensor da Realpolitik. Um dos assuntos mais importantes do seu ativismo político foi a questão nuclear. Para ele a Índia deveria buscar construir a capacidade atômica militar possível que garantisse influência no sistema internacional. Por isso, foi um dos maiores incentivadores dos testes nucleares para com finalidade militar logo após as explosões atômicas chinesa, em 1964. Escreveu importantes artigos e livros sobre estratégia, defesa e tecnologia militar. Faleceu em 2011.

Subrahmanyam estimulou a criação de uma rede de pensamento estratégico que pudesse dar suporte às políticas públicas na área. Destarte, o autor imaginava ser possível orientar think tanks – como o Institut for Defence Studies and Analisis, IDSA – Forças Armadas, Universidades e governo na direção de uma interpretação mais ativa e assertiva no campo da segurança (Mukherjee, 2011). Um eixo importante desta estratégia de integração de agências e atores na direção de um pensamento estratégico nacional seria a desclassificação de documentos sigilosos sobre defesa e segurança. Ponto polêmicos para alguns, porém, para Subrahmanyam o acesso irrestrito à informação aos pesquisadores e membros da comunidade de intelectuais e burocratas da área seria de grande valor (Subrahmanyam, 2015).

A cultura e o pensamento estratégico na Índia, pelo que indicam a maioria dos autores aqui estudados, leva-nos à conclusão de que há um forte enraizamento realista que moldou a realpolitik indiana desde os tempos vedas até o presente (Karnad, 2005). 

CONCLUSÃO

A Índia consolidou-se como uma potência global emergente combinando crescimento econômico acelerado, capacidades militares avançadas e um pensamento estratégico diversificado enraizado em tradições que remontam a Kautilya. Seu desenvolvimento reflete a tensão entre ideais nehruvianos (multilateralismo, não-alinhamento) e abordagens mais realistas (dissuasão nuclear, rivalidade com China).

Apesar do ceticismo inicial sobre sua cultura estratégica, a Índia demonstrou capacidade de adaptação, integrando lições históricas – desde o Arthashastra até as escolas modernas – para enfrentar desafios contemporâneos. Seu avanço em tecnologia (programa espacial, indústria de defesa) e alianças estratégicas (como o Quad e BRICS) sugere um futuro como ator central na geopolítica do século XXI, equilibrando soft power civilizacional com hard power militar.

Contudo, obstáculos persistem: desigualdades sociais, tensões regionais e a necessidade de reformas estruturais. Se superá-los, a Índia não apenas realizará suas ambições de grande poder, mas também redefinirá seu papel como ponte entre Oriente e Ocidente em um mundo multipolar.

REFERÊNCIAS

BAJPAI, Kanti. Indian grand strategy: Six schools of thought. In: India’s Grand Strategy. Routledge India, 2014. p. 127-164.

FIORI, José Luís. História, estratégia e desenvolvimento: para uma geopolítica do capitalismo. Boitempo Editorial, 2015.

FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL. World Economic Outlook Database. FMI, 25, Out. 2025. Disponível em:<https://www.imf.org/external/datamapper/profile/IND  >. Acesso em: 09/06/2025.

GLOBAL FIRE POWER. India Military Strength. GFP, 2025. Disponível em: <https://www.globalfirepower.com/country-military-strength-detail.php?country_id=india  >. Acesso em: 09/06/2025.

KAPUR, Devesh; MUKHERJEE, Rohan. Indian security strategy in thought and practice. India Review, v. 17, n. 1, p. 1-11, 2018.

KARNAD, Bharat. Nuclear weapons and Indian security: the realist foundations of strategy. New Delhi: Macmillan, 2005.

KAUTILYA, Vishnugupta. The Arthashastra. New Delhi, New York, NY: Penguin Books, 1992.

KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potencias transformação econômica e conflito militar de 1500 a 2000. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

LIEBIG, Michael. Kauṭilya’sArthaśāstra: A Classic Text of Statecraft and an Untapped Political Science Resource. 2014.

MUKHERJEE, Anit. K. Subrahmanyam and Indian Strategic Thought. Strategic Analysis, v. 35, n. 4, p. 710-713, 2011.

SIDHU, Arman. India’s Scramble for the African Arms Market. Indian Defence Review, 02, Jan. 2020. Disponível em: <http://www.indiandefencereview.com/news/indias-scramble-for-the-african-arms-market/>. Acesso em: 01/10/2024.

SUBRAHMANYAM, Krishnaswamy. Academic Contribution to National Security Policy Formulation in India. Strategic Analysis, v. 39, n. 5, p. 579-586, 2015.

TANHAM, George K. Indian strategic thought: An interpretive essay. 1992.

WEBER, Max. A política como vocação. Ciência e política: duas vocações. 2008.

ZAMAN, Rashed Uz. Kautilya: the Indian strategic thinker and Indian strategic culture. Comparative Strategy, v. 25, n. 3, p. 231-247, 2006.


[1] PIB medido em paridade do poder de compra (PPC) – purchasing power parity (PPP, em inglês), estimativa para 2025.

[2] De acordo com o Global Fire Power, a Índia seria classificada como a quarta maior força militar.

[3] É importante frisar que o movimento hindutva vem se tornando cada vez mais presente no debate político indiano, visto que é um dos pilares do partido do Povo (Bharatiya Janata), no governo desde 2014.

[4] Entendemos que esta percepção teórica do autor em que não distingue claramente a escola neoliberal das demais não é aceita ou comungada por nós, haja vista a incompatibilidade conceitual do neoliberalismo (abordagem voltada à cooperação e livre comércio como garantidores da paz e estabilidade globais) com a busca pelo poder e a aceitação da violência como meio de garantia do interesse nacional.

[5] O autor (Bajpai) externa que há uma inversão de prioridades para neoliberais e hiper-realistas no que diz respeito ao poder militar e econômico. Entendemos que há uma sinergia entre ambos e uma impossibilidade de separá-los, pois para se construir um poder militar adequado é necessário que se tenha instrumentos econômicos igualmente adequados para tal. Da mesma maneira de nada adianta uma economia pujante e desenvolvida sem um significativo poder militar que lhe garanta autonomia. A história nos ensina que o significado de grande potência está umbilicalmente vinculado a esta visão (Fiori, 2015; Kennedy, 1989).

[6] Uma curiosidade histórica é que Kautilya foi contemporâneo de Alexandre, o grande, e acompanhou as invasões deste ao território noroeste indiano.

[7] O livro Mahabharata é composto por mais de 70.000 versos em sânscrito e é considerado um dos textos mais importantes do hinduísmo (The Mahabharata of Krishna-Dwaipayana Vyasa: Adi Parva, 1990). 

João Miguel Villas-Bôas Barcellos é Doutor em Economia Política Internacional no PEPI-UFRJ e mestre na mesma área e mesma instituição. Fez graduação em Relações Internacionais na PUC -GO (2007) e especialização na mesma área na UCAM (2011). Pesquisador integrante do Núcleo de Avaliação da Conjuntura do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Escola de Guerra Naval. É, igualmente, pesquisador do Grupo de pesquisa: “Direitos sociais, direitos fundamentais e políticas públicas”, concentrando sua investigação nas questões econômicas e sociais. Tem interesse acadêmico em: Economia Política Internacional, a relação entre o processo de desenvolvimento e a geopolítica, desenvolvimento econômico e social, pensamento estratégico brasileiro e indiano,Política Externa Brasileira e Indiana, complexo industrial-militar e política industrial voltada à defesa nacional.

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353